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Dia: 26 de Maio, 2006

26 de Maio, 2006 jvasco

Parábolas simples, distorções complexas

Os textos do evangelho são simples. Jesus falou aos discípulos numa linguagem simples, precisamente para que a sua palavra estivesse ao alcance de todos.

Mas a mensagem evangélica, se bem que fosse o ideal para se espalhar entre os escravos e oprimidos do faustoso império romano, não era muito adequada para uma instituição poderosa com relações mais ou menos promíscuas com um poder político de uma potência económica dominante.

É que a mensagem evangélica, entre outras coisas, é socialista. Diz claramente que os ricos não chegarão ao céu – que estes não se devem ficar pela caridade, mas sim dar tudo o que têm aos pobres.

A Igreja Católica Apostólica Romana (ICAR) encontrou uma forma engenhosa de conciliar a mensagem evangélica com as suas diversas directrizes que ao longo da história têm estado, segundo a própria assume, em directa contradição com o evangelho (Cruzadas, Inquisição, etc..).

Tentou dificultar o acesso generalizado ao evangelho, e criou um mito segundo o qual a interpretação do evangelho era uma verdadeira ciência, tão profunda que estaria apenas ao alcance dos seus teólogos, que a ela dedicam toda uma vida. Dessa forma, tornou-se fácil conseguir defender tudo o que quisesse: desde a condenação de Galileu, até à santificação de S. Escrivá.

Foram os protestantes quem primeiro começou a imprimir e a traduzir as Bíblias, e a primeira reacção da ICAR foi de oposição. E hoje os evangélicos e protestantes conhecem muito melhor a Bíblia que os católicos. É toda uma tradição de a esconder dos crentes…

O que eu acho curioso é que quando qualquer um pode identificar os erros dos inspirados teólogos católicos ao longo da história (em cuja humanidade a ICAR não deixa de se justificar) ninguém pode pôr em causa os teólogos actuais.

Se alguém com uma tese de mestrado associada ao estudo da história e cultura da Estremadura em finais do sec XIX, e uma tese de doutoramento acerca d’ «A problemática do “realismo niilista” na literatura portuguesa» me vier dizer que eu interpreto Os Maias demasiado literalmente, e que a Maria Eduarda é o Pedro disfarçado, que voltou da 9ª dimensão para tentar matar Afonso, vou precisar de muito bons argumentos para aceitar tamanho dislate… Não basta falar na enorme importância de conhecer o contexto sócio-cultural d’Os Maias para os poder interpretar convenientemente.
Se acredita que o conhecimento profundo do contexto pode justificar tal interpretação, então ainda bem que o conhece, pois pode expor com clareza os pontos em que baseia a sua interpretação.

Da mesma forma, não aceito de ânimo leve que o Jesus dos evangelhos não deixasse de condenar a riqueza. Leiam estas passagens:

«Quem tem duas túnicas reparta com quem não tem nenhuma, e mesmo quem tem mantimentos faça o mesmo» Lc 3:11

«Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que possuires, dá o dinheiro aos pobres» Mt 19:21

«Em verdade vos digo que dificilmente entrará um rico no reino dos céus. Repito-vos: é mais fácil passar um camelo na ponta de uma agulha que um rico entrar no reino dos céus» Mt 19:23,24

«Mas ai de vós ricos que recebestes a vossa consolação» Lc 6:24

Como ateu, não reconheço qualquer valor de ciência económica ao que está escrito nestes fragmentos do folclore mitológico dessa zona conflituosa onde hoje estão a Palestina e Israel. Mas quem acredita que os evangelhos são a palavra de Jesus tem de entender que a doutrina da ICAR continua, na boa tradição do seu passado, a ser incoerente com os evangelhos que reconheceu.

Se a ICAR não reconhece como evidência que, à luz do evangelho que declara sagrado, ser rico é pecaminoso, que credibilidade tem para quaisquer outras interpretações que questione da parte daqueles que fazem uma leitura crítica?

26 de Maio, 2006 Palmira Silva

Relativismo moral – I

Se, pois, os falsificadores de moedas e outros malfeitores são, a bom direito, condenados à morte pelos príncipes seculares, com muito mais razão os hereges podem não somente ser excomungados, mas também em toda justiça ser condenados à morte
Tomás de Aquino, Suma Teológica II/II 11, 3c

Desde o início do seu pontificado como Papa, o discurso de Ratzinger tem sido pautado pela denúncia daquilo a que chama «ditadura do relativismo», ou seja, supremacia da tolerância, da razão e ciência em detrimento do obscurantismo e totalitarismo da fé. Ratzinger que se lamentava não ser «bom sinal que muitos ambientes cristãos se caracterizem hoje não pela fé na Trindade, mas na fé de uma tríade repetida como mágica: ‘Paz, justiça, respeito pela natureza’» e que praticamente declarou guerra à modernidade, liberalismo (entendido como a democracia moderna) e liberdade de pensamento e consciência na homilia que deu início ao conclave que o elegeu.

O discurso do Papa é ecoado por algumas das suas mais beatas correias de transmissão, que com um ar de pseudo-superioridade moral rematam qualquer discussão para a qual não têm argumentos com a estafada e falsa afirmação de que «sim, tudo isso é muito bonito mas eu tenho valores, absolutos e universais, assentes na verdade revelada por nosso senhor. Tu não passas de uma relativista moral sem nada em que apoiares as tuas posições». Lembro-me por exemplo de um momento na Sic Notícias em que Maria José Nogueira Pinto disparou esta afirmação contra o seu oponente num debate sobre o aborto.

Na realidade, muitos dos apregoados «valores morais e verdades absolutas» da ICAR são-no muito recentemente. Algumas verdades absolutas do passado da ICAR foram desmistificadas (com grande oposição e muitas fogueiras inquisitoriais pelo meio) pela ciência, como o geocentrismo ou o criacionismo bíblico, mas também alguns «valores morais universais e absolutos» foram, com grande resistência, abandonados pela Igreja de Roma.

O anti-semitismo, a defesa da escravatura, a perseguição e assassínio de bruxos, hereges e apóstatas, a defesa do uso de tortura, a legitimidade das guerras «santas», a negação dos direitos dos homens, a defesa de regimes de «direito divino» e a condenação da democracia, a condenação da liberdade de expressão, a luta contra a emancipação da mulher, enfim, uma série de «erros» morais por alguns dos quais, difíceis de apagar dos livros de História, João Paulo II fez me(i)a-culpa.

Mas todas estas ex-verdades absolutas católicas só são reconhecidas hoje como abominações morais após muita resistência da Igreja, muitos discursos e encíclicas condenando os erros da modernidade, em tudo menos no assunto idênticas às prelecções contra a «ditadura do relativismo» do actual Papa. Que autoridade e credibilidade para falar em «valores morais universais e absolutos» tem uma Igreja que tantas vezes impôs «valores morais universais e absolutos» que hoje repudiamos? Que perseguiu, torturou e muitas vezes queimou como hereges os que se atreveram a questioná-los?

Que (i)moralidade existe então nas posições actuais da Igreja?