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A laicidade explicada aos católicos

Na sequência de uma «polémica dos crucifixos» que ficará na história das relações entre o Estado e as igrejas em Portugal, o Diário Ateísta (o blogue de referência para ateus, agnósticos e crentes não clericais) foi descoberto por uma turba de católicos com os quais tenho tentado manter diálogos construtivos – sempre com a minha paciência de ateu que anda desde a escola primária a explicar a católicos e outros que a virtude não depende da crença, e que o Estado não existe para resolver os problemas hipotéticos do «Céu», mas sim os problemas, indubitavelmente reais, da Terra.

Como alguns desses crentes não querem fazer o esforço de confirmar nos arquivos do Diário Ateísta o que afirmo efectivamente, talvez lhes aproveite explicar novamente que defendo a laicidade porque essa é a forma de conciliar a liberdade individual de todos: os que seguem a religião maioritária, os que aderem a uma religião minoritária, e os que não têm religião alguma. Só se o Estado for incompetente em matéria religiosa, se abstiver de se pronunciar sobre religião (quer assumindo símbolos religiosos quer apoiando uma confissão religiosa) é que seremos efectivamente livres de seguir esta ou aquela opção em matéria religiosa. Se assim não for, as confissões religiosas apoiadas pelo Estado terão vantagens indevidas, e a confusão entre espaços estatais – como a escola – e espaços privados – como as igrejas – instalar-se-á.

A distinção entre domínio público e domínio privado parece ser difícil para muitos católicos. E no entanto, é essencial que no domínio público (nos serviços públicos, nomeadamente) não haja qualquer coacção religiosa ou ideológica sobre os cidadãos, e que seja preservado o seu direito à privacidade em matéria de convicção. No domínio privado (e associativo), cada um faz o que quer e como quer, desde que não infrinja os direitos de outrem.

Muitos católicos afirmam, equivocadamente, que assim se interdita a expressão religiosa no «espaço público». No entanto, a laicidade é uma exigência de neutralidade do espaço estatal. As ruas, por exemplo, são um espaço público em que a manifestação de uma religião deve ser livre – desde que reste espaço para outras manifestações do foro privado (como as marchas do «orgulho guei») e para irmos trabalhar, às compras ou passear.

Outro equívoco consiste em confundir laicismo de Estado e ateísmo de Estado. Porém, tirar os crucifixos das escolas públicas, ao contrário do que dizem alguns católicos bastante disparatados, não é impor o ateísmo de Estado: é aprofundar a laicidade escolar. Impor o ateísmo de Estado seria fechar coercivamente as igrejas, proibir a prática do culto mesmo que em privado e colocar um cartaz em cada sala de aula com os dizeres «Deus não existe». Eu não defendo isso (e já agora, não conheço ninguém que o defenda).

A laicidade, tal como a entendo, inclui em si limites que não podem ser ultrapassados. Por exemplo, não se pode obrigar um cidadão a praticar ou não praticar um dado acto religioso. Embora, evidentemente, a liberdade religiosa não possa justificar que violações aos direitos humanos (como mutilações sexuais) não sejam consideradas crime.

Finalmente, a laicidade não é uma opção filosófica entre várias. É um tipo de regime. E não pode ser considerada uma ideologia, tal como a democracia – uma forma de governo – também não é considerada uma ideologia.

(A quem quiser aprofundar a noção de laicidade, sugiro a leitura de «Dieu et Marianne» ou «Qu´est-ce que la laïcité» ou qualquer outro livro de Henri Peña-Ruiz.)