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Dia: 20 de Novembro, 2005

20 de Novembro, 2005 Palmira Silva

Do esgotamento dos oráculos: Relativismos

O carácter mutável da justiça epicurista, relativista se quisermos, uma vez que para Epicurus a justiça deve reflectir as convenções (ou modelos) sociais vigentes, ou seja as verdades de cada época, nunca permeou o cristianismo uma vez que este assenta em verdades «reveladas», os tais supostos «valores morais universais e absolutos». Aliás para a Igreja católica, pela voz do Papa actual, que afirma ser o catolicismo apenas as doutrinas emanadas do Vaticano e rejeita o catolicismo «faça você mesmo», o «relativismo», ou a «ditadura» do relativismo e concumitante ateísmo, são o grande inimigo da humanidade.

Na realidade, o relativismo como entendido por Epicurus é o motor da construção de uma sociedade melhor e mais justa. Mesmo na Utopia há escravos, pena de morte, castigos corporais e completa submissão das mulheres aos homens… Porque os nossos modelos sociais, as verdades porque se regem as sociedades, reflectem simplesmente valores lógicos atribuídos a uma determinada proposição, por exemplo «É legitímo matar um apóstata?», num determinado contexto social. Na Idade Média não existiam dúvidas sobre a verdade desta proposição, hoje em dia, nas sociedades ocidentais, ela é reconhecida como uma barbaridade. Ou seja, a verdade não pode ser absoluta, porque ela é um conceito que emitimos sobre uma proposição e esse conceito é determinado pela conjuntura do momento.

O relativismo que, na minha opinião, é pernicioso não é assim o relativismo inerente à nossa evolução ética mas sim o relativismo que, no léxico do quotidiano, designamos por «dois pesos, duas medidas» ou duplicidade de critérios. Relativismo que caracteriza muitas das posições actuais da Igreja Católica, em que a verdade de uma proposição é estabelecida de forma falaciosa ou sofismática, como exemplificado pela posição da Igreja em relação à mulher, ao aborto, à homossexualidade, ao uso profiláctico de preservativos, ao direito à vida e à liberdade de expressão, etc..

Outra instância em que a duplicidade de critérios da Igreja católica é notória tem a ver com a posição em relação aos pedófilos que grassam no seu seio. A semana passada decorreu em Washington uma conferência dos bispos católicos americanos em que o actual presidente, o Bispo William Skylstad, referindo-se ao escândalo da pedofilia no clero americano e pesadas indemnizações decorrentes, afirmou para os seus pares «não há dúvida, irmãos, que estes últimos anos exerceram um pesado tributo sobre nós» não só relegando para o passado os abusos sexuais de menores perpretados por padres mas sugerindo falaciosamente que a Igreja é uma vítima inocente dos seus próprios crimes. Ignorando as vítimas reais dos abusos realizados, as crianças brutalizadas e, em alguns casos, assassinadas para esconder o abuso, como Daniel O’Connell e James Ellison assassinados pelo padre Ryan Erickson, cujos antecedentes de pedofilia tinham merecido da hierarquia católica … aconselhamento psicológico!

Mas as dioceses continuam a lutar para esconder a real dimensão da pedofilia no seu seio, mantendo secretos arquivos que são necessariamente não religiosos, quiçá tentando passar a opinião do actual Papa que afirmou «Estou convencido que as notícias frequentes sobre padres católicos pecadores [pedófilos] fazem parte de uma campanha planeada para prejudicar a Igreja Católica», mas certamente obedecendo ainda às determinações do actual Papa, debitadas em 2001 ainda como Cardeal Ratzinger, que ordenou ficarem em segredo pontifício todos os casos de abuso sexual de menores por parte de sacerdotes católicos, ou seja, ameaçou de excomunhão todos os eclesiásticos que revelassem às autoridades civis quaisquer detalhes sobre casos de pedofilia. Talvez por isso o Cardeal Basil Hume, que foi o responsável máximo da hierarquia católica em Inglaterra e país de Gales a partir de 1976 até à sua morte em 1999, encobriu os muitos abusos de crianças, algumas com menos de 10 anos, colocadas à sua guarda no mais prestigiado colégio católico britânico, Ampleforth, no qual viveu a maior parte da sua vida e do qual foi abade no período 1963-1976.

20 de Novembro, 2005 Palmira Silva

De Defectu Oraculorum ou Do esgotamento dos oráculos

La verità é sola figliola del tempo (A verdade é filha do tempo) Leonardo da Vinci

Thomas More, (1478-1535) o escritor e estadista inglês canonizado em 1935 como mártir da Igreja Católica em defesa da liberdade de pensamento (católico, claro) e patrono dos políticos, foi lorde chanceler, o mais alto posto judicial em Inglaterra, de 1529 a 1532. More foi destituído do cargo de chanceler por ter discordado de Henrique VIII sobre a separação da Igreja inglesa da autoridade do Papa e foi preso e decapitado em 1535 por recusar-se a aceitar a intenção de Henrique VIII de divorciar-se da rainha.

A filosofia de More encontra-se exposta com maior clareza no seu livro Utopia (escrito em 1516), uma apresentação de uma sociedade ideal (segundo os padrões da época, claro), com tónica na existência de justiça e igualdade para (quase) todos os cidadãos. Igualmente inovador para a época é o facto de More, um católico convicto que não seguiu os seus princípios expostos na Utopia, ter preconizado utopicamente a tolerância religiosa. Assim, os habitantes da Utopia professam diferentes crenças, desde a adoração de forças da natureza até a crença num único Deus. Todas as religiões são respeitadas e não existe conflito entre elas porque, como não poderia deixar de ser, não há uma religião oficial do Estado, condição necessária (mas não suficiente) para o estabelecimento de tolerância religiosa.

O que a maioria dos nossos leitores não saberá é que a Utopia de More tem uma influência marcada do filósofo proscrito pelo cristianismo, Epicurus, redescoberto na Renascença. A redescoberta de Epicurus, possível graças ao texto De rerum Natura de Titus Lucretius Carus, propiciou o desenvolvimento da ética, do direito e da ciência tal como os conhecemos, esta última especialmente após a «cristianização» do atomismo epicurista por Pierre Gassendi (1592-1655) (enfim, no século XVIII os jesuítas nacionais que detinham o monopólio do ensino proibiram o ensino das teorias blasfemas de Gassendi, a par das de Descartes e Newton).

«O direito natural é uma convenção utilitária feita com o objectivo de não se prejudicar mutuamente» (Epicurus in Máximas Fundamentais), ou seja, esta máxima de Epicurus, transmitida por Diógenes Laercio, afirma o carácter relativo da justiça, dependente das convenções sociais e, por isso mesmo, essencialmente mutável. O carácter convencional que o epicurismo atribui à justiça e às leis positivas, muito mais que um cepticismo relativista, foi o percursor da teoria do contrato social. Este é o aspecto principal do carácter jurídico do epicurismo que o situa assim entre os primeiros contratualistas e, talvez, os positivistas fenomenólogos do direito.

Em Thomas More, especialmente na Utopia, encontramos assim o retorno do epicurismo (e também da filosofia estóica) no sentido ético e do direito que não no científico. More cristianizou Epicurus, ignorou o seu ateísmo temperando a ética e o direito epicuristas com contribuições platónicas – Platão era o seu filósofo favorito, há muito cristianizado por Agostinho de Hipona. De facto, a rejeição de qualquer divindade, ou pelo menos da sua intervenção no mundo sensível, é a pedra basilar do epicurismo que explica o mundo sem transcentalidades, a partir dos átomos que o integram, sujeitos a leis naturais.

A morte nada significa para os epicuristas «A morte não é nada para nós, pois o que se dissolve está privado de sensibilidade e o que está privado de sensibilidade não é nada para nós.» (Epicurus, Máximas Fundamentais). Também por isso Epicurus foi proscrito e vilipendiado pela Igreja Católica a tal ponto que ainda hoje epicurista é um termo pejorativo, um desregramento de costumes, como podemos encontrar em alguns dicionários. Na realidade, no contexto da moral epicurista a virtude não é um fim, mas o meio de o atingir, sendo que o fim é a felicidade humana e a justiça, uma virtude, é um instrumento indispensável na obtenção dessa felicidade. Assim, o direito deve prescrever as acções que propiciem a felicidade ao maior número de pessoas, e proibir aquelas que são prejudiciais ao bem estar colectivo.