Loading

O problema do mal

O problema do mal é talvez um dos maiores obstáculos a qualquer crença razoável num deus omnipotente e bom. Para o efeito deste artigo não é necessário definir o «mal» enquanto conceito, vamos assumir apenas os pontos em que todos podemos concordar: desastres (sejam de origem natural ou humana), injustiças (como a discriminação sem causa) entre outras coisas são algo que todos nós dispensávamos. Para o ateu trata-se de simples factos da vida aos quais ele reage de acordo com a filosofia que escolhe para guiar a sua vida. Para o teísta típico a situação aqui torna-se muito complicada.

Claro que ao longo de milénios muitas organizações religiosas tentaram arranjar justificações para tais «acidentes» mas realmente nenhuma das desculpas pegou. As religiões do livro ao abandonarem as perspectivas teleológicas pré-clássicas e clássicas (quer se trate do caso babilónico em que todos os males são vistos como insatisfação divina – sendo que a morte era apenas um prolongamento da vida, incluindo o sofrimento – ou do caso grego em que se remete o mal para o acaso, o destino e os caprichos da natureza divina e humana – a morte neste caso é uniforme sendo que a todos espera o negrume do Hades onde se encontrarão num eterno estado de espera num mundo de sombras e cinza onde não se sofre mas onde também não se existe prazer) criaram uma impossibilidade lógica – o deus que é bom mas deixa sofrer as criaturas que supostamente ama.

Muito sofisma e retórica têm sido tecidos pelo clero à volta desta questão. De facto ela encontra-se tão mal explicada intelectualmente que regra geral remete os crentes para explicações simplistas mas obviamente insuficientes (os desígnios misteriosos do senhor, o evento em questão faz parte de um plano cósmico mais vasto – a tentativa clara, e frustrada acrescente-se, de dar sentido à morte ou ao sofrimento). As palavras do enigma de Epicuro continuam tão válidas como no dia em que fora escritas:

Deus quer acabar com o mal mas não é capaz?
Então não é omnipotente
É capaz mas não o quer fazer?
Então é malévolo
É capaz e quer fazê-lo?
Então de onde surge o mal?
Não é capaz nem quer fazê-lo?
Então porquê chamar-lhe Deus?

O cristianismo explica o mal através de duas ideias falsas mas que à primeira vista parecem resolver o enigma. Primeiro advogam a suposta queda do Homem de um estado de graça devido ao pecado original. Não é universal entre os crentes (aqueles que conhecem a sua religião – uma minoria com toda a certeza) o que é que esse pecado original realmente envolveria. Existe a versão da usurpação por parte do homem do conhecimento que só a Deus pertence enquanto outros falam de um afastamento do divino (com claros laivos de anti-laicidade à mistura). E em segundo lugar criaram a figura do livre arbítrio em que a vontade própria da criatura é a fonte do mal.

Nenhuma destas tentativas de «racionalização» da questão resolvem o problema. A omnipotência e Omnisciência excluem qualquer hipótese de erro divino, se o Homem falha é porque Deus assim o quis. A liberdade humana por essa perspectiva nada mais é que uma ilusão, a carne é fraca e o Homem está destinado a falhar e cair nas condenações infernais sádicas que povoam as realidades e os infernos dos monoteísmos violentos (o sadismo presente nessas visões resulta da sublimação de desejos reprimidos por um código (i)moral opressivo, e como tal é bastante frequente que as visões artísticas e populares do inferno ao longo do tempo reflictam esses impulsos que anseiam por ser satisfeitos e aproveitam todas as oportunidades para se manifestarem – a isso junta-se é claro o desejo de ver todos os que não se auto-flagelam como «os escolhidos de Deus» serem castigados pela felicidade e prazer que gozam).

Até aos dias de hoje o problema do mal é o mais flagrante exemplo de impossibilidade do deus do bem, aquele que é pessoal e guia o crente, o deus dos incautos. O problema em si mesmo não tem solução. Para negar a constatação que daqui resulta: «não há justiça» o crente refugia-se na crença no deus que tem que existir porque ele quer, porque precisa de um sentido exterior (devido à sua incapacidade de projecção directa da sua vontade pessoal). Para muitos crentes deus existe porque deveria existir. O argumento, por razões óbvias, não tem muitos adeptos nos círculos mais sérios.

O crente tenta vender ao ateu o seu maravilhoso mundo encantado em que a ilusão se sobrepõe à realidade, realidade essa que, em termos de atracção, jamais poderá competir com as fantasias que o Homem constrói. Cabe a cada um decidir se prefere permanecer lógico e sério ou se quer deixar-se intoxicar pelo ópio da irracionalidade. A realidade é sempre preferível a qualquer sonho por muito agradável que seja.