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Dia: 19 de Setembro, 2004

19 de Setembro, 2004 Mariana de Oliveira

O que as Renas e os Veados dizem a Marcelino

A opinião do Boss, colaborador do Renas e Veados, ao artigo de António Marcelino, que podem ler no post anterior.

Humanismo selectivo

Fui alertado pela Palmira, colaboradora do Diário Ateísta (gosto do novo look), para um artigo do sr. António Marcelino, bispo de Aveiro, publicado hoje n’O Primeiro de Janeiro. A coisa chega a ser delirante, de tão esquizofrénica.

O sr. Marcelino começa por escrever «Felizmente que vivemos num regime de liberdade de consciência e de expressão» – palavras que poucos bispos sentirão de facto, e entre estes não estará certamente o dito.

Voilá! «Assim se justifica socialmente a associação dos ateus, as diversas associações dos homossexuais, os grupos de luta pró-aborto, a militância organizada pelos direitos dos que vivem em união de facto e tantos outros acontecimentos, uns mais recentes que outros. É curioso, porém, verificar que estes grupos e outra gente que navega em águas vizinhas, à medida que defende para si direitos de plena cidadania, os nega a outros portugueses, esforçando-se por fechá-los e às suas convicções, nos espaços privados das sacristias de cada um.»

Uns são “outra gente”, e os bispos são “outros portugueses”. Claro que “esta gente” não nega nada a ninguém, claro que os “bispos portugueses” podem escrever o que bem entendam nos jornais portugueses e até estrangeiros, mas isso é o que importa distorcer. A ideia que “estes bispos” querem passar é que a igualdade de direitos para tod@s, homens e mulheres, hetero e homossexuais, é na verdade uma negação de direitos aos “outros portugueses” – mesmo que rigorosamente nada lhes seja retirado.

De notar ainda que esta associação que o sr. Marcelino faz entre o ateísmo e as associações lgbt é um claro apelo à homofobia, colando gays e ateus, descola os homofóbos do ateísmo, e os gays (visíveis) da igreja católica.

«A tentação dos dogmatismos, novos e velhos, misturada com esse orgulho genético que torna impossível o dom da fé, é sempre prova de fraqueza ou deslocação dos pontos de apoio. Os motivos para acreditar não estão situados na cabeça, mas no coração, expressão do que anima a vida e lhe dá sentido e tempêro. A inteligência ou é também emocional, ou não é humana, nem favorece a vida do homem e as relações mútuas.» – Someone please call 911!

Um bispo a falar em “tentação do dogmatismo”!?! Seguindo para o “dom da fé”!?! Se for legal o sr. Marcelino devia dizer o que anda a tomar, porque às vezes sabe bem entrar na Twilight Zone, e há para aí muitas mezinhas de convento esquecidas e subaproveitadas, será uma dessas?

Deve ser: «Porém, quando se corre o tejadilho que impede olhar para o alto, deixa de se procurar e de contemplar o transcendente. O homem que só olha para si, vale menos e dá menos valor aos outros homens. A dimensão e o valor da pessoa não têm em si suas raízes.»

Resumindo, quem não acredita em d*** vale menos (deverá ter os mesmo direitos?) e quem acredita e olha para d*** tem maior dimensão e valores humanos, assim tipo terroristas de Beslan, I guess…

É óbvio que não digo o contrário do sr. Marcelino, ou seja, não digo que ser ateu implica por si só ter maior valor e sentido humanista do que um crente. Mas digo que “crença a mais” retira de facto o sentido humanista às pessoas, o exemplo dos terroristas da Ossétia do Norte é perfeito. Quanto aos ateus pouco humanistas, esta falta de humanismo, solidariedade etc nada terão que ver com o facto de não acreditarem em d***, mas apenas com o facto de também não acreditarem nas pessoas. O humanismo e solidariedade é conseguido e praticado entre pessoas de carne e osso, e é conseguido e praticado tratando as pessoas sem discriminações, sem dizer que alguém vale menos que outro, porque não acredita em d***.

Desprezar d*** não magoa ninguém, já desprezar grupos de pessoas magoa muita gente. Onde pára o seu humanismo sr. Marcelino?

19 de Setembro, 2004 Mariana de Oliveira

O que diz Marcelino

Vem hoje publicado, n’O Primeiro de Janeiro, um artigo de opinião de António Marcelino, bispo de Aveiro, em que o cavalheiro discorre acerca da criação de uma associação de ateus em Portugal.

Será enviada e colocada à vossa disposição, atempadamente, uma resposta ao senhor bispo. Até lá, eis o texto:



O ateísmo português, constituído em associação

por António Marcelino, bispo de Aveiro

Os jornais noticiaram a criação recente de uma associação de ateus, com o título “Associação República e Laicidade” [errata: a associação de ateus que aqui é tratada encontra-se em fase de criação. A Associação República e Laicidade, essa já criada, reúne crentes e não crentes que defendem os valores de um Estado republicano e laico]. Nos propósitos levados à comunicação social, diz-se que os ateus em Portugal, a avaliar pelo censo de 2001, serão 250 mil, que o ateísmo junta pessoas que partilham ideias sobre o cepticismo, o agnosticismo e o laicismo e que não têm motivos para crer em Deus. Vai-se dizendo, ainda, que associação está contra a Concordata, pois esta é “uma subtracção de direitos do jogo democrático”.

Felizmente que vivemos num regime de liberdade de consciência e de expressão, no qual ninguém deve ser penalizado por acreditar ou não acreditar, por ser aderente desta ou daquela religião ou por não professar qualquer religião.

O fenómeno do ateísmo não é recente. Tem história que vem de longe, com matizes diversificados no tempo e segundo as influências ideológicas em que se inspira. O Concílio Vaticano II, propondo-se “investigar a todo o momento os sinais dos tempos e interpretá-los à luz o Evangelho”, debruçou-se com muita seriedade e serenidade sobre o ateísmo, antigo e moderno, e procurou tirar, da sua reflexão, conclusões orientadoras.

O avanço dos estudos antropológicos, a nova visão crítica da história que não reduz esta a um amontoado de factos e de datas, nem lhe corta a sua dinâmica interior e, por fim, a abertura necessária ao diálogo, com todos quantos o queiram fazer sem preconceitos e numa atitude de respeito, questionamento e procura, permite ir mais longe na consideração dos problemas que afectam profundamente o ser e o agir humano, e convidam ao entendimento construtivo entre pessoas honestas, qualquer que seja a sua raça, cor, língua, cultura, confissão ou não confissão religiosa.

O que se está passando agora e que bem se compreende, dado o contexto social em que vivemos, é a necessidade de afirmação pública do que se crê ou do que se vive, e que, até há pouco, mais fazia parte do íntimo e do privado de cada pessoa. Assim se justifica socialmente a associação dos ateus, as diversas associações dos homossexuais, os grupos de luta pró-aborto, a militância organizada pelos direitos dos que vivem em união de facto e tantos outros acontecimentos, uns mais recentes que outros.

É curioso, porém, verificar que estes grupos e outra gente que navega em águas vizinhas, à medida que defende para si direitos de plena cidadania, os nega a outros portugueses, esforçando-se por fechá-los e às suas convicções, nos espaços privados das sacristias de cada um.

A nova associação anuncia, logo ao nascer, militância aberta em relação aos crentes, porque os ateus, eles sim, é que “valorizam a humanidade e a vida na Terra, como um bem natural, sem qualquer intervenção divina”. Acrescentam ainda que “os deuses são criações da imaginação dos homens como quaisquer outras abstracções”.

A tentação dos dogmatismos, novos e velhos, misturada com esse orgulho genético que torna impossível o dom da fé, é sempre prova de fraqueza ou deslocação dos pontos de apoio. Os motivos para acreditar não estão situados na cabeça, mas no coração, expressão do que anima a vida e lhe dá sentido e tempêro. A inteligência ou é também emocional, ou não é humana, nem favorece a vida do homem e as relações mútuas. Os fundamentalismos são a cegueira de um raciocínio unidimensional, que já nada tem de humano e por isso não tem por que respeitar nem a vida própria, nem a dos outros.

Sei bem que o ateísmo pode ser humanista e que assim é em muitos que se dizem ateus. Porém, quando se corre o tejadilho que impede olhar para o alto, deixa de se procurar e de contemplar o transcendente. O homem que só olha para si, vale menos e dá menos valor aos outros homens. A dimensão e o valor da pessoa não têm em si suas raízes.

Há que alimentar estas, aí onde elas nascem e onde começam a ter e a gerar vida.»

19 de Setembro, 2004 Mariana de Oliveira

TPI Ruanda julga padre genocida

Pela primeira vez, o Tribunal Penal Internacional para o Ruanda julgará, a partir de amanhã, um responsável religioso católico acusado de ter participado activamente no genocídio de 1994. Este processo permitirá lançar luz sobre a actuação de alguns «homens de Deus» na chacina que arrasou aquele país africano, maioritariamente católico, quatro anos depois de uma visita de João Paulo II.

O padre Athanase Seromba, de etnia hutu, é acusado de ter preparado e supervisionado, juntamente com responsáveis locais, em Abril de 1994, a matança de mais de 2000 tutsis que se tinham refugiado na igreja da paróquia de Nyange. O religioso é também acusado de ter destruído parte do templo com uma escavadora cujo desabamento da estrutura sobre os fieis esteve na origem de um dos massacres da história do genocídio que causou 800 000 mortos entre os tutsis e hutus moderados, segundo a ONU.

Seromba abandonou o país antes da vitória dos rebeldes tutsis da Frente Patriótica, em Julho de 1994, e que acabou com o genocídio. O padre esteve primeiro refugiado na actual República Democrática do Congo, depois no Zaire e, finalmente, encontrou asilo em Florença onde lhe foi dada uma pequena paróquia na Toscana. Antes de se entregar, em 2002, à Justiça, a Itália recusou-se a aplicar um mandado de prisão internacional emitido pelo TPIR.

A Igreja Católica sempre insistiu na presunção de inocência dos seus membros e mostrou-se deveras reticente em prestar colaboração com as entidades judiciais dos diferentes países acusadores. No caso do padre ruandês, a alta hierarquia católica sempre o apoiou, afirmando que nada demonstra a sua culpabilidade.

Questionado acerca do apoio do Vaticano ao genocídio do Ruanda, o porta-voz do TPIR, Roland Amoussouga, disse que «não é um processo sobre o Vaticano, é um processo sobre o indivíduo» e reiterou que «é o indivíduo e não a instituição que está em causa» e que o «Vaticano nada tem a ver com este assunto».

A provarem-se os factos constantes na acusação, é grave ver indivíduos que fazem parte da ICAR envolvidos nestes trágicos acontecimentos e ver que as mensagens de tolerância que são propagadas pela Igreja são vazias de significado. Na verdade, raramente o tiveram e raramente foram seguidas por ela.

19 de Setembro, 2004 Carlos Esperança

Crónica Piedosa

A Senhora do Monte

Nas aldeias da Beira Alta era hábito rezar, pelas intenções plenárias de cada mês, nas primeiras sextas-feiras de nove meses consecutivos, ir ao confesso e à eucaristia e, assim, alcançar as indulgências exigidas para a salvação da alma. Podia parecer injusto pôr garotos a rezar por pecados dos adultos, mas já se sabia que outros garotos o fariam quando adultos se tornassem esses para apreciar os pecados. Ficavam as rezas para as mulheres, que sempre as fariam, para os que ainda não sabiam pecar e para os que, sabendo, já não podiam. Era assim, há meio século, e disso se não livrou a criança que fui. Além das devoções locais outras havia que se cumpriam em paróquias próximas, que os transportes não permitiam lonjuras, com dia certo e local aprazado. A Senhora do Monte era um desses destinos.

Guardo da infância o gosto por romarias. Os santos domiciliavam-se no alto dos montes para ficarem a meio caminho entre os devotos que lhes pediam e o céu que os atendia. Eram mensageiros dedicados, imóveis numa peanha, ouvindo queixas, aceitando petições, a aliviarem o sofrimento. Raramente eram solicitados além das suas posses e, se soía, resignavam-se os mendicantes. Quanto mais perto do céu, maior respeito infundiam, mais petições recebiam, maiores expectativas geravam. Eu ficava a imaginar do que seriam capazes os que habitavam no cimo de montanhas muito altas, que sabia haver, sem cuidar das dificuldades de acesso dos requerentes.

Durante o ano, os santos concediam graças que eram agradecidas em Agosto com foguetes, missa e uma romaria profana que irritava os padres e alegrava os santos. Mas, de tanto pedirem, foi-se Deus cansando de os ouvir, primeiro, desinteressaram-se os crentes de implorar, depois, ou, talvez, a sangria da emigração converteu em deserto o terreno fértil da fé. É com saudade que recordo as ermidas abandonadas que outrora atraíam à sua volta feiras e procissões em confronto dialéctico do sagrado com o profano numa síntese admirável de que só o mundo rural era capaz.

A Senhora do Monte pertencia à paróquia da Cerdeira. Às vezes os santos tomavam as dores dos paroquianos e geravam a desconfiança dos vizinhos, mas não era o caso, por ser de concelho diferente e não haver rivalidades entre as paróquias.

Saíamos da Miuzela do Côa, manhã cedo, descíamos a aldeia, passávamos pela capelinha de S. Sebastião, deixando à direita, encostada ao cemitério, a vinha do passal que, no tempo da República, Paulo Afonso comprou à autoridade administrativa, valendo-lhe a excomunhão eclesiástica, vingança do pároco que reclamava a vinha e o regresso da monarquia. Viveu o réprobo em paz, sem que o anátema o apoquentasse, até ao dia em que teve de pedir a desexcomunhão, para que o filho pudesse franquear o seminário, custando-lhe a canónica amnistia outra vez o valor da vinha.

À beira do caminho havia agricultores, inquietos com a romaria, a guardar os melões, que a rapaziada cobiçava, e, ao longe, entre giestas, lobrigavam-se cachopas, deambulando à espera do encontro apalavrado, talvez mesmo alguma coitanaxa aflita por tornar-se dona.

Íamos pela fresca e regressávamos tarde, de estômago menos vazio, com fritos e vinho a justificarem a jornada, esquecida a devoção, a tropeçar nas pedras em noites de lua nova. Atrás de nós via-se um clarão, vindo da Guarda, à distância de seis léguas, no alto do monte onde chegara a luz eléctrica, com a ermida de onde voltávamos perdida na escuridão da noite.

A Senhora do Monte há muito que não fazia um milagre de jeito mas tinha festa rija e um passado de respeito. Um dia o fogo subiu o monte impelido pelo vento e envolveu a capela, com gente aflita a orar. Abriram as portas e redobraram as orações, que em tempo de aflição se reza mais depressa para compensar a desatenção e acompanhar a ansiedade. Deixaram que a virgem visse o fogo e este a virgem. Foi então que as chamas baixaram e logo o fogo se deteve, enquanto, maravilha das maravilhas, prodígio nunca visto, começou o fogo a recuar e, à medida que a terra desardia, tornaram as plantas que a cobriam.

A Santa, por ter-se cansado ou perdido o jeito, renunciara aos milagres, mas os crentes não perdiam a fé de a ver regressar ao ramo e fazer jus à glória antiga. Ainda assim era muito solicitada por raparigas solteiras que lhe imploravam para as livrar da prenhez que em horas do demo pudessem ter contraído. Foi como contraceptivo de eficácia duvidosa que conheci a Senhora do Monte nos tempos em que lhe engrossei a romaria.

Crónica expressamente escrita para o «Diário Ateísta», dedicada aos meus leitores.