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Causa Primeira

A maior parte dos crentes admite que é impossível provar a existência de Deus. Alegam que faz sentido crer, mesmo sem provas, atitude essa que já critiquei no meu artigo “Crença, Racionalidade e Fé”.

Existe uma minoria de crentes que, pelo contrário, acredita que se pode provar a existência de Deus. Tendo em conta que considero que a existência de um Deus pessoal (como o judaico-Cristão, Alá, etc…) tem aproximadamente o mesmo grau de plausibilidade que a do Pai Natal, a existência dessa minoria é algo que me deveria espantar, não fosse o facto de estar já acostumando à sua existência.

Mas será que as “alegadas provas” são mais do que argumentos com falhas lógicas, premissas questionáveis, afirmações sem fundamento? Considero que não. Mas importa considerá-los.

O argumento

Já vi muitas formulações e variações deste argumento.

A ideia geral é partir da pergunta “O que é que deu origem ao Universo?”. Caso a pergunta tenha uma resposta do género “foi X”, perguntar-se-á: “E o que é que deu origem a X?”. Argumenta-se que a Ciência sempre esbarrará nesta pergunta, mesmo que descubra a resposta para um ou dois passos intermédios, e que a única resposta satisfatória e definitiva é “Deus criou o Universo”.

A refutação

A refutação é simples: basta perguntar “O que é que deu origem a Deus?”. Claro que o crente responderá. Mas a resposta usa artifícios que desafiam a lógica – “Deus criou-se a si próprio”, “Deus sempre existiu” ou “Deus criou o Universo juntamente com o tempo, por isso não faz sentido falar em termos cronológicos na situação que antecede a criação” ou mesmo “Deus está fora do tempo, pelo que não teve de ocorrer a criação dele” são respostas “típicas” para esta pergunta.

A grande questão é que qualquer destas respostas seria inadmissível da parte do outro interlocuctor como resposta satisfatória para o Universo: “O Universo criou-se a si próprio”, “O Universo sempre existiu”, “O tempo surgiu com o Universo, pelo que não faz sentido falar em termos cronológicos na situação que antecede a criação”, ou mesmo “O Universo abarca todos os tempos, pelo que não é objecto de uma análise cronológica além da singularidade que lhe deu origem” seriam respostas JUSTAMENTE consideradas insatisfatórias.

A única razão que leva alguém a acreditar que este argumento faz sentido é a duplicidade de critérios que quase que aceitamos intuitivamente – espera-se que o Universo se comporte de forma lógica e racional, e que as respostas acerca deste sejam lógicas e coerentes para serem satisfatórias, mas ninguém espera que Deus tenha de se comportar dessa forma, chamando a todos os paradoxos incoerências e outras respostas erradas do ponto de vista lógico “mistérios”.

Análise – Religião como analgésico para a curiosidade

À pergunta “O que é deu origem ao Universo” pode dar-se uma ou outra resposta. Mas se nos perguntarem o que é que deu origem a isso vamos chegar a um ponto em que a resposta mais sensata é NÃO SEI.

Os seres humanos não gostam de sentir que não compreendem o mundo que os rodeia. Por isso têm duas atitudes possíveis perante os mistérios que não compreendem:

1- Tentam compreender

2- Tentam pensar noutras coisas

Considero a primeira atitude a mais saudável e profícua. A Ciência e a Civilização nascem dessa atitude perante o incompreendido.

No entanto, o caso exposto é uma das situações em que a Religião faz o oposto: em vez de ir à procura daquilo que deu origem ao Universo, admitindo a sua ignorância enquanto não tem a resposta, a Religião limita-se a “inventar” uma resposta cheia de paradoxos e incoerências lógicas às quais chama mistérios que classifica de profundos. Para ideias que nem sequer podem ser consideradas racionais, a Religião classifica-as gratuitamente de estarem “além da racionalidade”. Uma verdadeira promoção da preguiça intelectual!

Claro que isto não é novo. A Religião sempre encorajou a atitude 2, quer quando atribuía a Prometeu o fogo, quer quando atribuía a Thor o trovão, quer quando atribuía a Anubis as cheias do Nilo e a Seth a secas. A Ciência foi descobrindo a causa das coisas e a Religião foi recuando para os campos aos quais a Ciência AINDA não responde.

Actualmente o uso do argumento da causa primeira mostra claramente que esta dinâmica ainda se mantém!