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Do Império Ocidental e do primado papal

Uma das mais velhas pretensões da Igreja Católica, e mais precisamente do papado, é a da universalidade do seu domínio sobre a fé cristã. Tal princípio não é apenas um ponto importante mas a base essencial das suas acções políticas ao longo de séculos. Mas obviamente o facto de ser importante ou fundamental não significa que seja inegável.

É aceite que a maior ameaça a esta posição veio do verdadeiro herdeiro do Império romano, o Imperador de Bizâncio. O Império Bizantino conseguia conjugar três conceitos importantes: o Helenismo, o Romanismo e o Cristianismo; todos juntos explicam a verdadeira posição do Oriente no mundo medieval imediatamente após a queda de Roma. O Imperador Oriental era considerado o autocrata a quem a divindade havia dado o poder absoluto para governar o mundo romano e cristão. Interna e externamente era o único monarca verdadeiramente autónomo.(1)

Esta autonomia tem duas vertentes e no seu lado interno significava que tudo o que se passava dentro do Império era assunto do Imperador, o que obviamente incluía o cristianismo – que nesta altura já tinha sido absorvido pela máquina administrativa do estado. Em última análise todas as questões eclesiásticas seriam resolvidas pessoalmente pelo Imperador. Externamente a autonomia significava que não poderia existir nenhum outro governante além do Imperador Bizantino que pudesse legitimamente pretender ser senhor do mundo (dominus mundi).

Ora quando no século V d.c. o papado começou a tornar evidente a sua rejeição da posição do Imperador enquanto vice-regente de Deus na Terra criou um primeiro cisma (muitos mais viriam até à separação final e total). Esta oposição do papado à interferência do Imperador em assuntos eclesiásticos equivalia pura e simplesmente a laesio divinae majestatis (crime de lesa majestade divina), o que em termos seculares seria julgado como alta traição. É bastante claro que o papado só pode tomar esta “brava” decisão depois da extrema decadência e queda do Império do Ocidente, já que antes dessa data não passava de um súbdito imperial. Com o abandono romano (e grego) da península italiana os laços de dever perderam força e o papado não encontrou ninguém que verdadeiramente se pudesse opor às suas pretensões (apesar de os bizantinos terem por várias vezes tentado recuperar algumas das suas províncias ocidentais foram esforços que no fim se revelaram inúteis). A queda da civilização romana ocidental tornou a Igreja corajosa. Mais que corajosa, ambiciosa.

Com o tempo os representantes da Igreja encontraram a disponibilidade e os argumentos que acabariam com qualquer laço de dependência, teórica ou real, para com Bizâncio. A principal acção neste campo foi a (re)criação de um Imperador ocidental. Tal posição não existia de forma natural, de facto não passa de uma criação papal – como poderia racionalmente existir um segundo monarca com plena autonomia se o único que poderia reclamar esse poder por tradição ainda se encontrava vivo? Os próprios requisitos para ascender ao cargo (tal como Carlos Magno em 800 d.c.) eram a lealdade para com Roma e aceitação implícita do primado romano face ao Oriente e aceitação explícita do primado político do papa no Ocidente (já que o cargo era outorgado pela autoridade religiosa é natural que, em última análise, o poder secular dependesse dela em todas as esferas).

Estes foram os primeiros passos da luta de independência papal face ao único e verdadeiro herdeiro do Império Romano: Bizâncio. Mais tarde os próprios reis germânicos que tinham abraçado a causa papal como justificação do seu poder dinástico no interior dos seus reinos e como desculpa para se expandirem (o caso mais gritante é expansão alemã para leste, esmagando os povos eslavos em nome da expansão da influência “espiritual” de Roma) encontraram-se presos nas amarras que criaram – as décadas de luta entre os Hohenstaufen e os papas são o caso mais claro; infelizmente para os líderes germânicos a sua luta por independência foi um rotundo fracasso e acabaram por ter que literalmente arrastar-se aos pés do papa e implorar por perdão.
Mas em política e teologia as coisas mudam e sem poder físico para a manutenção das pretensões estas não passam de birras de governantes despojados de toda e qualquer relevância. Quer falemos do papas quer dos Imperadores Orientais a dominância das suas posições só foi uma realidade enquanto conseguiram manter uma supremacia política e militar nas respectivas áreas de influência. O velho adágio que diz que a História é escrita pelos vencedores mostrou-se mais uma vez correcto.

(1) W. Ullmann – Mediaeval Political Thought