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Dia: 28 de Março, 2005

28 de Março, 2005 Carlos Esperança

O Papa e a bênção

No domingo, o Vaticano submeteu o Papa a uma ignóbil e sádica tortura. Exibiram-no à janela dos seus aposentos, após um diácono o ter anunciado, para dar a bênção e o perdão a todos os que se encontravam no local ou viam a cerimónia pela televisão. Não se duvida da ânsia com que a clientela aguardava a bênção e, muito menos, da necessidade que tinham de perdão. Cada um sabe o peso da sua consciência.

O que a Cúria devia saber é que não se submete um moribundo a trabalhos forçados, não se exibe o sofrimento como os mendigos profissionais que alugam deficientes para comoverem os transeuntes e aumentarem o óbolo, não se explora a dor para gáudio de uma multidão ensandecida pelo martírio do seu Deus. A bênção Urbi et Orbi, de grande efeito mediático e enorme regozijo para os créus, ficou por dar e as palavras por dizer.

Os cardeais que exploram o negócio dizem que JP2 continua a dirigir a ICAR e que mantém intactas as faculdades intelectuais. Só quem crê na virgindade de Maria, na ressurreição e nos dogmas é que acredita na impostura e não vê a crueldade a que sujeitam o ancião.

A ICAR diz que é uma forma de afirmar ao mundo que respeita a velhice e a dignidade dos enfermos. Não é a hipocrisia que mais choca, é a insensibilidade e a barbárie que ferem. Todos vêem que não é o velho autocrata que decide, são os sinistros dignitários da Cúria romana que escrevem o guião de uma tragédia humana cujo objectivo é transmitirem a morte em directo.

Que gente, que bando de tartufos se esconde sob as vestes talares, que pessoas sem coração se prestam a escrever as cenas do último capítulo de uma vida que se esvai em inaudito sofrimento! Forçar as aparições públicas de JP2 não é uma prova de respeito, é uma requintada manifestação de malvadez.

28 de Março, 2005 fburnay

Em nome do Tabu

Quando vi na televisão o cardeal patriarca falar do facilitismo com que a sociedade olha para as questões da vida, deu-me vontade de rir. Aqueles que se preocupam realmente com a problemática do aborto e da eutanásia fazem-no sem esquecer que a vida é humana se for digna. Facilitismo, para mim, é reduzir toda a questão a um mistério divino, entregando o debate à exclusividade dos teólogos (prática habitual das religiões) e criar um tabu para aliviar a sociedade da carga do raciocínio e o clero do perigo do livre-pensamento. Frequentemente acusados de reducionismo biológico, os que olham para a eutanásia como último recurso para o fim do sofrimento de uma vida que quer terminar dignamente, são acusados por aqueles que, em nome de escrituras bolorentas e ideais tacanhos e medievais, reduzem a vida de um indivíduo indepentente e livre à propriedade intocável de um Deus desconhecido.

O que me indigna é ver aqueles que reclamam a minha vida e a dos outros para o seu Deus particular aceitarem tão bem manifestações de fé que resultam em auto-flagelações, umas mais violentas que outras, todas igualmente decadentes. Se o Papa se quer arrastar em sofrimento em nome da sua fé, acham muito bem. Se uma idosa se quer arrastar metros sem fim de joelhos, à entrada do seu templo, acham natural e louvável. Mas se uma pessoa amarrada a uma cama décadas seguidas, completamente dependente de terceiros para as necessidades que qualquer um de nós tem como adquiridas, pedir para pôr termo à sua vida de sofrimento e humilhação, indignam-se e protestam. Quando uma mulher se recusa a usar o preservativo, em fiel obediência à homilia da sua igreja, tendo contraído o vírus da Sida do seu marido seropositivo, consideram-na uma mártir, um exemplo. Já à mulher vítima de violação, sem meios para educar um filho que não desejou, estigmatizada para a vida, que pede para não ser mãe do filho daquele que a violentou, vejo muitos recusar tal escolha, em nome de tão misterioso mistério.

A falta de coerência, de facto, dá-me vontade de rir. A insistência do clero numa tese dogmática, provinciana, irrealista, que pretende impingir à sociedade que critica por esquecer os valores que gostaria que adoptasse, espanta-me. Disse o cardeal patriarca em entrevista à agência Ecclesia, a respeito do referendo ao aborto, que «Quem disser que sim tem uma responsabilidade tremenda, porque o primeiro dever que tem é esclarecer-se, é perceber que o que está em questão não é resolver problemas (até porque não os resolve imediatamente)». E quem disser não? Livra-se da responsabilidade? Sim, porque como se pode ler na mesma entrevista, quem não enfrenta as dificuldades é que legaliza o aborto e a eutanásia, é que minimiza o sofrimento. Lá que Igreja não nega o sofrimento, disso, não tenho a menor dúvida.

28 de Março, 2005 Mariana de Oliveira

O humano

Na homilia de domingo, o cardeal-patriarca de Lisboa, José Policarpo, criticou a «moda» da redução da figura de Jesus Cristo à sua condição humana e defendeu que essa leitura, contrária aos Evangelhos, «destrói a fé» católica. Para Policarpo, «Jesus Cristo voltou a estar na moda na literatura, na arte, nos media, que procuram apresentá-lo apenas como um homem, extraordinário porventura, mas sujeito aos limites da raça humana», moda esta que é o resultado de um contexto cultural «que dificilmente aceita a dimensão transcendente da vida».

A divulgação de uma outra perspectiva, mais humana e mais próxima do cidadão comum, põe em causa um dos dogmas mais importantes do cristianismo: o da divindade de Cristo. Este estatuto foi decidido no primeiro concílio de Niceia, convocado por Constantino em 325, que definiu este credo ou símbolo de Niceia e, assim, negou o Arianismo. Esta doutrina defendia que Cristo não era verdadeiramente divino, mas um ser criado. De acordo com Arius, apenas o Pai é imutável e existente por si mesmo e o Filho é apenas uma criatura com um princípio. Pelo contrário, o concílio de Niceia condenou Arius e declarou que o Filho tem a mesma substância que o Pai.

Talvez por ter sido uma das questões fracturantes do início da cristandade seja ainda difícil a alguns membros da hierarquia católica lidarem com uma perspectiva que aproxime Jesus Cristo ao cidadão comum, assim, o torne num homem com virtudes e defeitos como qualquer um.

28 de Março, 2005 Palmira Silva

Farinha do mesmo saco: mais um caso de blasfémia!

Os organizadores de uma exposição de arte no Museu Sakharov intitulada «Cuidado! Religião» foram condenados por blasfémia por um tribunal de Moscovo.

A exibição de Janeiro de 2003 tinha sido condenada pela Igreja Ortodoxa Russa e vandalizada por seis fundamentalistas ortodoxos que destruíram as obras de arte em exposição e que não foram julgados por este acto de vandalismo.

As peças que tanto indignaram a hierarquia da Igreja Ortodoxa que considerou criminosa a exposição acrescentando que «encoraja o extremismo e a intolerância» são simplesmente um ícone com um buraco onde os visitantes podiam inserir as respectivas caras, um logótipo com uma garrafa de Coca-Cola ao lado de uma efígie do mítico fundador da seita com os dizeres «Isto é o meu sangue» e a escultura de uma Igreja feita de garrafas de vodka.

Claro que a vandalização do museu que honra um dos mais conhecidos defensores dos direitos humanos na era soviética não mereceu tais epítetos, não sendo nem criminosa nem extremista ou intolerante, mesmo quando o mural em honra de Sakharov foi conspurcado com slogans obscenos e anti-semitas.

Mistifica-me que os crentes não se apercebam do absurdo que é acusar outrem de intolerância por não consentir na sua verdade absoluta, totalitária e intolerante! Ou seja, considerarem que quem não acredita na religião deles e o manifesta é intolerante! e que a sua religião que é por definição intolerante para quem não crê (como o comprovam estes casos de blasfémia) é o expoente máximo da tolerância!

28 de Março, 2005 Palmira Silva

Momento Zen de Segunda

Vanitas vanitatum, et omnia vanitas

Com o habitual frémito de segunda abri as páginas virtuais do Diário de Notícias (DN) em busca da opinação que me proporciona o meu momento zen semanal. E esta semana vale mesmo a pena, já que o Prof. João César das Neves se excedeu. Usando como inspiração o mito de Tomé, e num texto que parece dirigido aos ateístas, J.C. das Neves desdobra-se nas falácias que caracterizam o seu estilo inigualável mas que desta vez, de tão contraditórias, têm um efeito contraproducente.

Se não vejamos:

«A cada momento, e de múltiplas formas, muitas pessoas querem justificar-se por não aderirem ao grande movimento civilizacional que nasceu do acontecimento pascal, o maior processo global que o mundo jamais viu. E essa justificação é, simplesmente, porque não vêem nada. Vivemos num tempo científico, objectivo, realista…»

Neste parágrafo o professor admoesta-nos condescendentemente com um Argumentum ad Antiquitatem/Ad Numerum e lamenta o efeito pernicioso do pensamento científico no florescer da fé. Como já o tinha feito na sua homilia em que menoriza um dos cientistas nacionais de maior prestígio, António Damásio.

Seguidamente o professor mimoseia-nos com aquela que é talvez a pérola mais redonda da sua opinação de segunda:

«Tomé, tal como os nossos contemporâneos, não se dá conta da falta de lógica da sua posição. Se ele visse, não precisava de acreditar. Uma pessoa que observa reconhece, admite, aceita, mas já não consegue crer. Quem vê perde a possibilidade de acreditar.»

Misturar lógica num discurso construído à base de falácias é algo que não esperaria de um docente universitário, mas, como a sua elegia pretende mostrar, fé e razão são incompatíveis quiçá daí o deslize… de qualquer forma, neste parágrafo o Dr. das Neves adverte-nos dos perigos do método científico e da procura das evidências da existência do seu Deus. Mas estraga o ramalhete quando mais à frente nos indica essas mesmas «evidências», cuja procura (e inexistência), segundo o inenarrável opinador, é a fonte da céptica actualidade e contrária à fé: «A presença de Deus é evidente. A beleza magnífica da Criação, a grandeza paradoxal da Humanidade, a versatilidade inesperada da bondade».

Ou seja, para além de sugerir ser adepto do princípio antrópico e do desenho inteligente, o spin doctor de estimação do DN tenta desesperada e incipientemente mostrar que a saída do obscurantismo imposto pela mesma religião de que ele nos tenta impingir os dogmas é indesejável já que «A triste condição da Humanidade é a de ansiar sempre, por múltiplos modos e formas, à felicidade que só se pode ter na contemplação definitiva do Deus soberano». Mas como «um dos maiores dons que Deus nos deu, Ele que nos cumulou de mais graças do que podemos reconhecer, é precisamente o dom de não vermos» então «Temos mais mérito que Tomé», não obstante a reconhecida (e pleonástica) «grandeza do grande São Tomé».

O circunlóquio de êxtase místico, livre de qualquer contaminação de racionalidade, que é este «O dom de não ver» conclui que «essa terrível maldição» de procurar a felicidade que nos afasta de um salutar obsurantismo, pela graça d’«Ele, que até do mal tira o bem» por uma razão qualquer obscura e não explicitada pode transformar-se «no caminho de mérito e de participação na nossa própria salvação». Porque… «nós não vemos»?