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Em nome do Tabu

Quando vi na televisão o cardeal patriarca falar do facilitismo com que a sociedade olha para as questões da vida, deu-me vontade de rir. Aqueles que se preocupam realmente com a problemática do aborto e da eutanásia fazem-no sem esquecer que a vida é humana se for digna. Facilitismo, para mim, é reduzir toda a questão a um mistério divino, entregando o debate à exclusividade dos teólogos (prática habitual das religiões) e criar um tabu para aliviar a sociedade da carga do raciocínio e o clero do perigo do livre-pensamento. Frequentemente acusados de reducionismo biológico, os que olham para a eutanásia como último recurso para o fim do sofrimento de uma vida que quer terminar dignamente, são acusados por aqueles que, em nome de escrituras bolorentas e ideais tacanhos e medievais, reduzem a vida de um indivíduo indepentente e livre à propriedade intocável de um Deus desconhecido.

O que me indigna é ver aqueles que reclamam a minha vida e a dos outros para o seu Deus particular aceitarem tão bem manifestações de fé que resultam em auto-flagelações, umas mais violentas que outras, todas igualmente decadentes. Se o Papa se quer arrastar em sofrimento em nome da sua fé, acham muito bem. Se uma idosa se quer arrastar metros sem fim de joelhos, à entrada do seu templo, acham natural e louvável. Mas se uma pessoa amarrada a uma cama décadas seguidas, completamente dependente de terceiros para as necessidades que qualquer um de nós tem como adquiridas, pedir para pôr termo à sua vida de sofrimento e humilhação, indignam-se e protestam. Quando uma mulher se recusa a usar o preservativo, em fiel obediência à homilia da sua igreja, tendo contraído o vírus da Sida do seu marido seropositivo, consideram-na uma mártir, um exemplo. Já à mulher vítima de violação, sem meios para educar um filho que não desejou, estigmatizada para a vida, que pede para não ser mãe do filho daquele que a violentou, vejo muitos recusar tal escolha, em nome de tão misterioso mistério.

A falta de coerência, de facto, dá-me vontade de rir. A insistência do clero numa tese dogmática, provinciana, irrealista, que pretende impingir à sociedade que critica por esquecer os valores que gostaria que adoptasse, espanta-me. Disse o cardeal patriarca em entrevista à agência Ecclesia, a respeito do referendo ao aborto, que «Quem disser que sim tem uma responsabilidade tremenda, porque o primeiro dever que tem é esclarecer-se, é perceber que o que está em questão não é resolver problemas (até porque não os resolve imediatamente)». E quem disser não? Livra-se da responsabilidade? Sim, porque como se pode ler na mesma entrevista, quem não enfrenta as dificuldades é que legaliza o aborto e a eutanásia, é que minimiza o sofrimento. Lá que Igreja não nega o sofrimento, disso, não tenho a menor dúvida.