Loading

Categoria: Arte e cultura

25 de Março, 2009 Carlos Esperança

O Sr. Duarte Pio e o opúsculo

Li no excelente blogue De Rerum Natura, num post de Carlos Fiolhais, o seguinte:

«De facto, o candidato a rei é autor de um opúsculo laudatório do Beato Nuno, onde se pode ler esta pérola: “Quando passava de Tomar a caminho de Aljubarrota, a 13 de Agosto de 1385, D. Nuno foi atraído a Cova da Iria, onde, na companhia dos seus cavaleiros, viu os cavalos do exército ajoelhar, no mesmo local onde, 532 anos mais tarde, durante as conhecidas Aparições Marianas, Deus operou o Milagre do Sol» (“D. Nuno de Santa Maria – O Santo”, ACD Editores, 2005).»

Fiquei maravilhado com o que li e, sobretudo, por saber que o Sr. Duarte Pio escreve.

O Sr. Duarte Pio, suíço alemão, da família Bourbon, imigrante nacionalizado português pela conivência de Salazar e pelo cumprimento do Serviço Militar Obrigatório, podia emprestar a imagem às revistas do coração mas precaver-se contra a ideia de publicar opúsculos.

Claro que não é necessário saber falar para escrever e, muito menos, saber escrever para publicar um opúsculo, mas a gramática, o tino e o decoro deviam criar numerus clausus.

É verdade que famosos especialistas são frequentemente alheios ao mister que os celebriza. É o caso do Conde de Abranhos como ministro da Marinha ou de Bagão Félix nas Finanças. E Portugal é um país que resiste a tudo. Resistiu à dinastia de Bragança, ao salazarismo e a Santana Lopes.

O Sr. Duarte Pio há-de ter pensado, em seu pensamento, num esforço heróico, que um livro vinha a calhar para lhe dar o toque de erudição depois das saídas rústicas que lhe mereceu José Saramago a cuja leitura o pouparam a rudimentar cultura e ausência de sensibilidade.

Se o Bush e a Alexandra Solnado são capazes de falar com Deus, e da Alexandra não há razão para duvidar, por que motivo o Sr. Duarte não há-de ser capaz de escrever um livro ou, pelo menos, um opúsculo, ainda que com a ajuda de alguns vassalos?

Há quem, através do estudo e do trabalho, de altas classificações numa boa universidade e de grande tenacidade consiga um emprego ao balcão de uma loja de pronto a vestir mas não será fácil chegar a Grão Mestre da Ordem de N. Sra. da Conceição de Vila Viçosa, da Real Ordem de São Miguel da Ala, Juiz da Real Irmandade de São Miguel da Ala, Bailio Grã-Cruz da Ordem Soberana de Malta, membro do Concelho Científico da Fundação Príncipes de Arenberg e outras distinções guardadas para os descendentes de rainhas de Portugal.

Felizmente vivemos em República. Somos cidadãos e não súbditos. Quando nos cansamos dos titulares dos órgãos de soberania, votamos noutros. E ninguém, com juízo, votaria em quem acredita que Nuno Álvares curou o olho esquerdo de D. Guilhermina de Jesus, queimado com salpicos de óleo de fritar peixe.

3 de Março, 2009 Carlos Esperança

Cinema – Retrato do Opus Dei

A crítica da Espanha se rendeu ao retrato cru da Opus Dei realizado por Javier Fesser em “Camino”, filme que venceu no domingo (2) seis indicações na 23ª edição do prêmio Goya – o Oscar espanhol.

Duas estrelas que podem levar um Oscar protagonizaram a grande noite do cinema espanhol. Por um lado, o ator porto-riquenho Benicio del Toro saiu como melhor ator por “Che”. Penélope Cruz conseguiu o Goya de melhor atriz coadjuvante por “Vicky Cristina Barcelona” – o terceiro de sua carreira – por um papel oferecido a ela por Woody Allen.

30 de Dezembro, 2008 Carlos Esperança

Momento de poesia

Dissertação sobre o Império…

À
Pilar Vicente,
médica e sindicalista, pela sua
generosidade, combatividade e
competência profissional

Quando o Império a abraçou
dando-lhe a mão
ainda não se sabia em Roma
que o circo iria acabar
e que o pão, tal como o vinho,
passariam a ser divinos,
nem que dos cacos
em que os Bárbaros o deixaram
nasceria uma nova era
com outros paramentos.
Ficou o esplendor da mitra, do báculo e do anel,
a arrogância imperial, através da hóstia e da bula
e um trono talhado a ouro para os novos Césares
que, com a cruz, a espada e o missal,
ergueram e espalharam igrejas, conventos e altares.
Dizendo-se portadores de uma Fé verdadeira
amarraram os homens à sua alma
e ligaram o novo Deus ao Céu e à Terra inteira.

a) Alexandre de Castro

25 de Dezembro, 2008 Ricardo Alves

Jacques Brel: «Les bigotes»

As beatas

Elas envelhecem com pequenos passos
Como de cãezinhos ou de gatinhos
As beatas
Elas envelhecem tão depressa
Que confundem o amor e a água benta
Como todas as beatas
Se eu fosse diabo ao vê-las por vezes
Eu acho que me faria castrar
Se eu fosse Deus ao vê-las rezar
Eu acho que perderia a fé
Pelas beatas
Elas procissionam em pequenos passos
De pia de água benta em pia de água benta
As beatas
E patati e patata
As minhas orelhas começam a assobiar
As beatas
Vestidas de negro como o Senhor Padre
Que é demasiado bom com as criaturas
Elas beatizam-se de olhos em baixo
Como se Deus dormisse sob os seus sapatos
De beatas
No sábado à noite depois do trabalho
Vê-se o operário parisiense
Mas nada de beatas
Porque é no fundo das suas casas
Que elas se preservam dos rapazes
As beatas
Que preferem encarquilhar-se
De vésperas em vésperas, de missa em missa
Muito orgulhosas de terem conservado
O diamante que dorme entre as suas pernas
De beatas
Depois morrem em pequenos passos
Em fogo lento, em montinhos
As beatas
E enterram-se em pequenos passos
De manhãzinha num dia frio
De beatas
E no céu que não existe
Os anjos fazem depressa um paraíso para elas
Uma auréola e duas pontas de asa
E elas voam… com pequenos passos
De beatas
(Jacques Brel, 1962; tradução livre de Ricardo Alves)

Les bigotes

Elles vieillissent à petits pas
De petits chiens en petits chats
Les bigotes
Elles vieillissent d’autant plus vite
Qu’elles confondent l’amour et l’eau bénite
Comme toutes les bigotes
Si j’étais diable en les voyant parfois
Je crois que je me ferais châtrer
Si j’étais Dieu en les voyant prier
Je crois que je perdrais la foi
Par les bigotes
Elles processionnent à petits pas
De bénitier en bénitier
Les bigotes
Et patati et patata
Mes oreilles commencent à siffler
Les bigotes
Vêtues de noir comme Monsieur le Curé
Qui est trop bon avec les créatures
Elles s’embigotent les yeux baissés
Comme si Dieu dormait sous leurs chaussures
De bigotes
Le samedi soir après le turbin
On voit l’ouvrier parisien
Mais pas de bigotes
Car c’est au fond de leur maison
Qu’elles se préservent des garçons
Les bigotes
Qui préfèrent se ratatiner
De vêpres en vêpres de messe en messe
Toutes fières d’avoir pu conserver
Le diamant qui dort entre leurs f…s
De bigotes
Puis elles meurent à petits pas
A petit feu en petit tas
Les bigotes
Qui cimetièrent à petits pas
Au petit jour d’un petit froid
De bigotes
Et dans le ciel qui n’existe pas
Les anges font vite un paradis pour elles
Une auréole et deux bouts d’ailes
Et elles s’envolent… à petits pas
De bigotes
Jacques Brel (1929-1978)

22 de Dezembro, 2008 Carlos Esperança

Momento de poesia

Dissertação sobre a Palestina…

Nem a Tora

nem a ira de Moisés,

ao quebrar as tábuas divinas

por causa de um bezerro de ouro,

têm a força certeira das balas das espingardas

já deixei

de contar os mortos embrulhados

em bandeiras

nas loucas correrias de tiros e de gritos

à volta de um caixão

e de ouvir

o choro das crianças

quando descobrem que os tanques dos judeus

não são nenhuns brinquedos inocentes

alguém, um dia, lhes irá falar

no paraíso celeste das mil virgens

na Jihad por Alá

e na virtude do sacrifício e da vingança

fazendo-se explodir em qualquer praça.

Alexandre de Castro

9 de Dezembro, 2008 Carlos Esperança

Momento de Poesia

Dissertação sobre o Big Bang

E naquele momento zero em que tudo começou,

no primeiro segundo cósmico,

surgido a partir do Nada

a energia, concentrada e tensa, explodiu

fazendo saltar matéria incandescente a alta velocidade

para formar estrelas, cometas, planetas e galáxias

a ensaiar uma louca dança orbital

e a obedecer com precisão infinita

à lei da gravitação universal

Newton ainda estava a muitos anos-luz de distância

na escala temporal, até uma maçã o despertar

Galileu leu todos os sinais dos céus,

observou, fez experiências, analisou e calculou

e tudo ficou mais claro e transparente

para um cabal e definitivo entendimento

nem o Papa, que o mandou calar,

nem a sentença da Sagrada Inquisição

estancou aquele pensamento perverso

de ser a Terra continuamente a rodar

e de nunca ter sido o centro do Universo

desmentindo assim as verdades divinas

vertidas pela Fé nas Escrituras

e o Mundo continuou a girar, a girar,

rasgando segredos e descobrindo infinitos

com estrelas ainda a nascer

e outras a desaparecer, em lenta agonia cósmica

até um buraco negro as devorar

como se tudo se reduzisse a uma liminar equação

entre energia e matéria, na sua matemática relação

e que Einstein revolucionariamente resolveu

mas há ainda uma outra lei desconhecida,

a do ciclo e do contra-ciclo, marcada pelo tempo,

com o Universo a inverter-se e a matéria a contrair-se

quando a energia se esgotar e o espaço terminar,

deixando de se dilatar

aparecendo uma força descomunal

a esmagar galáxias, estrelas, cometas e planetas

(fulminando a Humanidade, se ela ainda existir)

até a matéria se dissolver

e a energia regressar ao ponto inicial

para um outro Big Bang começar…

Alexandre de Castro

8 de Outubro, 2008 Carlos Esperança

Inveterado ateu

10.º Aniversário do Nobel do nosso contentamento. Parabéns, José Saramago.

2 de Outubro, 2008 Carlos Esperança

A queimadela do antraz (Crónica)

Era Verão. Na rua, junto à casa dos meus avós maternos, o tanoeiro do Jardo afeiçoava tábuas de carvalho antes de as equilibrar sobre um calhau, à volta do qual crepitava uma fogueira de lume brando, e de lhes amarrar pedras nas extremidades para as vergar adequadamente e produzir aduelas.

Com uma giesta, mergulhada num caldeiro de água, molhava regularmente as tábuas expostas ao calor e logo voltava à plaina e à enxó a desbastar outras que se seguiriam para tomarem a forma ajustada e substituírem as que o tempo e a acidez do vinho tinham carcomido num tonel de cem almudes.

 

Pela rua seguia o Ti Portas, do Sabugal, soprando a gaita de capador, à espera de porcos, vitelos, cães, gatos e outros machos cujos donos decidissem pôr termo à alegria dos bichos, fosse para preservar o sabor da carne ou para os obrigar ao sedentarismo que o cio não permitia.

Os animais de grande porte eram levados ao tronco do ferrador e os cães e gatos entalados entre uma porta e o batente enquanto duravam a cirurgia e os queixumes.

 

De estômago composto, com meio trigo, uma peixota de bacalhau frito e meio quartilho de vinho, retemperadas as forças, as contrabandistas abandonavam a taberna para retomarem as cargas e rumarem ao destino, com alpercatas, pana, chocolates, bolachas e outras encomendas.

Um presságio afastou-me do tanoeiro para subir as escadas de casa, a correr, depois de ver entrar o Ti Capas, o Medo, o Zé Mateus e o Bodo, que eram usuais nas fainas agrícolas mas não era hábito, àquela hora, entrarem em casa de meus avós.

O avô andava doente, consumido por um antraz que lhe aparecera na barriga, mas resignado, habituado ao sofrimento e aos baldões da sorte. Fora cedo para a Argentina a bordo de um navio em cujo porão viajou para voltar tão pobre como partira. Pouco tempo depois de casar não o matou um carbúnculo porque lho queimaram e, com ele, o nervo óptico que lhe cegou um olho.

No lume, o cabo de um garfo de ferro, com os dentes virados para fora da lareira, incandescia. Olhei o meu avô, que, da cadeira onde se sentara, me devolveu um olhar de ternura, afecto reservado ao primeiro neto, enquanto a avó Anunciação, com voz doce, me dizia para ir brincar.

Saí com vontade de chorar. Pressenti que iam fazer mal ao avozinho, mas não percebi o silêncio, nem a presença dos homens, nem o lençol de linho feito em tiras. Cruzei-me nas escadas com o António Ferreira, o último a chegar, talvez atrasado por mor de alguma besta que estivesse a ferrar.     

O António Ferreira era ferrador por necessidade e clínico por vocação. O fogo era o tratamento que aplicava na ciática e noutras moléstias e não lhe faltavam clientes. Haviam de suceder-lhe o Jaime Gil e o Américo Ferrador na arte de aparar os cascos dos bovinos, muares, burros e cavalos e no jeito de lhes afeiçoar e pregar as ferraduras, mas nunca o imitaram na clínica.

Nessa tarde, ao descer as escadas, afastava-me do ambiente pesado que se vivia na cozinha dos meus avós enquanto regressava, indiferente, a observar o tanoeiro. Só o percebi quando um grito lancinante do meu avô, logo abafado por alguma almofada, me fez compreender a razão daquele cabo de garfo em brasa, a presença dos trabalhadores e a visita do ferrador.

Vi descer o António Ferreira, que tinha sido o último a entrar e era o primeiro a sair, a falar sozinho, queimei bem a raiz, queimei-a bem, e lá foi rua acima, de regresso a outros afazeres.

Ansioso, subi as escadas, duas a duas, a correr, num esforço apreciável para pernas tão curtas. O avô Paulo já estava na cama e a minha avó pediu-me para não o incomodar. No ar, um cheiro doce a carne queimada agoniava-me e eu só pensava em ver o meu avô, em dar-lhe um beijo, em conversar com ele; mas só no dia seguinte pude vê-lo, ainda com febre, feliz por me ver, esquecido das dores, contidos os gritos e gemidos que durante a noite se ouviram.

Ainda viveu mais uma dúzia de anos, número igual ao das férias grandes, Natal, Carnaval e Páscoa em que a ternura dos avós e a autonomia que me concederam, criaram em mim o gosto pela liberdade e formaram o cidadão.

Até ao dia 2 de Março de 1961, quando, da cama onde agonizava, o avô me agarrou a mão, balbuciou de forma quase imperceptível, Caarrlos, e se despediu. Era noite.

8 de Agosto, 2008 Carlos Esperança

Momento de poesia

Dissertação sobre a guerra santa…

 

 

 

Se não tivessem sido inventados

tantos deuses

os homens seriam mais justos

ou, como tu ainda continuas a acreditar,

se eles realmente existem

num qualquer desconhecido Olimpo

então, é porque não souberam

resguardar os seus crentes

das espadas e das bombas

quando contrataram profetas e patriarcas

e todos os clérigos encartados

para fazerem a guerra santa em seu nome.

 

Alexandre de Castro

 

Lisboa, Agosto de 2008