Loading

Dia: 10 de Outubro, 2006

10 de Outubro, 2006 fburnay

A Razão e a Fé II: A Igreja e a Razão (cont.)

Logo à primeira oportunidade de dar liberdade ao pensamento, a religião instituída sofreu um enorme abalo. A racionalidade tinha trazido maus frutos à fé instituída, por duas razões. Por um lado porque existia agora não uma fé mas várias. A luta que assim se formou não se limitou ao belicismo mas também ao debate racional enquanto exercício da crítica. Por outro lado, a dinâmica de poder polarizou-se o que obviamente originou conflitos armados mas agora uma nova forma de interacção era valorizada – a diplomacia que foi, no fundo, a marca humanista nos negócios internacionais.

Uma das mais importantes ferramentas criadas na tentativa de manutenção da antiga ordem foi o Tribunal do Santo Ofício, também conhecido como a Inquisição, fortalecida em 1542 por Paulo III a partir de órgãos da Igreja já existentes. A perseguição daquilo que era considerado heresia, recorrendo a confissões sob tortura, julgamentos e execuções públicas, a par da prática da censura, foi a tentativa de conservar a influência da Igreja e o seu sistema de pensamento.
Durante muito tempo, o sistema de valores da Europa manteve-se constante. Até ao séc. XIV vigoraram monarquias em regime feudal. Desde aí ao Renascimento começaram a aparecer os primeiros estados-nação, onde a economia predominantemente agrícola deu algum lugar a uma economia baseada no dinheiro e nas trocas comerciais. Em meados do séc. XVII, o sistema de organização das monarquias era considerado obsoleto, injusto e irracional. As pessoas estavam fartas dos abusos de monarcas absolutos, da intolerância religiosa e da falta de liberdade generalizada. Havia pão para uns e não para outros e a injustiça do sistema aristocrático era motivo de ressentimentos.

Os valores de igualdade do Iluminismo que então se espalhavam pelo velho continente ganharam aderência. A ideia de que a racionalidade deve guiar o homem na sua busca da felicidade, os valores do Individualismo como auto-determinação, os princípios de igualdade entre os homens foram as linhas que levaram à Revolução Francesa e à Revolução Americana.

Também publicado no Banqueiro Anarquista.

10 de Outubro, 2006 fburnay

A Razão e a Fé I: A Igreja e a Razão

A fé religiosa, ao contrário do que alguns religiosos nos querem fazer crer, é inassociável à Razão. A ideia peregrina de que a Razão não se opõe à Fé é constantemente publicitada – sempre por pessoas de fé e quase nunca por pessoas sem fé. Este enviesamento é curioso e é também curiosa a posição das religiões, nomeadamente a ICAR, ao promoverem essa ideia.

A oposição entre Fé e Razão tem duas componentes distintas. Uma componente histórica, relativa à dinâmica de poder da religião instituída e uma componente filosófica, independente do tempo e da geografia, que diz respeito à crítica da estrutura lógica e ontológica do teísmo. Estas duas perspectivas aparecem separadas a maior parte do tempo mas houve períodos na História da Europa em que interagiram.

O debate começa há milhares de anos e é provavelmente tão antigo como as próprias religiões. Ao contrário do que muitas vezes se apregoa, o ateísmo e o agnosticismo encontram expressão entre os primeiros filósofos gregos o que sugere que a ausência de fé é tão velha como a própria fé. A recusa da fé começa sempre no exercício do raciocínio e os argumentos ateístas e agnósticos são clássicos – tratam-se de argumentos refutativos transversais aos credos e cuja evolução se prende exclusivamente com a adaptação expressiva a credos emergentes e novas concepções do divino ou do sagrado.

Em termos históricos e no caso europeu, a problemática da Razão e da Fé começa com a escolástica e com a sua tentativa de forçar o acordo entre o saber clássico e a verdade revelada. O resultado dessa mistura foi a visão medieval peripatética ou neoplatónica que, imutável e absoluta, ocupou cerca de mil anos da História da Europa. Assim, desde Agostinho de Hipona até ao séc. XV, a Razão estava confinada ao que a classe religiosa determinava. Considerando-se que não podia haver contradições entre a revelação divina e o que a razão determina, sendo que essa revelação era sagrada e exprimia a Verdade, a Razão tinha claramente de se submeter à Fé nos pontos de atrito.

A História da Europa a partir daí até quase à contemporaneidade, nas suas grandes evoluções, envolve sempre de alguma forma o inverter gradual dessa ordem. E a inversão começa com o Renascimento. No fundo, o renascimento da dúvida depois de toda a Idade Média em que a autoridade dos clássicos não era questionada. A Reforma foi parte desse processo de dúvida, no caso a que me refiro em relação à autoridade papal e da Igreja. As Escrituras foram relidas e novamente interpretadas fazendo um uso do raciocínio individual que deu origem a leituras diferentes. As várias seitas que assim se formaram pela Europa fora, para mal da Igreja Católica Apostólica Romana (ICAR), ganharam independência intelectual. Apesar de serem tempos conturbados e de ainda haver perseguição religiosa, um pouco no seguimento da tradição anterior, havia no entanto uma certa frescura no simples facto de haver agora mais liberdade de pensamento. Enquanto a Igreja se ocupava de contrariar essa tendência, tão negativa para o seu poder, as pessoas começavam a recuperar os clássicos. A Igreja perdeu com isso. Veio a perder a Inglaterra e parte dos estados do continente. Na origem dessa infame dissidência esteve, no fundo, a liberdade de pensamento.

Também publicado no Banqueiro Anarquista.

10 de Outubro, 2006 Palmira Silva

Objecção de consciência

A intolerância, que mais uma vez recordo ser apenas a atitude de não admitir a outrem uma maneira de pensar ou agir diferente da adoptada por si mesmo, é indissociável das religiões e dos crentes que seguem estritamente o preconizado por essas religiões.

A nossa sociedade, assente na tolerância e no pluralismo, isto é, no respeito dos direitos humanos que incluem o direito à diferença, é assim intrinsecamente incompatível com o fundamentalismo religioso.

De todos os cantos do mundo nos chegam exemplos da intolerância religiosa, que nos deveriam fazer reflectir e despertar da complacência em relação às religiões, todas elas, e perceber que a única forma de combater o perigo que o fundamentalismo religioso constitui é a defesa intransigente da laicidade. Não temos qualquer legitimidade para condenar os excessos dos fundamentalistas de uma religião se assobiamos para o lado em relação aos excessos dos representantes de outras.

Todos, e não apenas os islâmicos, têm de perceber que no nosso modelo de sociedade não são admitidas manifestações públicas da intolerância das religiões respectivas. O nosso modelo de sociedade assenta no respeito pelo outro não no respeito pelas ideias do outro. Aliás, foi e é construído no debate livre de ideias. A imposição aos outros dos anacrónicos, discriminadores e, em muitos casos, criminosos preconceitos religiosos é anátema para esse modelo de sociedade!

Um exemplo de intolerância religiosa que deveria ser firmamente combatida ocorreu recentemente em França, em que uma adolescente foi apedrejada por colegas no recreio da escola Jean Mermoz em Lyon por ter violado o jejum do Ramadão. Quase tão sintomático como o apedrejamento foi a reacção de Azzedine Gaci, presidente do CRCM (Regional Council for the Muslim Religion) que deplorou a reacção dos alunos, que considerou devida à sua ignorância do Corão – e aproveitou para lançar a farpa de que este deveria ser ensinado na escola.

A deplorada ignorância do Corão não se refere ao facto de este livro «sagrado» pregar a tolerância. Na realidade, todos os livros ditos «sagrados» pregam a observação estrita dos seus anacronismos, isto é, pregam a intolerância de quem não os siga. A ignorância do Corão lamentada refere-se ao facto de que este prevê que as mulheres «que não se sentirem bem», um eufemismo para a menstruação, estão dispensadas do cumprimento do jejum.

Outro exemplo de intolerância islâmica contra a qual medidas firmes deveriam ser imediatemente tomadas está a surgir um pouco por todo o globo e tem a ver com o facto de que os motoristas de táxi muçulmanos se recusam a transportar os infiéis que violam as leis islâmicas. Nomeadamente invisuais acompanhados por «sujos» cães guia ou passageiros que transportem álcool, mesmo em garrafas seladas.

Este exemplo levanta uma questão delicada: se é certo que não podemos tolerar este tipo de comportamento dos motoristas de táxi, especialmente em relação aos invisuais que dependem do transporte público na sua vida profissional e pessoal, em que é que este difere da chamada «objecção de consciência» permitida aos profissionais de saúde cristãos em relação à saúde reprodutiva?

«Objecção» dita de consciência que reflecte apenas preconceitos religiosos e que não se restringe ao aborto terapêutico ou em caso de violação, as condições previstas na limitada lei que temos. Manifesta-se em muitos ginecologistas que se recusam a prescrever ou aconselhar o DIU (na realidade dão informações erradas sobre o dispositivo); manifesta-se na mutilação desnecessária de mulheres no caso de gravidez ectópica, manifesta-se no «sermão» que acompanha a venda da pílula do dia seguinte (que em muitas farmácias nacionais, dirigidas por farmacêuticos católicos, nem sequer é disponibilizada, assim como não é disponibilizado o DIU), manifesta-se na objecção à fertilização medicamente assistida, etc..

Os motoristas de táxi que se recusam a transportar invisuais acompanhados por cães guia também «desejam exercer a sua profissão à luz dos princípios evangélicos» da religião respectiva e reger o trabalho pelo seu equivalente da «luz do valor de Cristo e do Evangelho» . Porque razão devemos penalizá-los por aquilo a que os católicos cá no burgo chamam coerência ou fidelidade à fé respectiva (e na Austrália pelo menos foram retiradas cerca de 200 carteiras profissionais a estes motoristas «coerentes com a fé»), assim como a Testemunhas de Jeová que desejem ser profissionais de saúde, e não devemos penalizar médicos e farmacêuticos católicos que se recusam a cumprir a lei vigente nos países respectivos?

Ninguém deve transportar para o espaço público os preconceitos e aberrações das respectivas religiões. O que fazem na esfera privada, desde que no cumprimento das leis vigentes nos países em que se encontrem, é uma questão de consciência individual. Mas a consciência colectiva das nossas sociedades tem necessariamente de ser completamente dissociada da religião. E especialmente o Direito não só não pode reflectir essas aberrações como deve penalizar de forma inequívoca as manifestações públicas da intolerância concomitante.

O direito à liberdade religiosa não pode ser confundido com o direito à intolerância religiosa. E esse é o ponto fulcral que precisamos urgentemente que os crentes em qualquer religião, não apenas a islâmica, entendam!

tag ,