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Dia: 15 de Fevereiro, 2005

15 de Fevereiro, 2005 Palmira Silva

As cartas de Soror Lúcia de Jesus

Clique aqui para ver uma versão maior desta carta e aqui para ver a carta de Lúcia elogiando Salazar.

Seguem-se, sem comentários, excertos da carta acima digitalizada, datada de 7 de Novembro de 1945, da Lúcia cujo falecimento mereceu luto nacional. Enviada pelo cardeal Cerejeira ao seu amigo António Salazar, em vésperas das primeiras eleições supostas livres à Assembleia Nacional, para «levar-te muita consolação e confiança», acrescentando «E se tu a lesses toda, mais consolado e confiado ficarias ainda. Escuso de dizer que isto que ela diz, o não diz dela mesma, mas por indicação divina (segundo ela deixa entender)»:

«Salazar é a pessoa por Ele (Deus) escolhida para continuar a governar a nossa Pátria, … a ele é que será concedida a luz e graça para conduzir o nosso povo pelos caminhos da paz e da prosperidade. É preciso fazer compreender ao povo que as privações e sofrimentos dos últimos anos não foram efeito de falta alguma de Salazar, mas sim provas que Deus nos enviou pelos nossos pecados. Já o bom Deus ao prometer a graça da paz à nossa nação nos anunciou vários sofrimentos, pela razão de que nós éramos também culpados».

15 de Fevereiro, 2005 Ricardo Alves

Eu não estou de luto nem respeito Fátima

Existe uma apreciação ética, e portanto social, a fazer sobre a morte de Lúcia dos Santos.
É evidente que a morte de qualquer pessoa me merece respeito, e que posso decidir associar-me a cerimónias de luto se conhecer o falecido ou se isso confortar as pessoas das suas e das minhas relações. Mas não me associo ao luto por quem não conheci nem me deu razões para respeito, como é obviamente o caso da falecida Lúcia dos Santos. Não respeito quem participa em maquinações rocambolescas com o objectivo de ludibriar milhões de pessoas para fins religiosos, políticos e comerciais. E como é por todos reconhecido, a referida senhora ou foi a verdadeira criadora do mito de Fátima, ou foi conivente nessa manobra obscurantista, manobra em qualquer dos casos sinistra e lesiva da imagem e dos valores da sociedade portuguesa. Pois não é salutar para a imagem de Portugal que sejamos vistos como um povo que se ajoelha, arrasta e humilha à passagem de uma boneca de louça e de pau. Não é benéfico para o bem comum de uma sociedade que se propagandeiem como dignos e desejáveis comportamentos anti-sociais (como faltar à escola para rezar), ou doentios (como a autoflagelação ou os jejuns desregrados), ou supersticiosos (como a ideia de que uma mulher morta há dois mil anos poderia surgir empoleirada numa azinheira, ou que o sol pode ser visto a «rodar» em Ourém mas não em Lisboa).
Eu escolho um país moderno, a capacidade crítica das pessoas, o espírito científico, a instrução dos petizes e o amor-próprio. Fátima é o contrário de tudo isto.
É claro que as pessoas são tão livres de se arrastar de joelhos como de ser sado-masoquistas, de acreditar na «virgem» como em Alá, e que ninguém deve proibir comportamentos de outrem que não nos afectem. Porém, não me peçam para «respeitar» quem promove o obscurantismo e comportamentos consabidamente nocivos. Do mesmo modo, não se pode impedir as pessoas de ter convicções anti-democráticas, mas não me peçam para deixar de combater e denunciar alguém que passou atestados de «enviado de Deus» a Salazar.
A finalizar, convém acrescentar que a senhora Lúcia dos Santos me respeitava menos do que eu a ela. Aliás, pediu em diversas ocasiões que se limitasse a liberdade de expressão por «Deus já [estar] muito ofendido». Eu nunca pensaria em coarctar a sua liberdade de proclamar disparates religiosos ou outros, embora ela desejasse claramente impedir pessoas como eu de escreverem textos como este. Aqui fica.
15 de Fevereiro, 2005 Ricardo Alves

Comunicado da ARL sobre o luto nacional

Comunicado de imprensa de 14/2/2005

Porquê luto nacional?

1. A Associação República e Laicidade manifesta a sua estranheza e repúdio pela iniciativa do Primeiro Ministro, ratificada pelo Presidente da República, de decretar um dia de luto nacional pelo falecimento de Lúcia de Jesus.

2. O falecimento de personalidades que tenham servido a República em cargos elevados, ou que tenham prestado serviços públicos de grande mérito, pode e deve ser assinalado com um dia de luto nacional. Nesse sentido, estranhamos que não tenha sido decretada tal solenidade aquando dos falecimentos – ocorridos durante o mandato do actual Governo – da antiga Primeira Ministra Maria de Lurdes Pintasilgo ou do lutador antifascista Fernando Vale.

3. Lúcia de Jesus teve como único acto relevante da sua vida o papel que desempenhou nos acontecimentos de Fátima em 1917, que a tornaram mais tarde uma actora comprometida das encenações político-religiosas conducentes a legitimar o Estado Novo (deve-se-lhe a frase «Salazar é a pessoa por Ele escolhida para continuar a governar a nossa Pátria»), e foi portanto
parte de uma operação político-religiosa que fracturou e ainda divide o país e a própria comunidade católica portuguesa.

4. Parece-nos portanto evidente que o luto nacional é, nesta ocasião, desapropriado e mesmo prejudicial à separação da política e da religião e à própria unidade nacional em torno dos valores democráticos.

Luis Mateus
(Presidente da Direcção)
Ricardo Gaio Alves
(Secretário da Direcção)

Adenda: notícia no Público.
15 de Fevereiro, 2005 Carlos Esperança

O milagre que fez falta


Se a alva e meiga Senhora que, há quase oitenta e oito anos, poisou numa azinheira, vestida com um manto de luz, para gáudio de três inocentes pastorinhos, por erro de navegação celeste houvesse poisado numa azinheira errada e encontrado um só pastor, mancebo de vinte e tantos anos; se a falta de energia lhe tivesse apagado o manto, sendo a beleza tanta quanto dela disseram as criancinhas, e entre o manto e o corpo nada houvesse, como é de crer, por ser a luz que resplandecia o único vestido que a cobria, poderia o dito pastor chamar-se José, como o humilde e humilhado carpinteiro de Nazaré, e a história seria outra.

Se o dito pastor, mancebo de vinte e tantos anos, na flor da idade e do desejo, impelido pelos sentidos, fosse tão rápido e eficaz a tomar a dita Senhora como o era a conduzir o rebanho, não seria o papa, muitos anos depois, a entrar em êxtase; seria ele, pastor, ali e então.

E, em vez de criancinhas a ouvirem – eu sou a Nossa Senhora -, pitoresca apresentação que só ouvi a um Sargento, falando aos soldados, – eu sou o nosso primeiro Vieira -, em vez dessa apresentação que os exegetas atribuem à Virgem Maria, teria ouvido o pastor, mancebo de vinte e tantos anos, mais afeito ao rebanho que ao corpo feminino, à guisa de apresentação e despedida, com voz lânguida e conformada, eu sou Maria.

Tudo leva a crer que a referida Senhora, de tão rara beleza, teria esquecido a conversão da Rússia, poupado o dito pastor à oração e, em vez de duas ou três aparições, teria tentado outras, sabendo embora que não era a azinheira certa aquela em que poisava, mas adivinhando à sua sombra o pastor, mancebo de vinte e tantos anos.

É preciso aumentar a probabilidade de novas aparições, seja pela duplicação do número de azinheiras ou do número de crianças que prefiram a oração à escola e se dediquem à pastorícia, de preferência longe dali, que os milagres raramente se repetem perto, e se acontecem, como há sobejas provas na Ladeira e noutros sítios, nunca são reconhecidos, por se desconfiar da abundância e se temer a concorrência.

E se no futuro apenas houver pastores crianças, com joelhos no chão e olhos no Céu, nunca mais haverá qualquer pastor na flor da idade e do desejo, mancebo de vinte e tantos anos, a ofender a virtude e a mudar o sítio às azinheiras, a perturbar a circulação celeste e os milagres.