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Autor: Ludwig Krippahl

13 de Dezembro, 2014 Ludwig Krippahl

Questões

O programa “Prós e Contras” desta semana pretendeu debater a pergunta “Deus tem futuro?” (1). No entanto, dos seis elementos do painel, quatro pertenciam ao clero, um era ateu mas defendia que os ateus não se devem preocupar com a questão de Deus existir ou não, e o cientista, Carlos Fiolhais, defendeu apenas a posição de que a ciência não tem nada a dizer sobre o assunto. Assim, o painel dedicou-se a discutir quem teria a melhor variante do monoteísmo bíblico, concordando todos no futuro de Deus e discordando apenas acerca de que Deus teria tal futuro. Haveria muito a apontar mas, neste post, vou focar apenas a posição de Carlos Fiolhais porque abordou um problema fundamental. Fiolhais alegou que a ciência foca um tipo de perguntas e não todo o tipo de perguntas. Nisto estamos de acordo. Mas depois, sem esclarecer como divide as perguntas em vários tipos nem como se avalia as respostas, simplesmente afirmou que há perguntas que são respondidas pela arte, outras pela ciência e outras pela religião, e que «a ciência não pode responder à pergunta se Deus existe ou não existe». Disto já discordo e até posso explicar porquê.

Vou categorizar as questões em três tipos em função das respostas que admitem. O tipo menos interessante é o de perguntas como “Existe blrrt?”. Estas não admitem resposta porque só são perguntas na sintaxe. Semanticamente não são nada. É o que acontece com “Existe Deus?” quando não se especifica nada desse “Deus”. Na prática, isto é raro. A menos que alguém esteja rodeado de clérigos de religiões diferentes e queira evitar o confronto a todo o custo, raramente se coloca esta questão sem afirmar algo concreto acerca desse “Deus”.

Outras questões admitem várias respostas correctas. As respostas a perguntas como “Queres jantar?”, “Tens fé em Jesus?” ou “Acreditas que há vida noutros planetas?” dependem da pessoa ou até do momento em que são colocadas. No debate, Anselmo Borges declarou que Deus é objecto de fé e não de ciência. Esta afirmação é vaga mas pode querer dizer que Deus é apenas uma ideia, na mente do crente, onde este foca a sua fé. Se assim for, então a pergunta “Existe Deus?” pode ser correctamente respondida pela afirmativa ou pela negativa conforme a pessoa a quem perguntamos foca a sua fé nessa ideia ou não.

Finalmente, há aquelas perguntas que admitem uma resposta correcta e para as quais as restantes respostas estão erradas, em maior ou menor grau. Perguntas como “Qual é a forma da Terra?”, “Existem electrões?”, “Alguém levou o corpo de Maria para o Céu?”, “O universo foi criado por um ser inteligente?” e assim por diante. São perguntas que fazem sentido e que visam obter uma resposta única que não é função de crenças, escolhas ou opiniões do inquirido. A resposta, presume-se, é algo que “já lá está” e que temos de descobrir. Este é o tipo de perguntas que a ciência aborda.

Aqui costuma surgir outra confusão. É correcto dizer que as religiões dão respostas. É esse um dos seus objectivos principais. Pergunte-se a um religioso algo acerca dos deuses, da origem do universo, do maior mistério e ele, mesmo admitindo que é um mistério, dá normalmente uma resposta. A diferença entre religiões e ciência não está nos tipos de pergunta, porque ambas dão primazia às perguntas que exigem uma, e só uma, resposta certa. A diferença é que o ponto forte da ciência não é dar uma resposta mas sim fazer a parte difícil, que é avaliar, comparativamente, as respostas possíveis. É fácil esquecer isto porque, se se perguntar a um cientista qual o número atómico do carbono ou a idade do sistema solar, ele dá uma resposta. Mas apenas porque a ciência já foi feita. Já se passou séculos a considerar alternativas, a compará-las, a descartar muita coisa até chegar a algo que, provisoriamente, parece ser a melhor resposta.

Num aspecto, Fiolhais tem razão. Se perguntarmos sobre Deus a um católico, muçulmano ou judeu, cada um dará a sua resposta acerca do que Deus é, quer, fez e exige de nós. A ciência, concordo, não faz isto. A ciência não dá respostas tiradas do chapéu, seja por fé ou fezada. Mas se a questão admite apenas uma resposta objectivamente correcta a ciência é a melhor forma de tentar respondê-la porque a ciência procura entre todas as respostas possíveis aquela que encaixa na melhor explicação para todos os dados relevantes. Muitas vezes os dados são insuficientes para que uma resposta seja claramente melhor do que as demais e, mesmo que seja, sê-lo-à apenas provisoriamente. Mas isto é o melhor que se pode fazer e qualquer afirmação ou certeza que vá além disto é mera ilusão.

Outra confusão está em julgar que a ciência decide “provando” o que é verdade. Por isso, Anselmo Borges apontou que não se pode provar que Deus não existe. Mas consideremos a hipótese evangélica de Deus ter criado o mundo em seis dias há seis mil anos atrás. Se Deus é omnipotente, não se pode provar que isto é falso. Um deus assim até poderia ter criado tudo há cinco minutos sem ter deixado qualquer indício disso. Com um deus que tudo pode fazer, até as nossas memórias de infância podem ter sido criadas já nos nossos cérebros. A ciência rejeita esta hipótese simplesmente porque há uma explicação melhor para a origem da Terra que não inclui deus nenhum. E isto aplica-se igualmente ao deus que terá ditado o Corão, ao deus que levou o corpo de Maria para o céu ou ao deus que terá feito o universo num big-bang. Tudo isso a ciência rejeita. Não por “provar” o que quer que seja mas porque a ciência é um processo contínuo de inferência à melhor explicação e, neste momento, essas coisas não fazem parte das melhores explicações que temos.

1- RTP, Prós e Contras.

Em simultâneo no Que Treta

24 de Outubro, 2014 Ludwig Krippahl

O pulmão natural.

Os dirigentes da Igreja Católica têm estado a decidir se a Idade Média já acabou. O assunto pode parecer simples para quem está de fora mas, como o Espírito Santo diz umas coisas ao Papa e outras aos bispos, a decisão está complicada. Entretanto, alguns comentadores católicos por cá já chegaram à sua verdade revelada. Admito que aquilo que João César das Neves pensa acerca do casamento e do divórcio é entre ele a a sua esposa, e o que Gonçalo Portocarrero de Almada pensa é só com ele. Mas achei piada aos argumentos que apresentam para fazer de conta que não defendem um disparate.

Neves argumenta que o divórcio é inadmissível com uma analogia entre o cônjuge e o pulmão. «Tenho problemas respiratórios desde pequeno, com asma, bronquites, etc. Viver com os meus pulmões não é nada fácil, mas nunca me passou pela cabeça andar sem eles.» Foi «pelas mesmas razões» que não lhe ocorreu divorciar-se (1). É uma analogia estranha mas reveladora da noção que Neves tem do casamento. Eu não trocaria os meus pulmões porque, com a medicina que temos hoje, isso teria consequências desagradáveis. Mas se, quando eu tiver sessenta anos, a medicina permitir trocar de pulmões com a mesma facilidade com que se tira um apêndice, não verei problema ético nenhum em trocar os meus pulmões de sessenta anos por uns de vinte. Trocar assim de cônjuge já não seria um acto moralmente neutro. Mas, ao contrário do que Neves defende, isto não tem nada que ver com preservarmos «aquele corpo a que pertencemos desde que nascemos». Não se trata de um dever de permanecer juntos só porque calhou estar juntos. Tem que ver com o cônjuge ser uma pessoa e não um apêndice.

À primeira vista, isto pode parecer dar ainda mais razão à tese de Neves por ser pior trocar de cônjuge do que de pulmões. Mas o dever de ter consideração pelo cônjuge pode tornar o divórcio numa obrigação moral se a relação não for aquela que ambos merecem. A tese de Neves revela um problema comum a muitas religiões: descurar o facto de que, mesmo quando fazem parte de famílias, comunidades ou cultos, as pessoas continuam a ser indivíduos. Não passam a ser órgãos.

Gonçalo Portocarrero de Almada tenta chegar ao mesmo sítio por outra via. Invoca que «O matrimónio cristão [é] o casamento natural elevado à condição de sacramento» e que, por ser natural, «essa união só pode ser estabelecida entre uma mulher e um varão e deve durar enquanto os dois cônjuges forem vivos.»(2). Concordo que o casamento é algo natural na nossa espécie. A nossa espécie é, apesar do que por vezes parece, especialmente inteligente, e temos muito a ganhar por viver em grupos mistos de adultos e crianças. No entanto, as nossas crias precisam da atenção de ambos os progenitores, o que exige que os machos saibam quais são as suas crias. A dificuldade de combinar a vida em grupo com o investimento paternal e evitar que os machos matem as crias dos outros obrigou a nossa espécie a criar rituais e normas de comportamento que permitissem este tipo de colaboração. O casamento é um dos mecanismos resultantes desta pressão.

Mas se há algo natural na nossa espécie é a capacidade de nos adaptarmos às circunstâncias. É por isso falso que o casamento tenha de ser entre “uma mulher e um varão” e durar a vida toda. Todas as culturas têm formas de divórcio e quantos casam com quem e com quantos depende das condições em que vivem. Culturas nas quais os homens arriscam frequentemente a vida em confrontos para capturar recursos tendem a favorecer a poliginia. Habitar em regiões mais pobres pode favorecer a poliandria, com uma mulher tipicamente casando com dois irmãos, o que lhe permite reunir os recursos necessários para criar os filhos. Com a formalização legal das uniões e a separação entre o Estado e a vida privada, é perfeitamente natural que o casamento possa ser a união entre duas pessoas, qualquer que seja o sexo. Não será um matrimónio no sentido original do termo mas, como as evidências claramente demonstram, não sai do intervalo de adaptabilidade destas normas sociais.

É perfeitamente legítimo que os católicos concebam o seu casamento como bem entenderem. Mas a sua condenação do divórcio é uma idiossincrasia religiosa que não reflecte qualquer realidade profunda acerca da natureza humana ou dos transplantes de órgãos.

1- DN, Amputação
2- Voz da Verdade, Divórcio, casamento natural e matrimónio cristão

Em simultâneo no Que Treta!

12 de Outubro, 2014 Ludwig Krippahl

De onde vem a ética?

O Jónatas Machado comenta regularmente no meu blog, como “Perspectiva” ou “Criacionismo Bíblico”. Infelizmente, os seus comentários são tão repetitivos e desligados dos posts que comenta que deixei de olhar para eles. Mas chamaram-me a atenção para uma excepção, no post sobre a igualdade de direitos, que é um bom ponto de partida para algo que me interessa. Escreve o Jónatas que «ficamos sem saber porque é que o facto as pessoas sentirem, desejarem, planearem, sonharem e pensarem lhes confere dignidade e direitos iguais. Especialmente quando se acredita que as pessoas são um acidente cósmico», pondo em seguida as seguintes questões: «Como é que um acidente cósmico pode reclamar dignidade intrínseca? […] E reclama dignidade diante de quem? Que norma obriga um acidente cósmico a reconhecer a igual dignidade de outra acidente cósmico?». Finalmente, alega que «O princípio da igualdade não faz sentido à luz de uma visão ateísta» e que «O princípio da igualdade é, na realidade, uma doutrina cristã, cuja origem está em Génesis. Ele baseia-se no facto de homens e mulheres terem sido criados à imagem e semelhança de Deus.» (1) Penso que quem não for fundamentalista religioso percebe que estas alegações são falsas. Mas, como de costume, o que me interessa mais é detalhar o porquê.

Comecemos pelo mais fácil. Se alguém me pisa eu digo “Au! Está a pisar-me!” É fácil perceber que a minha capacidade de sentir, pensar e falar bastou para que reclamasse dessa violação da minha integridade. É também natural que eu dirija a minha reclamação a quem me pisou. Este mecanismo é comum nos animais. Se o Jónatas pisar a cauda de um cão grande, o animal irá reagir sem dificuldade em saber contra quem e facilmente lhe ocorrerá como persuadir o Jónatas a não repetir a brincadeira. É verdade que isto não tem nada de ético, mas já lá vamos. O importante primeiro é perceber que o mecanismo para identificar estes conflitos, reclamar deles e coagir para que não se repitam é consequência natural de capacidades sensoriais, motoras e cognitivas comuns em várias espécies.

Quando animais destes vivem em grupos, a pressão para reduzir conflitos e maximizar benefícios condiciona padrões colectivos de comportamento. Assim, em galinheiros, matilhas de lobos e grupos sociais de golfinhos, por exemplo, surgem normas implícitas, aprendidas por cada nova geração pela socialização com os mais velhos, e que regulam comportamentos que vão desde quem pode dar bicadas em quem até estratégias complexas de caça e reprodução. Na nossa espécie, a capacidade de codificar estes padrões em linguagens e ritos cria a moral, um conjunto de normas e de regras explícitas que condicionam o comportamento de indivíduos em cada cultura. É comum invocar-se deuses para ameaçar infractores ou justificar as regras mas, em rigor, isso seria dispensável. Talvez dizer “se roubas cortamos-te as mãos” não seja tão eficaz como dizer “roubar é pecado aos olhos de Xumbundu, por isso se roubas cortamos-te as mãos e Xumbundu condenará a tua alma ao inferno das mil diarreias”. Mas a diferença, se houver, será meramente quantitativa. A ideia é a mesma: as normas surgem pela interacção dos elementos do grupo, esses elementos encarregam-se de coagir o respeito pelas normas e a moral que daí advém é apenas a representação simbólica de padrões que cristalizaram sem plano nem propósito. Com isto já se faz leis, religiões, costumes, castas, tradições e regras sociais complexas. Mas, como há muitos pontos de equilíbrio nestes sistemas complexos, a moral de uma sociedade pode ser muito diferente daquela que surge noutra e pode incluir racismo, escravatura, tortura, despotismo e outras injustiças terríveis, conforme calhe. Quanto a isto, a religião de nada adianta.

A ética é um bicho diferente porque não é feita de comportamentos, nem de normas, nem de regras, direitos ou obrigações. A ética é feita de perguntas. Quando Sócrates perguntou o que é a virtude, todos os seus contemporâneos julgavam que a resposta era óbvia. Mas não era. Nem é. Porque não devemos roubar? Quando é legítimo matar? Viver é um direito, um privilégio ou uma obrigação? Estas perguntas são importantes porque impedem uma adesão cega ao sistema moral que nos tenha calhado e permitem uma abordagem consciente e racional dos problemas. Eu considero que homens e mulheres têm direitos iguais porque considero que são equivalentes naquilo que importa para ter direitos, como sentir, pensar e dar valor à sua existência. O Jónatas acha que é por «terem sido criados à imagem e semelhança de Deus» mas essa premissa não tem fundamento factual, não passa de uma interpretação possível para a rábula da costela e nem sequer é consensual no cristianismo. Também não permite estender a noção de direitos a animais de outras espécies que, apesar de não serem semelhantes ao deus do Jónatas, partilham connosco muito daquilo que justifica ter direitos.

A ética serve para substituir os mecanismos cegos de estabilização de comportamentos pelo debate consciente e as racionalizações do status quo por justificações racionais. Os princípios que daí advêm depois podem ser transpostos para normas, como leis, formas de governo e afins, corrigindo gradualmente os erros do passado. Ao contrário do que o Jónatas defende, a religião não traz benefícios nisto porque é apenas mais um legado desses mecanismos primitivos que dominaram as sociedades até há poucos séculos. Os mesmos mecanismos que governam galinheiros e matilhas. E a ética não pode vir de Deus porque a ética não é algo que nos dão. É algo que temos de fazer por nós, pois exige questionar, reflectir e perceber os problemas de outras perspectivas. O único deus que poderia participar nesta actividade seria um deus filósofo, disposto a dialogar e a justificar as suas posições. Mas como um deus filósofo não é útil aos sacerdotes, as religiões só inventam deuses déspotas, prepotentes e preconceituosos, que nada podem contribuir para esta empreitada.

1- Igualdade e diferenças, segundo comentário.

Em simultâneo no Que Treta!

1 de Outubro, 2014 Ludwig Krippahl

Treta da semana (passada): a careca é uma cor de cabelo.

A crítica de Rui Ramos ao ateísmo de Stephen Hawking segue a fórmula do costume. Primeiro, se Hawking «acredita que Deus não existe» então, tal como o crente em Deus, tem «fé, embora diversa – a fé na inexistência de Deus.» Depois, que chegou à sua conclusão da mesma forma que o crente: «A questão é determinar de que modo, entre a fé em Deus e a fé na inexistência de Deus, Hawking passa de uma margem para a outra. A sua ponte não é o cepticismo, mas a ciência, ou melhor, uma variante muito especial da experiência científica, que funciona de facto como o equivalente laico da fé religiosa.» Finalmente, que a atitude de Hawking para com a ciência é igual à de qualquer crente. «Hawking sente pela ciência a devoção que qualquer beato dispensa ao seu todo-poderoso ídolo»(1).

Esta forma de criticar o ateísmo sempre me pareceu estranha pela admissão implícita de que a crença em Deus é estapafúrdia. Não é que discorde. Concordo inteiramente que é um disparate formar crenças acerca da realidade por meio da fé e da devoção beata. Mas é estranho julgarem que a falta de fundamento epistémico da crença religiosa é um bom argumento contra o ateísmo. No entanto, mais interessante é perceber porque é que as alegações de Ramos são falsas.

A fé não é o mesmo que a crença. Acreditar é simplesmente aceitar uma proposição como verdadeira enquanto que a fé é um compromisso pessoal de fidelidade e perseverança para com certas ideias (2). É perfeitamente possível acreditar sem fé. Eu acredito que Deus não existe da mesma forma como acredito que a Terra se formou há 4.5 mil milhões de anos, sem sentir qualquer dever de fidelidade para com estas proposições. E é também possível ter fé sem ter crença se a fidelidade a uma ideia não bastar para que se consiga acreditar. A confusão de Ramos entre fé e crença atropela a diferença entre a devoção do crente aos princípios da sua religião e a forma descomprometida como todos regularmente adoptamos e descartamos crenças conforme julgamos conveniente.

O contexto destas crenças também é diferente. A ciência procura a melhor explicação para os dados de que se dispõe. É verdade que isto só resulta se houver dados suficientes e, por isso, a ciência só começou a ter sucesso nos últimos séculos; sem saber nada sobre decaimento radioactivo, a erosão ou a formação do sistema solar não havia razões para acreditar que a Terra tinha 4.5 mil milhões de anos em vez de só dez mil. Mas, com o que sabemos agora, a melhor explicação fica tão entalada na estrutura interligada de observações e outras explicações que, a menos de uma pequena margem de erro, só o valor de 4.5 mil milhões de anos pode ser aceite.

A crença de que um deus inteligente e bondoso criou a Terra por milagre não sofre destas restrições. Em geral, os preceitos de cada religião são arbitrários e podiam ser qualquer coisa. Se criou tudo por milagre, tanto podia ter criado o universo há treze mil milhões de anos como podia ter criado tudo há dez mil anos em sete dias ou em sete minutos na sexta-feira passada. Milagre por milagre, também podia ter criado os fósseis, os vestígios de erosão e até as memórias que cada um de nós tem. Sem qualquer suporte empírico, só a fé leva o crente a decidir que a sua crença é mais acertada do que as dos outros.

O processo também é muito diferente. A ciência não é um «equivalente laico da fé religiosa». A ciência progride explorando e testando alternativas. É este processo de rejeitar o que se revela incorrecto que vai apertando o cerco às explicações admissíveis, deixando cada vez menos elementos arbitrários. Nas religiões, o primeiro passo consiste em afirmar algo como Verdade. E pronto. O resto é teólogos a inventar desculpas para as inconsistências e arbitrariedade da escolha inicial (3). É verdade, como menciona Ramos, que houve «séculos de meditação e de debate» acerca de Deus e outros deuses. Mas o debate e a meditação são inúteis se não se está disposto a descartar as hipóteses erradas.

Hoje é evidente que os deuses são mera ficção porque qualquer coisa que se tente explicar invocando um deus explica-se melhor rejeitando esse deus como fantasia, desde a formação das galáxias e a origem das espécies à existência do mal e a diversidade das religiões. Também não é a «pobreza da […] concepção de Deus» que faz diferença porque, por muito “rica” que seja, é uma concepção arbitrária, infundada e inútil para explicar seja para o que for. A ciência eliminou os deuses de todas as explicações para o universo que nos rodeia. Sobraram apenas as alegações que os crentes mantêm por fé. Mas, antes de nos metermos pela metafísica da existência dos deuses na premissa de que estas alegações correspondem à realidade, devemos primeiro determinar se é preciso deuses para explicar a fé dos crentes. Também aqui a ciência responde pela negativa. Há evidências claras de que é muito fácil aos seres humanos agarrarem-se a superstições e que a intensidade desse apego não é indicador fiável da verdade das crenças.

Não é preciso idolatrar a ciência para perceber que a fé não serve para compreender a realidade. É precisamente isso que Ramos argumenta contra Hawking, errando apenas por presumir que a posição de Hawking deriva da fé. Mas não é preciso fé para concluir que os deuses são tão fictícios quanto os unicórnios, os fantasmas e os dragões. Basta fazer o puzzle com as peças que encaixam.

1- Rui Ramos, O deus de Stephen Hawking
2- Catholic Encyclopedia, Faith.
3- A propósito disto, recomendo esta palestra de David Deutsch na TED: A new way to explain explanation

Em simultâneo no Que Treta!

14 de Agosto, 2014 Ludwig Krippahl

O problema da indiferença.

Os teólogos chamam-lhe o problema filosófico do mal. O termo é enganador porque o problema a que se refere não está no mal em si. Está na hipótese de existir um ser infinitamente bondoso que tudo sabe e tudo pode. É essa hipótese que claramente não encaixa no que observamos. Mas como nas religiões não fica bem admitir erros, muita gente se tem dedicado, durante milénios, à tarefa fútil de arranjar desculpas para que um deus infinitamente bondoso permita tanta desgraça. Neste momento, a racionalização mais popular parece ser é a de que o mal existe porque Deus respeita a vontade de cada um e a liberdade é incompatível com a garantia de que só há bem e não há mal*.

Mesmo restringindo o problema ao mal – actos intencionais da vontade humana – esta justificação é inconsistente com o que observamos nos conflitos entre vontades diferentes. Se A tem vontade de fazer mal a B e B tem muita vontade de que não lhe façam mal, o que determina o resultado não é a justiça nem o respeito por quem tem mais vontade. É simplesmente a força física ou a arma mais eficaz. O que as evidências demonstram é que os deuses, se algum existir, respeitam mais a Kalashnikov do que a vontade livre de cada um.

No entanto, o problema é muito mais vasto do que o mal enquanto acto com intenção. Todos os anos morrem mais de seis milhões de crianças pequenas, de até cinco anos de idade. Morrem principalmente de pneumonia, complicações na gravidez, asfixia durante o parto, diarreia e malária (1). Não morrem por alguém ter desejado que morressem. Não é a maldade que as mata. São bactérias e protozoários, falta de alimentos e termos evoluído bípedes de crânio grande a partir de antepassados quadrúpedes, resultando na passagem de um feto cabeçudo por dentro de uma pélvis que tem de ser estreita para a mãe conseguir andar. As tragédias que ocorrem sem qualquer intenção, maldade ou culpa, como doenças e acidentes, são muito mais numerosas do que aquelas que se pode atribuir a um mal intencional. Seja como for, perante qualquer tragédia, a Natureza comporta-se exactamente como se não fosse governada com bondade, inteligência ou vontade. Para o universo, morrer o filho nos braços da mãe é o mesmo que cair uma gota de chuva num charco. Se alguma emoção governasse isto tudo não seria amor nem ódio. Seria a indiferença absoluta.

A tragédia é muito maior do que o sofrimento dos humanos de hoje. A nossa espécie já sofre há centenas de milhares de anos, os primatas há cinquenta milhões e os mamíferos há trezentos milhões de anos. E sabe-se lá quantas espécies capazes de sofrimento existiram nos quatro mil milhões de anos de vida neste planeta e em quantos outros planetas nos treze mil milhões de anos que dura este universo, imensamente mais vasto do que qualquer coisa que as religiões puderam imaginar. A indiferença do universo perante toda esta tragédia é um problema muito maior para a hipótese do deus bondoso do que os humanos serem mauzinhos de vez em quando, que não passa de um detalhe insignificante na história do sofrimento. No entanto, nada disto configura o problema filosófico que os teólogos apregoam. Distinguir entre o bem e o mal é um problema filosófico importante mas o mero facto de existir sofrimento e de ser possível agir com bondade ou maldade é filosoficamente tão misterioso como a existência da pedra pomes ou a possibilidade de fazer croché.

O “problema do mal” é apenas o problema de insistir, contra as evidências, que este universo é governado por um ser infinitamente bondoso. A alegação não só é obviamente falsa como até é moralmente repugnante. Sem um deus desses, muita da tragédia que enfrentamos é simplesmente algo que acontece. Uma doença incurável, um acidente imprevisível. Um azar, sem maldade nem culpa. Mas se acreditarmos num deus desses temos de acreditar que toda a tragédia é maldade porque temos de acreditar que toda a doença tem cura, que todos os acidentes são evitáveis e que a tragédia só acontece porque o ser supremo não se importa com quem sofre. A indiferença natural de um universo que não pensa nem sente torna-se na indiferença cruel de um deus que se limita a apreciar o sofrimento quando o poderia evitar sem qualquer esforço. Isto não é um problema filosófico do mal. É um problema psiquiátrico da fé.

* Isto é inconsistente com a tese de que Deus e todas as almas no paraíso têm vontade livre mas são incapazes de praticar o mal. A própria teologia exige que a vontade livre seja compatível com a bondade perfeita. Mas como é melhor refutar disparates com factos do que com outros disparates remeti esta objecção para o rodapé.

1- OMS, Children: reducing mortality

Em simultâneo no Que Treta!

25 de Julho, 2014 Ludwig Krippahl

Ciência e religiões.

No que tenho lido e discutido sobre isto tenho encontrado três reacções à incompatibilidade entre a ciência e as crenças religiosas. Uma consiste em afirmar a crença religiosa como cientificamente sólida mesmo que isso exija mentir descaradamente. É o que fazem os fundamentalistas, dos criacionistas aos cientólogos. Outra é alegar que ciência e religião são separadas e nunca interferem. É atraente para quem não quer chatices, como os agnósticos, por exemplo. A terceira é defender que ciência e religião se complementam porque lidam com realidades diferentes. Esta é popular entre os católicos que, apesar das evidências em contrário, insistem que fé e razão não se podem contradizer.

A primeira abordagem deturpa os resultados da ciência. As “evidências científicas” para o Dilúvio, para a dianética ou para a misoginia muçulmana são tão disparatadas que os crentes mais esclarecidos até pedem que não se mencione essas coisas, não vá alguém notar que “religião” abarca mais do que a versão light que estes defendem. A tese da não-interferência assume que a investigação dos factos está isolada da procura pelos melhores valores. Isto é fundamentalmente falso porque a ciência assume valores e qualquer discussão ética depende de factos. No entanto, mesmo considerando ciência e ética superficialmente independentes, as religiões não são ética. As religiões são sistemas de regras assentes em alegações acerca do que os deuses querem e toda a autoridade religiosa deriva desses alegados factos.

A tese da complementaridade deturpa a ciência, mas a deturpação passa mais facilmente despercebida. A ideia fundamental é a de que a ciência lida com a matéria enquanto “a religião” (no singular, como se só houvesse uma) lida com o espírito. Assim, como disse recentemente o filósofo Michael Ruse: «Se a pessoa de fé quiser dizer que Deus criou o mundo, não acho que se possa negar isto por razões científicas»(1). O que Deus faz está no campo da religião e fora dos assuntos da ciência. Isto parece razoável mas está errado.

O erro é julgar que a ciência lida com aspectos da realidade como a matéria, o espaço e energia como o carpinteiro trabalha com a madeira e o pedreiro com a pedra. Assim, tal como o carpinteiro não solda e o pedreiro não aduba, o cientista não toca no sobrenatural. Desde que seja aquele deus, é claro. Os religiosos não levantam objecções quando a ciência refuta as crenças sobrenaturais dos outros; só as suas é que estão fora do âmbito da ciência, noutro “nível da realidade”. Isto está errado porque o propósito da ciência é encontrar as ideias – modelos, hipóteses, teorias e afins – que melhor correspondam à realidade. Por isso, aquilo que a ciência molda, esculpe, serra e martela são as ideias e não a realidade em si.

Para se ir aproximando da verdade, a ciência confronta constantemente todas as ideias umas com as outras e com tudo o que, a cada momento, justificadamente se julga saber. Não é um processo linear nem isento de retrocessos porque por vezes revela que o que se julgava ser conhecimento era erro. Mas só isso já é uma vantagem sobre as alternativas e a história da relação entre a ciência e as religiões é uma prova de como a ciência é a mais fiável. Apesar de inicialmente terem tentado, pela força, que fosse a ciência a ceder, o que tem sempre acontecido é a ciência revelar erros nas crenças religiosas. O contrário nunca aconteceu.

Também é errado pensar que a ciência só serve para avaliar ideias que sejam empiricamente testáveis. O conhecimento não é um saco de alegações soltas. É um edifício de modelos e teorias fortemente interligados. As fundações têm de assentar em dados empíricos mas, desde que seja sólido, o edifício pode ir muito mais alto. É por isso que a ciência pode responder a perguntas hipotéticas como o que acontece se explodir uma bomba nuclear no Chiado ou como se pode cultivar plantas em Marte. Mesmo sem testar directamente as respostas pode-se avaliá-las pela sua consistência com o edifício de conhecimento que já está construído. É também assim que podemos concluir, com legitimidade científica, que a Alexandra Solnado não fala com Jesus, que o professor Bambo não tem poderes videntes e que as biópsias que a Maya faz por telefone não são de fiar. Não por podermos testar cada alegação individualmente mas porque o conhecimento que temos, assente num fundamento empírico, faz com que a hipótese mais plausível seja a de que essas alegações são falsas.

Aplica-se o mesmo às doutrinas religiosas. Considerando o que sabemos, desde a física e cosmologia à psicologia e sociologia, a hipótese que tem melhor fundamento é a de que os deuses são uma invenção humana. Se bem que a ciência não explique tudo, sem deuses explica muita coisa enquanto os deuses não explicam nada. A imaginação humana tem limites e não chegaria para inventar a mecânica quântica ou a teoria da relatividade sem ser guiada, passo a passo, por muitos indícios experimentais. Mas os mitos religiosos são comparativamente simples e vagos e estão bem dentro daquilo que os humanos conseguem inventar por si. Se a pessoa de fé quiser dizer que Deus criou o mundo, está no seu direito. Diz e acredita o que quiser. Mas é legítimo que a ciência rejeite essa hipótese porque há uma hipótese alternativa com um fundamento muito mais sólido: os deuses são personagens fictícios.

1- New York Times, Opinionator, Does Evolution Explain Religious Beliefs?

Em simultâneo no Que Treta!

30 de Junho, 2014 Ludwig Krippahl

Treta da semana (passada): ciência criacionista.

A “Enciclopédia de Ciência da Criação” define que: «Um cientista criacionista contemporâneo é uma pessoa que está formalmente treinada em uma disciplina científica, mas que aborda um campo de estudo e/ou de pesquisa a partir da crença de que o universo foi criado por Deus.»(1). Ironicamente, a tentativa de dar ao criacionismo a aparência de ser científico acaba apenas por expor a treta. Mais importante ainda, porque o criacionismo por cá é ainda uma anomalia minoritária, isto ilustra também a inconsistência fundamental entre qualquer religião e a ciência.

O objectivo da ciência é moldar as nossas crenças à realidade. Não é um processo infalível nem acabado mas tende a melhorar gradualmente o encaixe entre aquilo que julgamos ser e aquilo que realmente é. Para esse fim, não se pode, por exemplo, abordar a geologia a partir da crença de que a Terra é plana ou a astronomia a partir da crença de que a Lua é feita de queijo. Seja qual for a crença ou problema, não é científico comprometer-se à partida com uma crença, de forma firme e persistente, porque o que se quer com a ciência é explorar as possibilidades e procurar as crenças que melhor correspondam aos dados que se vão acumulando. Para isso exige-se uma atitude céptica no sentido de adoptar ou rejeitar crenças sempre conforme o peso das evidências e nunca por vontade pessoal. O que é exactamente o contrário da crença religiosa, carente de fé e apregoada como resultando do exercício da vontade livre do crente.

Esta diferença é evidente em vários trechos da enciclopédia criacionista. O artigo sobre “Cosmologia criacionista” explica que «A idade do universo estimada atualmente está muito além do que um cientista criacionista típico aceitaria. Em resposta, muitas cosmologias criacionistas de universo jovem têm sido propostas para discutir a questão da idade»(2). É consensual na cosmologia que o universo tem quase catorze mil milhões de anos. Este valor já foi revisto várias vezes, porque valores anteriores revelaram-se incompatíveis com a informação que se ia obtendo, mas a ciência progride precisamente por encontrar alternativas que se ajustam melhor aos dados. O “cientista” criacionista faz o contrário. Primeiro decide em que hipóteses acredita «a partir da crença de que o universo foi criado por Deus» e depois limita-se a escolher as evidências que forem mais favoráveis a essas crenças.

Noutro exemplo, «Criação biológica é basicamente o estudo dos sistemas biológicos, enquanto acontecem sob a suposição de que Deus criou vida na Terra. A disciplina é estabelecida sob a idéia de que Deus criou um número finito de discretos espécies criadas»(3). Quando se usa a ciência para estudar algo não se pode estabelecer disciplinas “sob ideias” pré-concebidas nem fixar qualquer suposição. Afinal, o objectivo é perceber o que se passa e não cultivar preconceitos. Por isso, o tal “criacionismo científico” não é ciência mas apenas uma de muitas aldrabices que abusam da ciência para fazer parecer que a sua doutrina tem fundamento.

Se bem que muitos crentes concordem com este juízo acerca do criacionismo, porque rejeitam a interpretação literal dos escritos religiosos, normalmente recusam-se a reconhecer que este conflito entre religião e ciência não depende dessa interpretação literal nem é evitável enquanto a religião professar a fé em alegações acerca da realidade. Quer leiam a Bíblia à letra quer a leiam como metáfora, a fé firme na «crença de que o universo foi criado por Deus» torna-os todos criacionistas e põe-nos todos em contradição com a ciência. Nem é só pelos indícios, cada vez mais fortes, de que o universo não foi criado com inteligência nem há ninguém encarregue disto tudo que se rale minimamente com o que nos acontece ou com o que fazemos. É, principalmente, porque a ciência exige que se trate todas as crenças como equivalentes à partida e se faça distinção entre elas apenas pelo que objectivamente revelam corresponder à realidade. Isto é incompatível com qualquer fé, dogmatismo ou crença pré-concebida da qual não se queira abdicar.

1- Enciclopédia de Ciência da Criação, Cientista criacionista
2- Enciclopédia de Ciência da Criação, Cosmologia criacionista
3- Enciclopédia de Ciência da Criação, Criação

Em simultâneo no Que Treta!

31 de Maio, 2014 Ludwig Krippahl

Treta da semana (passada): eucaristia pirata.

As bênçãos de Deus são infinitas. Tal como um ficheiro pode ser copiado sem gastar o original, também uns podem ser abençoados sem que se desabençoem terceiros. Nesta economia da abundância seria de esperar que não houvesse problemas em partilhar bênçãos e ficheiros. Mas há. Porque há direitos exclusivos de distribuição. Por violar o contrato de exclusividade que Deus terá celebrado com a Igreja Católica há dois mil anos, Martha Heizer foi excomungada pelo Jorge Bergoglio, o gestor de direitos e representante exclusivo do Criador do Universo.

Segundo relata o João Silveira, «O caso Heizer eclodiu em 2011, quando a professora de religião em Innsbruck (Áustria), decidiu desafiar o Vaticano sobre a questão da ordenação de mulheres, anunciando a sua intenção de celebrar a Eucaristia em sua casa, em Absam, uma pequena cidade perto de Innsbruck.»(1) A usurpação dos direitos de distribuição de bênçãos e comunhões «é considerada pela a Igreja como “delicta graviora”, tal como a pedofilia e os crimes contra a Penitência.» É de notar, no entanto, que aqui o João Silveira exagerou um pouco. Obviamente, o crime de uma mulher celebrar missa não está ao nível do crime de um padre violar crianças. São delitos graves, mas não são a mesma coisa. É por isso que nenhum padre foi ainda excomungado por abusar sexualmente de menores.

Heizer é «co-fundadora e presidente da “Wir sind Kirche” (Nós Somos Igreja)», um grupo de católicos que defende «o sacerdócio feminino, além de uma maior democracia, a abolição do celibato dos sacerdotes e a adequação da moralidade sexual aos costumes modernos» Estas ideias são tão estranhas – democracia, igualdade e uma atitude moral com menos de cem anos – que o grupo só conseguiu reunir quinhentas mil assinaturas na Áustria e um milhão e oitocentas mil na Alemanha. Claramente, Bergoglio devia seguir os conselhos de Lilian Ferreira da Silva, que comenta assim no post: «É importante que sejam excomungados todos os que assim procedem e todos os que se sentem atraídos por tais tendências.» (2) Eu diria que era bom excomungarem não só essa gente mas também todos os católicos que usam contraceptivos, todos os que não vão regularmente à missa e todos que não considerem dever obediência total ao Papa. Não só expurgavam os hereges como ficávamos com uma ideia mais correcta da verdadeira importância que o catolicismo tem na Europa. Infelizmente, a Igreja é muito parca na excomunhão. Nem a mim excomungam, que só sou oficialmente católico por me terem baptizado mal nasci. Mas também, verdade seja dita, eu só nego a existência de Deus, ridicularizo o Espírito Santo e critico a Igreja post sim, post não. Nunca cheguei ao delito extremo de ser mulher e celebrar missa.

O João Pedro BM explica assim a gravidade do crime desta senhora, e o porquê da Igreja Católica não poder ordenar mulheres: «Cristo nao ordenou mulheres, também nao o fará a Igreja que Cristo fundou.» É uma hipótese interessante mas tem algumas falhas. Por exemplo, Cristo também não ordenou sul-americanos nem pessoas que não fossem judeus de nascença. Talvez, à cautela, fosse melhor excomungar também o Jorge Bergoglio e quaisquer outros sacerdotes que não tenham nascido judeus na palestina ocupada pelo império romano. Afinal, foi só entre esses que Jesus escolheu os seus apóstolos.

Também achei interessante, e reveladora, a solução que vários católicos propuseram para as reivindicações do grupo “Nós somos Igreja”. A Teresa Chaves, por exemplo, escreveu que «Se “Nos somos Igreja” tem uma visão diferente da doutrina católica, criem uma nova religião e deixem os cristãos em paz!» Esta proposta demonstra um enorme progresso na mentalidade católica. Antigamente, a atitude seria a de que os hereges mereceriam a morte por estar em jogo almas imortais e a vontade divina. Agora já admitem, ainda que implicitamente, que as religiões são meras invenções humanas e que quem não estiver satisfeito com uma que invente outra.

É curioso descobrir uma analogia tão forte entre dois assuntos que me têm interessado tanto e que, até agora, me pareciam completamente diferentes. Mas, no fundo, a legitimidade da doutrina católica tem tanto que ver com a vontade de Deus como o copyright do Rato Mickey tem que ver com incentivar o Walt Disney a desenhar mais bonecos. O que se passa aqui é simplesmente o esforço por parte de um grupo influente em controlar a distribuição de bens que são trivialmente duplicáveis e transmissíveis. Seja ficheiros, seja missas, o problema nesta economia não é a escassez mas apenas a ganância dos intermediários.

1- Senza Pagare, Papa Francisco excomungou a fundadora do “Nós Somos Igreja”
2- Nos comentários ao post: Papa Francisco excomungou a fundadora do “Nós Somos Igreja”

Também no Que Treta!

11 de Maio, 2014 Ludwig Krippahl

Treta da semana (passada): Olavo de Carvalho.

De vez em quando, acusam-me de desprezar a filosofia. É falso. Eu acho que a filosofia é uma disciplina importante e uma peça crucial na procura de conhecimento. Não se consegue esclarecer nada sem pensar com clareza, especificar bem os termos e encontrar as distinções relevantes. Mas prezar a filosofia não é o mesmo que prezar tudo o que se diz ser filosofia. Há umas semanas, partilharam comigo este vídeo de um defensor do cristianismo, conservador, e alegado filósofo Olavo de Carvalho (1). Contornando a forma como o argumento é apresentado, ignorando uma série de disparates e reduzindo-o ao essencial, Carvalho propõe que é mais fácil acreditar que Jesus foi mesmo a encarnação terrena do criador do universo porque o que está relatado nos evangelhos é um facto.

Mas talvez estivesse num dia mau quando gravaram este vídeo e não é justo julgá-lo apenas pelo que aparentou ser nesse episódio menos feliz da sua carreira filosófica. Por isso, fui procurar outros exemplos. Textos escritos, onde a prosa é mais ponderada e se evita o “cêtáentenden?” a cada três palavras. Por exemplo, criticando ateus como Dawkins e Dennett, Carvalho afirma que «você só pode discutir a existência de um objeto previamente definido se o discute conforme a definição dada de início e não mudando a definição no decorrer da conversa, o que equivale a trocar de objeto e discutir outra coisa. Se Deus é definido como onipotente, onisciente e onipresente, é desse Deus que você tem de demonstrar a inexistência»(2). Há aqui um erro categórico fundamental que qualquer respeitador da filosofia deveria evitar. Não se discute o objecto nem se define o objecto. O que se define é um conceito e o que se discute é a hipótese desse conceito corresponder a algum aspecto da realidade. Parece uma distinção desnecessária mas, em filosofia, estes detalhes são importantes.

Se seguíssemos a regra que Carvalho propõe, então ninguém poderia rejeitar a existência do “deus esparguete voador que existe”. Se alguém o fizesse estaria a discutir outra coisa que não este deus esparguete voador que, por definição, existe. Obviamente, essa regra é um disparate. Se percebermos que a definição não é do deus esparguete em si mas apenas de um conceito e que o que está em causa é a hipótese desse conceito corresponder a alguma coisa real, então é evidentemente legítimo rejeitar essa hipótese em favor da alternativa de que este conceito é meramente fictício e não corresponde a nada de real. Cêtaentenden? Passa-se o mesmo com as conversas acerca de qualquer outro deus. Carvalho defende que há um «Deus onipotente, onisciente e onipresente» que podemos conhecer «apenas como fundamento ativo da nossa própria autoconsciência, maximamente presente como tal no instante mesmo em que esta, tomando posse de si, se pergunta por Ele.» Também aqui é legítimo, e não é «trocar de objeto e discutir outra coisa», considerar que esta alegação não corresponde à realidade por esse tal Deus ser apenas um personagem fictício de algumas histórias antigas. Carvalho alega também não se poder concluir que Deus não existe porque «Longe de poder ser investigado como objeto do mundo exterior, Deus também é definido na Bíblia como uma pessoa […] que mantém um diálogo íntimo e secreto com cada ser humano». Confunde novamente o que está em causa. O primeiro passo não é analisar esse Deus assumindo essa definição. Antes disso é preciso decidir se há alguma justificação para considerar que essa definição corresponde a alguma entidade real. Não há. Daí o ateísmo.

Noutro texto, Carvalho começa por alegar que «Quem quer que saiba o que é lógica tem a obrigação de saber também que, se a demonstração da existência de Deus pode ser difícil, a da Sua inexistência é absolutamente impossível.»(3) Na verdade, quem quer que saiba o que é lógica tem a obrigação de saber duas coisas mais fundamentais. Primeiro, que a facilidade ou impossibilidade de demonstrar algo logicamente depende totalmente dos axiomas de onde se parte. E, em segundo lugar, que a demonstração lógica apenas garante a consistência formal com os axiomas escolhidos e não nos diz nada acerca da realidade. Por exemplo, se ignorarmos a viscosidade do ar e a turbulência, podemos demonstrar logicamente que é impossível uma abelha voar. Para a abelha, a conclusão é irrelevante.

Pela incapacidade de disfarçar estes erros crassos, suspeito que o Olavo de Carvalho não seja um filósofo muito conceituado fora do seu grupo de seguidores no Facebook. No entanto, estes erros de confundir a definição de um conceito com os atributos de algo real e de julgar que uma demonstração lógica garante que a conclusão corresponde à realidade estão na base de quase todos (se não todos) os argumentos em suporte da existência de Deus que passam por filosóficos. O desprezo que sinto e manifesto por esse tipo de argumentos não vem de qualquer desprezo pela filosofia. Pelo contrário. É precisamente o apreço que tenho pela filosofia que me torna avesso a tais imposturas.

1- O Olavo de Carvalho tem um curriculum variado. Alguns exemplos: «Colaborou no primeiro curso de extensão universitária em astrologia na PUC de São Paulo para os formandos em psicologia em 1979. Aproximadamente na mesma época, realizava consultas astrológicas e lecionou na Escola Júpiter, escola de astrologia em São Paulo que chegou a receber 140 alunos. […] Além da manutenção periódica da página pessoal com novos artigos e ensaios, Carvalho ministra, com certa frequência, cursos à distância de Filosofia». Mais em Olavo de Carvalho.
2- Olavo de Carvalho, O deus dos palpiteiros.
3- Olavo de Carvalho, A chacota geral do mundo

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20 de Abril, 2014 Ludwig Krippahl

Treta da semana (passada): a prova.

No blog Senza Pagare há um post que explica: «Como provar que o Catolicismo é a forma verdadeira do Cristianismo» (1). É fantástico. De um arremesso resolve uma carrada de perguntas que há milénios suscitam discussão, por vezes com violência. Se há vida depois da morte, quem criou o universo, se existem deuses, quais e o que pensam da contracepção. Tudo isso respondido «uma forma simples e rápida». Primeiro, resolve-se o problema de provar que é o cristianismo a única religião verdadeira: «Maomé ou Buda ressuscitaram dos mortos? Não. Portanto isto termina muito rapidamente o debate sobre as religiões do mundo.» Tau! Toma que já levaste.

Depois é preciso resolver o problema das «36,000 denominações que entram em conflito sobre as crenças e moral cristã». Trinta e seis mil denominações cristãs que não são católicas. Como é que podemos rapidamente saber que a católica é a verdadeira? É também muito simples. «Comecem por Martinho Lutero. Lutero fez algum milagre? Fez alguma profecia que veio a acontecer? Não, nada disso.» E já está. Começa-se por Lutero, que vai logo fora porque não fez milagres, e as restantes 35,999 denominações vão fora também por arrasto. Sobra só a católica que, segundo o autor, podemos concluir ser verdadeira porque enquanto Lutero andava sentado nas mãos sem milagrar coisa nenhuma «aconteceu o milagre de Nossa Senhora de Guadalupe (um milagre público) a S. João Diogo e a milhões de Astecas», já para não falar no «missionário Católico S. Francisco de Xavier» que, por essa altura, «estava a pregar miraculosamente aos povos da Índia, Indonésia, etc. nas suas línguas maternas sem as estudar.» Temos também muitos milagres públicos reivindicados pelos católicos nos últimos 100 anos, como as aparições de Maria em Fátima, a água mágica de Lourdes e o Padre Pio que sangrou das mãos e dos pés, um milagre de utilidade dúbia mas aparentemente impressionante.

É um curriculum difícil de superar. Assim de momento ocorre-me apenas uma outra divindade que possa concorrer com Jesus e os seus dois parceiros co-substantivos em matéria de milagres recentes e ressureição. Falo, naturalmente, de John Frum (2). Tal como Jesus, John Frum também fez o milagre de viajar do mundo dos mortos, o mundo dos deuses e dos antepassados, para o nosso plano mortal. Tal como o católicos, também os seguidores de John Frum foram testemunhas de muitos milagres que não conseguiam explicar, e em pleno século XX. É difícil decidir qual dos dois será mais plausível, mas este post que traduziram para o Senza Pagare contrasta marcadamente com a abordagem normalmente enfadonha da teologia e da filosofia da religião. É uma espécie de autoclismo argumentativo. Com uma puxadela vai-se tudo embora. Todas as religiões não cristãs, dezenas de milhares de seitas cristãs não católicas e tudo o resto. Fica apenas o catolicismo, um pequeno resquício desta diversidade toda ainda agarrado à loiça. Demonstra também quão pequena é a diferença que separa o crente do ateu. Metaforicamente, o ateu apenas se distingue do crente por dar uma passagem final com a piaçaba.

PS: Calhou, por acaso ou por mão divina (e se não me falham as contas), ser esta a treta da semana com o número 365. Foram sete anos de rubrica semanal regular, à parte de alguns atrasos quando o trabalho aperta mais. Aqui fica o link para o primeiro post da série, a 22 de Abril de 2007: Treta da semana: o meu horóscopo. Bom resto de Páscoa e desejos de muitas amêndoas e ovos de chocolate para celebrarem o dia em que os judeus pintaram as ombreiras das portas com sangue de carneiro para Deus, no seu infinito amor, só matar os filhos dos egípcios, louvado seja.

1- Senza Pagare, Como provar que o Catolicismo é a forma verdadeira do Cristianismo (Dica: Milagres).
2- Wikipedia, John Frum, e Damn Interesting, John Frum and the Cargo Cults

Em simultâneo no Que Treta!