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Autor: Ludwig Krippahl

29 de Setembro, 2013 Ludwig Krippahl

Novamente o conhecimento.

No post anterior disse que sei não existirem deuses mas que admito poder estar errado. Isto parece ter criado alguma confusão. O Paulo comentou que «Obviamente, se assumo que posso estar errado, não posso dizer honestamente que sei com certeza absoluta. Ou seja, não sei.»(1) e o Molochbaal que «Afinal o Kripphal é kamarada um agnóstico que ainda não saiu do armário»(2). Não é nada disso. Nem é preciso certeza absoluta para saber nem eu sou agnóstico. Mas é melhor começar pelos termos, para evitar mais confusão.

Exceptuando eventuais casos patológicos, todos temos crenças e certezas. A crença é a disposição para aceitar uma proposição como verdadeira. Por exemplo, “a Terra é aproximadamente esférica”. Não é uma afirmação que eu tenha sempre em mente mas, sempre que surja, estou disposto a aceitá-la como verdadeira. Portanto, acredito que a Terra é aproximadamente esférica. A certeza é o grau máximo dessa disposição, tal que já nada poderá aumentar a confiança depositada na afirmação. Tenho a certeza de que a Terra é aproximadamente esférica porque não me restam dúvidas que possam ser reduzidas com mais evidências nesse sentido. Para mim, este assunto já está resolvido e não preciso de mais fotografias, medições ou argumentos confirmatórios. Mas esta certeza não é absoluta. Depende dos dados de que disponho e, por isso, pode ser eliminada por evidências contrárias que me suscitem dúvidas. O facto de não ter dúvidas agora não implica que não as possa vir a ter se novos dados o justificarem. A certeza absoluta é completamente diferente porque é imune às evidências. A minha certeza de que não tenho cobras em casa é razoável e útil porque tenho boas razões para confiar que não há cobras aqui e, graças a esta certeza, não preciso de abrir portas e gavetas com o cabo da vassoura. Mas seria irracional, e até perigoso, se esta certeza fosse absoluta e se nem ver uma cobra no meio da sala me fizesse duvidar. A certeza absoluta é o objectivo último da fé mas é a antítese do conhecimento, da racionalidade e até dos instintos mais básicos de auto-preservação.

O conhecimento, segundo a definição mais comum, é uma crença verdadeira e justificada. É crença porque seria contraditório saber algo que não se está disposto a aceitar; verdadeira porque senão seria erro em vez de conhecimento; e justificada porque acertar por palpite não conta. Não há nada aqui que exija certezas. Excluindo apenas a certeza absoluta, que é injustificável, o grau da crença pode ir desde o mais reservado “parece plausível” até à certeza do “aposto a minha vida e as da minha família nisso” que demonstramos cada vez que andamos de elevador ou a 120km/h na autoestrada. É obviamente incorrecta a noção de que só tendo a certeza é que sabemos ou, pior ainda, de que só com certeza absoluta é que podemos saber. Mas a definição de conhecimento não mostra onde entra a possibilidade de erro. A definição apenas delimita um conceito e, por si só, não tem qualquer alvo que possa falhar: ou a crença é verdadeira e justificada e é conhecimento, ou falha um requisito e não é. Para conciliar a minha alegação de que sei que não existem deuses com a admissão de que posso estar enganado é preciso considerar também a aplicação prática da definição.

É claro que se a crença for falsa, não será conhecimento por muitos indícios que a justifiquem. Dantes acreditava-se que a gravidade era uma força de atracção instantânea e o sucesso dessa hipótese justificou bem a crença. Mas era falsa. Hoje dizemos saber que a gravidade é uma deformação no espaço-tempo e que se propaga à velocidade da luz, o que se justifica por a teoria da relatividade ter sido testada com grande precisão (3). Será verdade? Sem acesso directo à verdade das proposições, nunca podemos excluir a possibilidade de erro. Só podemos, em cada fase, ir determinando que crenças têm melhor fundamento e se houver alguma que se justifica concluir verdadeira, então também se justifica chamar-lhe conhecimento. Se for erro, depois corrige-se, mas não vamos ficar eternamente paralisados na ignorância à espera de conclusões definitivas.

É assim que eu sei que não existem deuses mesmo rejeitando certezas absolutas. A minha crença de que Hórus, Zeus, Odin e Jahvé são personagens tão fictícios como o Pai Natal ou o Tintin está suficientemente justificada para lhe chamar conhecimento. O agnosticismo, além de ser aplicado apenas aos deuses mais populares, sugerindo que se deve a considerações mais sociais do que epistémicas, é inconsistente nos critérios. Os agnósticos aceitam serem conhecimento conclusões como as de que é perigoso ter o esquentador na casa de banho ou que há água em Marte enquanto rejeitam sequer a possibilidade de se saber se a história de um personagem que transforma pessoas em sal e faz milagres é realidade ou ficção.

É legítimo chamar conhecimento à crença que podemos justificar de forma objectiva e adequada. O problema da justificação é complexo em teoria mas, na prática, as diferenças entre crenças justificadas e crenças sem fundamento são normalmente claras. Compare-se, por exemplo, o criacionismo com a biologia ou a astrologia com a astronomia. A crença pode ser ou não uma certeza, conforme considerarmos que já não vale a pena obter mais evidências a seu favor ou que ainda nos restam dúvidas, mas qualquer certeza racional depende da informação de que se dispõe e admite a possibilidade de revisão se surgirem dados contraditórios. Perceber isto ajuda a evitar dois erros comuns. Do lado do cepticismo inconsistente, o erro de defender que não se sabe só porque não se tem a certeza absoluta. Do lado da fé, o erro de defender que algo é conhecimento só porque muitos acreditam com intensidade e sinceridade. O fundamental para considerar que uma crença é conhecimento é a sua justificação objectiva. A certeza é opcional e a fé é irrelevante na melhor das hipóteses ou um obstáculo se impedir a conclusão correcta.

1- Comentário em Acreditar, saber e afirmar. (no Que Treta!)
2- Comentário em Acreditar, saber e afirmar. (no Diário de uns Ateus)
3- Wikipedia, Tests of general relativity

Em simultâneo no Que Treta!

24 de Setembro, 2013 Ludwig Krippahl

Acreditar, saber e afirmar.

O diálogo sobre o fundamento das religiões não sai da cepa torta pela confusão sistemática, e muitas vezes propositada, entre crença e conhecimento. Acreditar é uma atitude pessoal que nada implica para terceiros. Se eu disser que acredito que Deus não existe isto, por si só, não diz nada acerca das crenças dos outros. Apenas falo de mim. Mas se eu afirmar que sei que Deus não existe estou a fazer uma afirmação acerca da verdade desta proposição e, implicitamente, afirmo serem objectivamente falsas todas as crenças contrárias. Saber não é apenas aceitar uma proposição, como acreditar. Pressupõe a verdade da proposição, a falsidade do seu contrário, uma justificação independente de meras opões pessoais e a capacidade para apresentar essa justificação. E como afirmar que se sabe algo é afirmar que quem discorda está enganado, quem afirma saber incorre numa obrigação, ainda que leve, de explicar como sabe. Quem simplesmente acredita não deve explicações a ninguém.

Assim, porque em vez de simplesmente dizer que acredito que Deus não existe eu afirmo saber que Deus não existe, tenho o dever de explicar como concluí isto. Não ponho de parte a possibilidade de erro. É sempre possível julgarmos que sabemos uma coisa e, afinal, estarmos enganados. Mas quando uma hipótese tem muito mais fundamento do que as alternativas justifica-se arriscar dizer que sabemos. Senão nem saberemos se a Terra é redonda. No caso do Deus judeu e suas variantes, há dois conjuntos de factores que justificam esta conclusão. Primeiro, as evidências apresentadas para a existência desse deus não dão qualquer fundamento à conclusão dos crentes. A tradição, os livros sagrados e a fé de milhões não justificam concluir que Allah mandou um anjo falar com Maomé, que Jahve criou o universo em sete dias ou que Deus é três pessoas numa só substância. As alegadas evidências para estes deuses são tão irrelevantes como as que se possa apontar para a ascendência divina do imperador do Japão ou o papel dos Faraós no amanhecer.

Mas isto é apenas falta de evidências para a existência de deuses. Por si só, não é evidência de que não existam deuses, como muitas vezes os crentes apontam. De facto, se eu olhar em volta numa cidade e não vir pombos, será precipitado concluir que não há pombos nessa cidade. Podem estar noutro lado. No entanto, se eu olhar em volta e não vir elefantes a voar é seguro concluir que não há elefantes voadores nessa cidade. A grande diferença é que eu sei que a existência de pombos é plausível por evidências positivas noutras cidades. A existência de elefantes voadores, pelo contrário, não só carece de exemplos positivos como exigiria excepções a generalizações bem fundamentadas, como a de não ser possível um mamífero com aquela estrutura voar. A existência de qualquer uma das versões de Deus sofre deste problema, agravado infinitamente pelos atributos que lhes associam.

É comum que os crentes tentem responder a objecções destas também de forma objectiva. Por exemplo, tentando focar as alegações mais plausíveis da sua crença religiosa ou tentando encontrar diferenças objectivas entre os fundamentos da sua religião e os fundamentos das restantes. Mas, inevitavelmente, chega-se a pontos como a mãe ser virgem, o filho ser deus e o deus ser três onde se torna inescapável o recurso à fé como fundamento último de qualquer dogma. É aqui que o diálogo encrava. Se estivéssemos a falar de crença, de opções de vida, da esperança e desejos de cada um, então a fé seria um fundamento tão legítimo como qualquer outro. Mas isso não tem nada que ver com o conhecimento dos factos e, se estamos a falar de factos e de conhecimento, a fé é irrelevante.

Devia ser óbvio que não se justifica afirmar que algo é só porque alguém gostaria que fosse. Devia ser óbvio que a fé em deuses é uma preferência e não uma forma de sabedoria. Devia ser óbvio que, por muito que muitos creiam, os auto-proclamados peritos em divinologias não sabem o que alegam saber acerca dos seus deuses. Ninguém pode saber essas coisas porque não há evidências que conduzam a tal conhecimento. O que sabemos é que nada indica que existam deuses e que, se existissem, seriam excepções de muitas regras que parecem não as ter. Um deus omnipotente é infinitamente menos plausível do que um elefante voador e não há fé que mude isso. Devia ser óbvio mas, se o admitissem, deixava de fazer sentido haver sacerdotes, bispos, rabinos, teólogos e restantes profissionais da religião. Por isso, fazem tudo para que não seja.

Este parece-me ser o papel do ateísmo. Não é eliminar a crença nem convencer os crentes a deixarem de o ser. Se alguém acha que vive melhor acreditando neste deus ou naquele, ou em todos, pois que o faça. A vida é sua e, acerca disso, não deve explicações. O papel destas expressões de ateísmo é confrontar quem afirma que a sua fé é conhecimento, que é perito no inefável, que é doutor do misterioso e que sabe quantos deuses há, como são e o que querem de nós. A fé não justifica tais alegações e é importante apontar que são tretas. Não para as demolir de uma vez por todas nem para acabar em definitivo com a religião, porque a profissão de representante dos deuses é demasiado atraente para que desistam dela. Mas, como raspar os calos, é preciso ir impedindo que cresça demais e se torne incapacitante.

Este post é dedicado ao Alfredo Dinis, um opositor estimado a quem devo muitos textos e alguns momentos agradáveis de convívio em pessoa. Infelizmente, o Alfredo faleceu no passado fim de semana, vítima de leucemia. O que sei da fragilidade humana não me permite a esperança de que o Alfredo ainda persista numa forma capaz de ler o que eu escrevo. No entanto, a minha memória das objecções, contra argumentos e raciocínio do Alfredo continuará a inspirar-me e informar-me nestes assuntos. É isso a alma. O que sobra quando o nosso corpo morre não é uma substância mística ou uma consciência incorpórea. É o conjunto de pensamentos que passámos a outros que, depois, continuam a pensá-los sem nós. Nesse sentido, o Alfredo continua vivo em muita gente. Obrigado, Alfredo.

Em simultâneo no Que Treta!

7 de Setembro, 2013 Ludwig Krippahl

Fanatismo.

De vez em quando acusam-me de ser um ateu fanático. Normalmente, defendo-me apontando que escrever opiniões num blog é diferente da violência dos terroristas, da inquisição ou das claques de futebol. Mas agora o Helder Sanches fez-me perceber um aspecto mais fundamental do fanatismo. Se bem que seja preciso ser-se fanático para chegar a tais extremos de violência, também se pode ser fanático sem se ser violento. O Helder escreveu que está farto de «discussões sobre ateísmo por causa de ateus» que ele considera «fanáticos e irracionais»(1). Como discordámos recentemente acerca das afirmações do Dawkins (2), que indignaram o Helder, talvez a crítica também me seja dirigida. Ou talvez não. Seja como for, este “fanáticos e irracionais” ajuda a compreender porque é que o fanatismo é um problema também entre os ateus.

Quando fundamentamos uma opinião em razões, a opinião fica separada do que somos. Mesmo se as razões forem subjectivas. Se alguém se declara benfiquista porque gosta do Benfica, subentende-se que pode mudar de opinião se deixar de gostar do Benfica. O gosto e o afecto pelo Benfica são externos ao seu “eu” e podem mudar sem qualquer crise de identidade. Mas o benfiquista para sempre, até morrer, aconteça o que acontecer, encara o seu “benfiquismo” como parte intrínseca da sua pessoa, independente de quaisquer razões. É o tal fanatismo irracional a que o Helder alude. Ou seja, a diferença fundamental é que o fanático considera que a sua opinião é uma parte imutável e inalienável de si enquanto que quem não é fanático reconhece que a opinião não é a pessoa mas sim algo que a pessoa pode mudar.

Antes de continuar a exegese do texto do Helder, queria fazer um desvio por dois pontos que, apesar de tangenciais, me parecem merecer alguma consideração. O primeiro é que o fanatismo não depende do entusiasmo com que se defende uma posição. Ambos os benfiquistas se podem levantar e gritar com o mesmo júbilo quando o Benfica marca golo, mesmo que um seja fanático e o outro não. O fanatismo está apenas naquela confusão entre pessoa e opinião que surge por se descurar as razões. Ninguém é fanático só por gostar muito de alguma coisa. O segundo ponto é que, apesar do fanático considerar que o seu “ismo” faz parte do seu ser, na verdade nunca faz. O fanático também é capaz de mudar de ideias e só será fanático enquanto não perceber que tem essa capacidade. Um disparate recente do Gonçalo Portocarrero de Almada ilustra este ponto. O Gonçalo exige que o casamento civil seja indissolúvel para que os ateus tenham os mesmos direitos que os católicos. A justificação é que o casamento católico mantém os católicos casados mesmo que já não queiram, um “direito” que o ateu não tem (3). O erro do Gonçalo é assumir que o católico não pode deixar de ser católico. É a tal confusão entre opinião e pessoa que caracteriza o fanatismo. Na verdade, o casamento do católico é tão rescindível como o do ateu. Ambos duram até que as pessoas envolvidas mudem de ideias.

Voltando ao post do Helder, aceito a ideia de que o fanatismo é um problema tanto entre ateus como entre crentes. No caso dos ateus, e dos crentes de cá, não é um problema tão grave como as chacinas e barbaridades que os fanáticos violentos fazem em nome das suas religiões, tradições e ideologias políticas noutros países. Ainda assim, a dificuldade em distinguir entre pessoas e opiniões dificulta muito o diálogo. Por exemplo, o Helder critica os “novos-ateus” porque «consideram-se hoje superiores aos crentes, em inteligência, em moral, em cidadania», afirmando que é «uma atitude desinteressante com a qual não quero ser sequer confundido». Eu considero que assumir que os deuses são fictícios e que somos responsáveis pelo que fazemos é eticamente preferível e objectivamente mais correcto do que acreditar que vivemos sob o jugo de seres sobrenaturais e que temos de nos portar bem para evitar um castigo na outra vida. Não sendo fanático, não considero que ter uma opinião diferente da minha seja intolerância ou um ataque pessoal nem considero que a minha opinião ser mais correcta do que as alternativas implique que eu seja melhor do que os outros. As opiniões são uma coisa, as pessoas são outra. Mas o Helder parece ter sucumbido ao fanatismo. Teme ser confundido com uma atitude, sente-se indignado com as opiniões das quais discorda e assume que quem acha que tem razão necessariamente se considera superior aos outros.

O fanatismo é um problema também entre os ateus. As afirmações recentes do Dawkins sobre os muçulmanos e os prémios Nobel deram um exemplo disso. Não é que o Dawkins seja fanático. Ninguém é fanático só porque diz o que pensa, por muito provocatório que seja. O problema é que, tal como entre os crentes, também entre os ateus há muita gente que, por fanatismo, não consegue discutir certas coisas sem ficar com as cuecas entaladas no rego.

1- Helder Sanches, Humanista.
2- Treta da semana: isso não se diz…
3- Casamento civil indissolúvel, já!

Em simultâneo no Que Treta!

31 de Agosto, 2013 Ludwig Krippahl

O argumento cosmológico.

O Bernardo Motta gosta muito deste argumento que, alegadamente, demonstra a existência do deus preferido do Bernardo Motta. A parte explícita deste argumento é assim (1):

«Premissa 1. Tudo o que começou a existir tem uma causa
Premissa 2. O Universo começou a existir
Conclusão: Por “modus ponens” das premissas 1 e 2, o Universo tem uma causa.»

A parte implícita é que essa causa é Deus, Pai todo-poderoso, e Jesus Cristo, seu único Filho, que foi concebido pelo poder do Espírito Santo, que nasceu da Virgem Maria, morreu e ressuscitou, e mais uma data de coisas cuja inferência destas premissas não se consegue justificar. Mesmo que este argumento fosse sólido, não se podia concluir que o Universo teve sequer um criador inteligente e, na verdade, o argumento não é sólido porque as premissas não são aceitáveis na forma que suportaria a conclusão.

Segundo o que sabemos da física moderna, há coisas que começam a existir e que não têm causa. O Bernardo diz que é um erro «tomar a materialização de partículas subatómicas a partir do vácuo quântico como um exemplo de algo surgir do nada» porque «o vácuo quântico não é “nada”». Mas o que está em causa não é a semântica do termo “nada”. O facto é que há coisas que começam a existir e que não têm causa. Logo, a primeira premissa é falsa. Mais do que isso, para que a primeira premissa suporte a conclusão que o Bernardo deseja, não pode afirmar apenas que cada coisa que começa tem a sua causa. Precisa que tudo – todo o universo – tenha, em conjunto, uma só causa. Mas mesmo que todas as coisas tivessem causas, não se poderia assumir que o conjunto de todas as coisas teria uma causa. É a diferença entre as árvores surgirem de sementes e toda a floresta surgir da mesma semente. O Bernardo menciona esta falácia da composição mas, pelo que escreve, não parece ter percebido o problema. Limita-se a afirmar que «É simplesmente absurdo defender que algo pode surgir absolutamente do nada», o que é irrelevante. Para mim, também me parece absurdo que a Terra distorça o espaço-tempo porque nem consigo imaginar como é que o espaço-tempo pode ser distorcido. No entanto, seria presunçoso assumir que nada no Universo pode estar além da minha capacidade de o compreender. Se é absurdo, azar nosso.

A segunda premissa também é falsa. É verdade que o Universo – pelo menos esta bolha de espaço-tempo em que vivemos – dura há tempo finito. Pouco mais de treze mil milhões de anos. Mas o Bernardo precisa que o Universo tenha tido um começo no sentido de haver um instante antes do Universo surgir, depois o instante em que o Universo surge e, a partir daí, Universo até hoje. Só nessas condições é que podemos falar de causalidade, porque a causa tem de preceder o seu efeito. Mas como o Universo inclui o espaço-tempo, é evidente que não podia haver um “antes do Universo”. Pode nem sequer ter havido um começo para o Universo. Segundo Hartle e Hawking, por exemplo, o tempo só se separou do espaço com o Universo já formado, pelo que o Universo tem uma duração finita mas não um começo no tempo. Matematicamente, o tempo em que o Universo existe é um intervalo aberto no limite inferior (2). Seja como for, não há aqui um começo ao qual se possa aplicar o conceito de causa.

O Bernardo defende que há algo eterno, fora do espaço e do tempo, do qual o Universo surgiu. Isso é também o que a física moderna defende. O tal “vácuo quântico” é eterno e está fora do espaço e do tempo. Não teve início nem terá fim. E foi daí que o Universo surgiu. O problema do Bernardo é que, não fazendo sentido rezar ao vácuo quântico, pedir-lhe favores, louvar o seu nome ou assumir que ele guia o Papa de forma infalível, precisa de inventar uma causa para o Universo. Que nem pode ser uma causa qualquer. Tem de ser uma pessoa inteligente que não só ama o Bernardo mas que também se preocupa com as nossas crenças, a nossa vida pessoal e até o que fazemos na cama. Como as próprias noções de causalidade, tempo e começo que aplicamos ao que acontece dentro do Universo não se podem aplicar ao Universo como um todo, o argumento cosmológico nem sequer este primeiro passo consegue justificar. Quanto ao resto, já nem sequer é equívoco. É pura fantasia.

1- Bernardo Motta, Objecções ao Argumento Cosmológico “Kalam”
2- Wikipedia, Hartle-Hawking state

Em simultâneo no Que Treta!

25 de Agosto, 2013 Ludwig Krippahl

Treta da semana: isso não se diz…

Há uns dias o Dawkins escreveu 130 caracteres no Twitter comentando que «Todos os muçulmanos do mundo tiveram menos prémios Nobel do que o Trinity College de Cambridge. Mas fizeram grandes coisas na Idade Média». Foi logo acusado de preconceituoso e intolerante (bigoted) por vários ateus, outros apontaram que os muçulmanos tiveram mais prémios Nobel do que o Dawkins, como se o Dawkins fosse 23% da população mundial, e alguns até o acusaram de racismo, nem percebendo quão racistas estavam a ser ao confundir o Islão com uma raça (1). Por cá, em conversa semi-privada no Facebook, também encontrei ateus a defender que a afirmação era repugnante, que culpava os muçulmanos inocentes e que era uma generalização injusta. Disparates.

As mulheres são 50% da população mundial mas apenas 17 dos cerca de 600 galardoados com prémios Nobel em ciência foram mulheres (2), 18 vezes menos do que as 300 que seria de esperar sem correlação entre o sexo e a probabilidade de ganhar um Nobel em ciência. Esta afirmação não é misógina, racista, repugnante ou intolerante. É um facto. Se a reacção à expressão deste facto fosse sempre a de repúdio visceral nunca se teria tomado medidas para mitigar o problema. Não se tentaria combater a discriminação contra as mulheres nem oferecer condições para que uma mãe não tenha de abandonar a carreira para cuidar de filhos pequenos, por exemplo. Durante este século e pouco de Nobel muito foi mudando nestes aspectos e encarar os factos como eles são foi uma condição indispensável para que isso acontecesse.

Os muçulmanos são 23% da população mundial e receberam, no total, dois prémios Nobel em ciência (3), 70 vezes menos do que seria de esperar sem correlação e uma proporção em relação a esse valor esperado quatro vezes inferior à das mulheres. Este facto também indica algum problema. Os homens muçulmanos não perdem mais tempo com gravidez e aleitamento do que os outros homens que ganham prémios Nobel e é pouco plausível que tenham sofrido quatro vezes mais discriminação do que as mulheres. A natureza repressiva dos regimes de muitos países muçulmanos, o Islão ser uma obrigação legal para muitos dos seus seguidores e os castigos por qualquer opinião fora do que essa religião lhes permite parecem factores mais importantes. É claro que o problema é complexo e pode haver dissensão acerca dos factores principais, mas isso é muito diferente de ignorar o problema para repudiar quem o aponta.

A reacção de alguns ateus a um artigo analisando estudos sobre religiosidade e inteligência (4) teve menos acrimónia mas também incluiu exemplos semelhantes de irracionalidade. O sociólogo Frank Furedi acusou os autores de «“cientismo” do pior»(5) sem dizer nada acerca da análise em si ou dos estudos em que se basearam. Especulou sobre a cultura e intenções, insinuou que foram muito mauzinhos, alegou que «a relação entre “a investigação mostra” e a verdade é muitas vezes tão dúbia quanto a da alegação de que “Deus disse” com o que realmente acontece» e concluiu com uma contradição: «Como ateu discordo da alegação de que a minha posição é produto da minha inteligência […] Acredito que fiz uma escolha inteligente em não acreditar». Foi uma escolha inteligente mas não tem qualquer relação com a sua inteligência. Pois claro. Entre os ateus de cá, também houve quem endossasse estes disparates de que a investigação científica é o mesmo que “Deus disse” e de criticar um artigo científico divagando sobre tudo menos o conteúdo do artigo (6).

O artigo merece algumas críticas, como qualquer artigo científico. Recolhe dados de estudos diferentes e tenta normalizar medidas diferentes, o que não é trivial, e há mecanismos alternativos que podem explicar a correlação por factores comuns. Por exemplo, pessoas com menos poder económico têm pior alimentação, educação e estímulos e mais probabilidade de necessitar do apoio de instituições religiosas. Isto pode explicar a correlação sem implicar qualquer relação causal entre religião e inteligência. Pode também ser um efeito de alguns pontos extremos. Pessoas com muito pouca inteligência são menos independentes e podem-se associar mais a grupos religiosos, alterando a média sem que haja diferenças entre os restantes ateus e crentes. Há muitas possibilidades a considerar para tentar perceber o que está por trás desta correlação negativa entre religiosidade e inteligência. Incluindo, obviamente, a de que pessoas com mais inteligência tenham menos propensão para acreditar nas histórias que as religiões contam. Podem não ser possibilidades agradáveis, mas para lidar com os factos é preciso controlar as tripas.

Esta indignação, muitas vezes fingida, e a demagogia falaciosa do apelo à emoção e ao preconceito, já incomodam bastante quando vêm de crentes e apologistas da religião. Mas desses é tão comum que uma pessoa acaba por se habituar. Mais deprimente é ver os que se dizem livres pensadores deitar fora toda a objectividade e fazerem-se de beatas ofendidas só para parecerem politicamente correctos.

1- Guardian, Richard Dawkins criticised for Twitter comment about Muslims
2- Nobelprize.org, Nobel Prize Awarded Women
3- Wikipedia, List of Muslim Nobel Laureates
4- Zuckerman et al, The Relation Between Intelligence and Religiosity A Meta-Analysis and Some Proposed Explanations (pdf)
5- The Independent, Atheists are more intelligent than religious people? That’s ‘sciencism’ at its worst
6- Não gosto de omitir referências, mas como não sei com que expectativas de privacidade as pessoas usam o Facebook é melhor deixar assim.

Em simultâneo no Que Treta!

27 de Julho, 2013 Ludwig Krippahl

Testes e explicações.

O Miguel Panão, entre outros, tem defendido que «O conhecimento científico e saber teológico [são] métodos distintos e que respondem a questões de natureza diferente sobre a realidade»(1). Eu tenho discordado desta posição porque a ciência responde a qualquer questão factual que admita respostas testáveis. O que sobra, no contexto das afirmações de facto, são apenas proposições que não podem ser testadas e que, por isso, também não se pode saber se são verdadeiras ou falsas. Se o domínio da teologia é esse conjunto de proposições então a teologia não pode gerar conhecimento. No máximo, produz crenças ou especulações. Contrapondo isto, o Miguel Panão tem insistido que as afirmações da teologia são testáveis, mas não cientificamente, o que não se percebe porque ou é possível testar ou não é. A ciência não exige nenhuma forma particular de testar. Mas agora o Miguel tentou uma nova abordagem.

Começa por apresentar uma versão da minha posição que não corresponde à minha posição: «hipóteses impossíveis de testar no âmbito de um método, como o teológico, são razão necessária e suficiente para descartar o método»(2). Pelo contrário, já defendi várias vezes que a ciência consegue lidar com hipóteses impossíveis de testar. O que faz é despejá-las no caixote das especulações infundadas porque, se são impossíveis de testar, então é impossível distingui-las da infinidade de alternativas na mesma situação. O Miguel Panão diz que a teologia resolve isto decidindo com base nas «evidências providenciadas pela revelação e pela doutrina» (1), mas avaliar o dogma considerando o dogma como prova de si mesmo é raciocinar aos círculos.

A novidade no argumento do Miguel é alegar, agora, que a ciência também acha «worth trying»(2) considerar hipóteses não testáveis. Não parece que isto o ajude a justificar a ideia da ciência e a teologia como abordagens complementares para problemas independentes. Mas, seja como for, o exemplo que o Miguel Panão escolheu não serve para demonstrar o que o Miguel pretende.

O artigo “A Universe without expansion”(3), que ainda nem foi publicado nem sujeito a revisão pelos pares, oferece uma explicação alternativa para a observação de que a luz que nos chega de galáxias distantes está tão mais desviada para comprimentos de onda maiores (para o “vermelho”) quanto maior for a distância entre nós e cada galáxia. Em vez de explicar este desvio pela expansão do universo, com galáxias mais distantes afastando-se de nós a velocidades maiores, explica o desvio pelo aumento da massa. Segundo este modelo, as galáxias mais distantes emitiram a luz que agora vemos há mais tempo, quando todas as partículas tinham menos massa e, por isso, a luz era menos energética. Guiando-se pela notícia, o Miguel Panão afirma que «A ideia é plausível, mas não pode ser testada» porque só podemos medir massas em relação umas às outras, e se todas mudam não notamos a diferença. Directamente. Mas isto não quer dizer que não se possa testar a hipótese de forma indirecta.

Este modelo do aumento da massa não difere do modelo do universo em expansão apenas na massa. Difere também na expansão. Qualquer medição que nos dê uma estimativa independente da expansão do universo pode servir para distinguir entre os dois modelos. Se bem que na prática isso não seja fácil, em teoria pode-se testar. Mas, mais importante do que isto, o modelo proposto por Christof Wetterich é uma explicação para o desvio da luz de galáxias distantes para maiores comprimentos de onda. Não é a única explicação; hoje em dia a explicação consensualmente aceite é a de que a luz sofre este desvio devido à expansão do universo. Mas é uma explicação porque esse modelo segundo o qual a massa de todas as partículas vai aumentando implica necessariamente que se observe esse desvio para comprimentos de onda maiores. Se a observação fosse outra, o modelo teria de ser falso. O que demonstra cabalmente que é testável.

Isto faz parte de ser explicação. Uma explicação só o é se implicar necessariamente as observações que pretende explicar. Caso contrário, não explica. Mas se implica necessariamente algo que se observa, então é testável. O exemplo que o Miguel Panão escolheu não é um exemplo da ciência levar a sério hipóteses impossíveis de testar. Pelo contrário, ilustra bem a futilidade de perder tempo com hipóteses dessas. Os cientistas formulam hipóteses para explicar algo que os intriga. Christof Wetterich propôs a hipótese da massa das partículas aumentar porque, se isso for verdade, então é inevitável que a luz das galáxias mais distantes esteja deslocada para comprimentos de onda maiores. É uma explicação possível, mesmo que ainda não se justifique preferí-la à hipótese da expansão. Christof Wetterich não propôs explicar o aumento do comprimento de onda invocando um deus, milagres, bruxaria ou seres invisíveis de outras dimensões porque isso não serve de nada. Postular um deus omnipotente, ao contrário de postular um aumento de massa de todas as partículas, não permite inferir um aumento no comprimento de onda. Com um deus omnipotente o comprimento de onda podia aumentar, diminuir, ficar na mesma, desaparecer ou até transformar-se num duende com calças azuis e barrete encarnado. É por isso que a hipótese de haver um deus omnipotente por trás de cada mistério não pode ser testada, é por isso que não serve para explicar coisa nenhuma e é por isso que hipóteses assim não podem ser conhecimento.

1- Comentários em Treta da semana: iNdulgência.
2- Miguel Panão, Hipóteses impossíveis de testar … worth trying …
3- Christof Wetterich, A universe without expansion.

Em simultâneo no Que Treta!

19 de Junho, 2013 Ludwig Krippahl

A (in)compatibilidade.

O Alfredo Dinis e a Palmira Silva debateram, no Contraditório, a compatibilidade entre ciência e religião (1). O Alfredo defendeu que são compatíveis, a Palmira defendeu o contrário. Como já escrevi aqui várias vezes, estou do lado da Palmira nisto. No entanto, não me parece que a Palmira tenha argumentado bem em suporte desta tese e, por isso, não resisto meter o bedelho. Vou só despachar o Alfredo primeiro.

O Alfredo defende que a ciência e a religião, em que “religião” quer dizer a dele, parecem ser incompatíveis apenas porque muitos interpretam mal os livros religiosos, em que “livros religiosos” quer dizer a Bíblia. Interpretando a Bíblia correctamente, em que “correctamente” é como o Alfredo diz interpretá-la, já fica tudo resolvido. Assim, o Alfredo pode dizer que «Nunca senti que o conhecimento científico abalasse a minha crença em Deus». Mas a questão não é se é possível definir e redefinir as crenças religiosas de forma a evitar contradições com o conhecimento científico. A questão é se a ciência é compatível com a religião. Inadvertidamente, o Alfredo demonstra que não: «A religião representa a recusa de acreditar que a vida humana não tem qualquer importância num universo que teria surgido por acaso e onde a Humanidade teria aparecido igualmente por mero acaso.» Esse cliché de ser preciso acreditar num deus para dar valor à vida é um disparate que, espero, já não exige refutação. Mas, à parte disto, o Alfredo afirma que a religião exige “a recusa de acreditar” em certas hipóteses. Categoricamente, e sejam quais forem as evidências que possamos vir a ter, o religioso recusa acreditar, por exemplo, na hipótese de não existirem deuses. Esta rejeição categórica de uma hipótese é incompatível com a ciência. QED.

A Palmira foca os conflitos históricos entre ciência e religião, dá exemplos interessantes e não diz nada que me pareça errado. No entanto, falha o fundamental. Afirmações como «a religião assenta na fé […] e a ciência em factos» ou «todas as “verdades” religiosas nas respectivas áreas de estudo foram refutadas cientificamente» enfraquecem o argumento porque não são consensuais. O crente dirá que há factos religiosos e factos científicos e que as verdades mais importantes da religião são inatacáveis. É verdade que isto exige usar os termos de forma subtilmente diferente, mas primeiro que se deslinde o que se quer dizer com “factos”, “verdade” e “científico” atolamos num lamaçal de desculpas onde é quase impossível progredir. Já lá estive; sei como é. Afirmar que a ciência assenta «no método científico» também adianta de pouco e até ajuda a ideia, falsa, de que a ciência é um jogo que se pode jogar num canto sem interferir com a religião que se joga no outro. Eu proponho uma abordagem diferente.

Por um momento, deixemos de parte a conversa da ciência e da religião. Em vez disso, vamos considerar um objectivo simples: quero que a minha concepção da realidade corresponda, o melhor possível, ao que a realidade é. Ou, parafraseando um professor de filosofia que tive, ninguém gosta de ser enganado*. Se é isto que quero, então o ponto de partida em qualquer questão acerca da realidade não pode ser acreditar, ter fé, desejar ou recusar alguma hipótese. Isso iria subordinar a resposta a um preconceito, precisamente o contrário do objectivo inicial. Se quero moldar, tanto quanto possa, as minhas ideias à realidade tenho de começar sempre por “não sei”. No ponto de partida tenho de ter as opções em aberto e só depois, com informação que o justifique, posso seleccionar entre as várias alternativas.

Isto, feito com afinco, é ciência. Se não sei a resposta tenho de considerar várias hipóteses. Como não sei, à partida, qual delas é a correcta tenho de encontrar forma de as testar, de as confrontar umas com as outras e de confrontar todas com a informação que obtenha acerca do que quero saber. Mesmo que uma hipótese sobressaia como claramente melhor do que as outras, tenho de manter em aberto a possibilidade de mudar de ideias por encontrar dados que a contradigam ou me ocorrer outra hipótese ainda melhor. Também tenho de estar sempre atento aos erros e garantir que a justificação para optar por uma hipótese em detrimento das outras não depende de crenças ou preferências pessoais. É isto, grosso modo, a que chamamos ciência.

A religião não é incompatível com a ciência no sentido de um cientista não poder ser crente. É possível abordar uns problemas com fé e outros com vontade de saber. Também não é incompatível no sentido dos produtos de uma serem forçosamente inconsistentes com os produtos da outra. Como o Alfredo explica, pode-se sempre reinventar os relatos religiosos de forma a resolver esse problema. Não se vê o escaravelho gigante que rebola o Sol pelo céu? Pois claro que não se vê. É um escaravelho invisível. Amén. A religião é incompatível com a ciência porque o objectivo e o ponto de partida são diferentes. O objectivo da fé religiosa não é mudar de ideias conforme as evidências. É agarrar um dogma com toda a força e nunca o largar. Por isso, o ponto de partida da religião não pode ser “não sei”. Pela fé o crente tenta convencer-se de que já sabe o mais importante. Não há consenso entre os crentes acerca do que isso seja. Pode ser o que está no Korão ou no Novo Testamento, pode ser lido à letra ou como metáfora, pode ser um deus ou vários. Mas, seja como for, o ponto de partida de cada religião são os dogmas que a fundamentam e o seu objectivo é nunca abdicar deles. É isto que é incompatível com a ciência.

* A disciplina era Filosofia Contemporânea mas a matéria que ele deu foi só sobre Kierkegaard, um teólogo protestante do século XIX. Daí que a coisa que mais vivamente me lembro dele foi dizer que ninguém gosta de ser enganado…

1- Contraditório, É possível conciliar ciência e religião?

Em simultâneo no Que Treta!

15 de Junho, 2013 Ludwig Krippahl

Treta da semana (passada): no contexto cultural.

O Anselmo Borges defende que não há demónios, que «Os rituais de exorcismos não têm justificação» e que o diabo é apenas «um símbolo personificado de todo o mal». Concordo. O mafarrico e companhia são apenas personagens inventados para ilustrar alguns conceitos humanos. Eu até iria mais longe nisto. E irei. Mas, primeiro, a parte que me aborrece.

O evangelho de Marcos relata que Jesus se deparou com «um homem dominado pelo demónio», que «Jesus falou ao demónio que existia dentro dele e disse: Sai, espírito mau.[…] Como te chamas?, perguntou Jesus. Exército, porque somos muitos dentro deste homem». Então «os demónios pediram com insistência que não os expulsasse para qualquer terra distante» e Jesus mandou-os ir com os porcos: «Então, os espíritos maus saíram do homem e entraram nos animais. A vara inteira de dois mil porcos lançou-se pela encosta íngreme do monte e caiu lá em baixo no lago, onde se afogou.»(Marcos 5, 1-13). O Anselmo Borges refere esta passagem na Bíblia mas descarta-a alegando que «Se é certo que Jesus, nos Evangelhos, aparece expulsando demónios, isso deve ser compreendido no contexto das crenças da altura. Hoje, sabemos que se tratava de doenças do foro psiquiátrico»(1). Isto é treta.

Na parábola do bom samaritano, um judeu é assaltado e espancado, passa por ele um sacerdote e um levita que o ignoram mas o samaritano ajuda-o e trata-lhe das feridas. Hoje todos conhecemos a expressão “bom samaritano” e, para muita gente, fica desta história a ideia que os samaritanos eram tipos impecáveis. Mas se compreendermos a parábola «no contexto das crenças da altura» a mensagem é bem diferente. Os samaritanos e os judeus davam-se como o cão com o gato e o ponto principal da história, sobre ajudar o próximo, é o judeu ter sido ajudado pelo samaritano, que era a última pessoa de quem se esperaria tal coisa. Compreender o texto «no contexto das crenças da altura» é interpretar o texto de acordo com as expectativas e premissas dos seus autores e contemporâneos. Isto, concordo, faz todo o sentido. Mas o que o Anselmo Borges quer fazer é precisamente o contrário.

Se compreendermos o relato do exorcismo «no contexto das crenças da altura«, a interpretação tem de ser a de que Jesus enfrentou uma carrada de demónios, os expulsou para os porcos e os atirou pela ribanceira abaixo. Era isso que queriam dizer quando escreveram este relato era isso que, na altura, percebiam quando o liam. O problema do Anselmo é que, à luz do que sabemos hoje, isto é um disparate. Como o Anselmo não quer admitir que a Bíblia tem disparates, faz esta finta de dizer que interpreta o texto «no contexto das crenças da altura» para defender que não há lá demónios. É um truque muito usado pelos teólogos. Primeiro dizem que não se pode interpretar o texto literalmente porque é preciso considerar o seu contexto cultural. Isto apesar do contexto cultural ser o da interpretação literal que rejeitam. Depois alegam que o texto defende o contrário do que lá está escrito porque que é alegórico ou metafórico. Finalmente, safam-se de explicar como é que a alegoria ou metáfora que alegam lá estar diz o contrário da letra do texto. Neste caso em particular, não é nada evidente como o relato do exorcismo e da morte de dois mil porcos pode ser uma alegoria ou metáfora para o aconselhamento psicológico ou o tratamento de doença psiquiátrica.

Eu concordo que a interpretação literal do Génesis ou deste exorcismo resulta em relatos que são claramente falsos. Eu concordo que é útil interpretar os textos no seu contexto cultural para perceber o que o autor queria dizer. Mas é desonesto invocar esse contexto cultural para afirmar que o texto deve ter uma interpretação completamente diferente daquela que o próprio autor lhe dava e depois nem sequer adiantar nada acerca dessa interpretação para que se possa, pelo menos, avaliar se faz algum sentido.

Terminado o desabafo, queria voltar à proposta do Anselmo de que o diabo será apenas «um símbolo personificado de todo o mal». Ou seja, apesar do seu protagonismo nalguns relatos bíblicos, é apenas um personagem fictício que dá corpo a anseios e preocupações abstractas dos autores dessas histórias. Estou inteiramente de acordo. Isto faz todo o sentido quando consideramos os muitos exemplos por todas as religiões, como Afrodite, Zeus, Odin, Shiva, Kali e assim por diante. Mas eu vou um pouco mais longe, dando aquele passo pequenino que separa o Anselmo do ateísmo. Também Deus é apenas «um símbolo personificado» das características que lhe atribuem. É um personagem fictício que simboliza coisas boas, como bondade, amor, justiça e afins que, tal como o mal, são mais fáceis de comunicar, pelo menos antes de se começar a tentar compreendê-las, se as imaginarmos como pessoas.

1- Anselmo Borges, O diabo, possessões demoníacas e exorcismos

Em simultâneo no Que Treta!

23 de Maio, 2013 Ludwig Krippahl

Concluir que existe.

A Maria Madalena Teodósio perguntou-me o que eu consideraria evidência para a existência de um deus (1). Ou, por outras palavras, o que me levaria a considerar a hipótese de existir algum deus mais plausível do que a alternativa. Esta ênfase na hipótese pode parecer picuinhice mas é importante. Em rigor, nós não podemos decidir a existência de deuses em si. Ou existem ou não existem, independentemente da nossa opinião. Apenas podemos decidir que opinião formamos. Tratando-se de factos, o mais racional será preferir a hipótese mais favorecida pelo peso das evidências. Tornar explícito que estamos a seleccionar hipóteses permite excluir, logo à partida, qualquer hipótese que seja indiferente ás evidências. Por exemplo, a hipótese de existirem deuses indetectáveis que habitam fora do universo e não interferem em nada que se possa observar. Este tipo de hipótese é de rejeitar não só por falta de mérito epistémico mas também por pragmatismo. Hipóteses assim há infinitas e são racionalmente indistintas, pelo que não há razão para escolher uma em vez de qualquer outra. Por isso focarei apenas (algumas) hipóteses testáveis acerca da existência de deuses.

Uma é a de que um relato da criação divina do universo foi passado, por revelação ou inspiração, aos autores humanos de algum livro sagrado. A essa hipótese contrapõe-se a alternativa desses relatos serem apenas criação humana. As evidências favorecerão uma ou outra hipótese conforme a concordância entre o relato e o que observamos do universo. Se um relato for vago, inconsistente com a realidade em muitos pontos e acertar apenas no que era acessível aos seus autores humanos a segunda hipótese será claramente a mais plausível. É o que acontece com o livro do Génesis, se lido como pretendiam os autores originais e como muitos cristãos ainda o interpretam hoje (se for lido como alguns teólogos pretendem temos apenas mais uma daquelas infinitas hipóteses impossíveis de testar e, por isso, irrelevantes). Pelo contrário, se um relato antigo da origem do universo contivesse detalhes correctos e inacessíveis aos seus autores terrenos seria evidente uma origem sobre-humana. Por exemplo, se o Génesis descrevesse detalhadamente as partículas sub-atómicas e a formação da matéria pela interacção dessas partículas. Se, além disso, descrevesse de forma concreta e confirmável como essas partículas teriam sido criadas, a hipótese desse relato provir de alguém com a capacidade de criar universos seria muito mais plausível do que a hipótese de ter sido mera fantasia humana. Eu descarto como ficção as cosmologias dos livros sagrados que conheço porque consistem apenas daquilo que se esperaria da imaginação e conhecimento dos seus autores. Mas se algum ultrapassasse claramente esses limites eu teria de mudar de opinião.

Outra hipótese testável é a da criação inteligente em si, independentemente de haver algum relato detalhado do processo. Se processos naturais geram planetas, montanhas, vales, animais e plantas sem orientação inteligente, o que acontece em cada passo do processo depende apenas das condições nesse momento. Cada partícula numa nuvem de poeira espacial move-se em função das forças que a afectam. As placas tectónicas deslocam-se conforme o movimento do magma, a água escorre conforme o declive do terreno e as populações de seres vivos são moldadas pela competição entre indivíduos naquele ambiente, em cada instante. A falta de inteligência nestes processos impede que algo ocorra visando um resultado futuro específico. Isto é o contrário do que sucede num processo de criação inteligente, que consiste numa série de decisões tomadas tendo em vista o resultado final. As diferenças são claras, na maioria dos casos. Pedras arredondadas de textura e tamanho semelhantes espalhadas pelo leito de um rio é algo compatível com processos naturais de erosão. Pedras afiadas em pontas de seta alinhadas junto a um esqueleto humano sugerem intervenção inteligente. As características das baratas são o que se espera de milhões de anos de evolução por processos naturais. A lã das ovelhas domésticas, o milho híbrido e o tomate geneticamente modificado indicam alguma inteligência no processo. Se estrelas, planetas, montanhas ou seres vivos tivessem sido criados por um ser inteligente deveríamos notar alguns desvios em relação ao esperado por processos naturais sem planeamento, tal como quando identificamos vestígios arqueológicos ou diques de castor. Indícios de criação inteligente de estrelas ou galáxias tornariam plausível a hipótese de existir um criador inteligente do universo.

A tecnologia religiosa poderia ser outro indício forte. Todas as religiões desenvolvem procedimentos para influenciar a natureza. Curar doenças, afastar tempestades, conceber filhos e assim por diante. Todas as religiões falham redondamente nestas coisas e o efeito é sempre nulo. Mas podia não ser. Podia ser, se a realidade fosse outra, que os alhos engordassem mais com a bênção do padre do que com umas semanas de tempo seco. Ou que a estátua de Maria na mesa de cabeceira fosse mais eficaz do que um pára-raios no telhado. Podia ser e, se fosse, seria mais plausível a hipótese de existir o deus dessa religião.

A objecção mais comum a este tipo de argumentos, pelo menos da parte dos religiosos mais sofisticados, é que isto assume poder-se reunir evidências da existência do tal deus e isso, alegam, é impossível. Mas a questão relevante é que hipóteses acerca da existência de deuses se pode aceitar com justificação racional e, para isso, é preciso encontrar evidências que as possam distinguir das alternativas. Não há como escolher, racionalmente, entre hipóteses impossíveis de testar. Além disso, esta é uma desculpa como a da raposa. A única razão para alegarem que é impossível obter evidências para as hipóteses que defendem é não as conseguirem. Se tivessem evidências claras da criação inteligente do universo não diriam que as uvas estão verdes.

1- Comentário em Adenda ao post anterior

Em simultâneo no Que Treta!

3 de Fevereiro, 2013 Ludwig Krippahl

Posts e debates.

Vários leitores apontaram que o meu discurso no debate sobre a Opus Dei foi muito diferente dos posts que aqui escrevo. Por exemplo, para o Cisfranco «Aqui é uma militância aguerrida que não se percebe» (1), enquanto o Daniel alegou que «Quando te reúnes em público, como, na mais recente iniciativa do ” D.N.”, falas em estilo pianinho com os teus companheiros de debate. Depois, quando regressas a esta tua casa ideológica, aproveitas para seres mal-criado com aqueles com os quais te estiveste reunido.»(2)

Nos detalhes, acho que estão ambos enganados. É maior militância participar num debate representando a Associação Ateísta Portuguesa do que escrever num blog e não vejo que seja mal-criado escrever que «talvez os dogmas lhes sirvam como um cilício espetado na mente em vez de na coxa» quando falo de suportarem um desconforto em nome da religião. Mas concordo que o meu discurso num debate é diferente de um post. Num debate, conferência ou encontro vou discutir os temas que me propuserem da forma como me propõem discuti-los e respondo a cada pergunta para esclarecer o melhor possível o interlocutor que ma coloca. Muitos dos meus posts são de uma natureza diferente porque o que os motiva não é uma pergunta à qual me disponibilizei para responder mas a vontade de criticar algo que me incomoda, que acho ridículo, que me parece um disparate ou estupidez. O que, naturalmente, dá uma tonalidade diferente ao discurso. Neste caso particular é a entrevista ao Ricardo Ribeiro, físico na Universidade do Minho e membro da Opus Dei (3).

O Ricardo começa por afirmar, reiterar e repetir que «Não existe qualquer contraposição», «a Ciência e a Fé são complementares», ambas «são profundamente racionais», «não podem contradizer-se mutuamente» e é «impossível haver uma contradição entre os dois». No meio deste pleonasmo todo, a justificação parece ser que não há incompatibilidade porque a ciência e a religião «têm objectos e métodos de estudo diferentes». Logo à partida, parece uma justificação fraca. Afinal, o tarot e a astrologia também têm objectos de “estudo” e “métodos” diferentes dos da ciência e, no entanto, parecem claramente contraditórios não só com a ciência mas também com o bom senso. Mais grave ainda é o Ricardo afirmar logo a seguir que «A Física leva a Deus de uma forma muito especial, porque estudamos a Criação que Ele fez […] É de facto um modo de conhecer a Deus». Resumindo, é impossível contradizerem-se porque ciência e religião têm objectos de estudo diferentes, mas a física é uma forma de conhecer Deus. Faz-me lembrar um poema do Swinburne, que infelizmente não consigo traduzir, e que acaba assim:

«God, whom we see not, is; and God, who is not, we see;
Fiddle, we know, is diddle, and diddle, we take it, is dee.»
(3)

Talvez por falta de fé, não tenho muita esperança de que algum cientista católico explique claramente como o cristianismo é compatível com a ciência. Tomemos a física* como exemplo. Os modelos físicos da realidade alegam a existência de certas entidades, como electrões, fotões, campos, tempo, e assim por diante, em certas relações quantificáveis de onde se infere previsões acerca do que observamos. Deuses, demónios, anjos, duendes, fadas e qualquer outra entidade sobrenatural pode entrar aqui de três formas diferentes.

A primeira, mais antiga, é de forma a ter algum efeito observável que, feitas as contas, acaba por ser inconsistente com os dados. É o caso do deus da criação em seis dias e do deus que mandava os raios. Conforme se foi percebendo melhor a coisa revelou-se necessário tirar esses dos modelos por estragarem as previsões. A segunda, também já a ficar fora de moda, é pôr o sobrenatural só a tapar, ad hoc, os buraquinhos que fiquem entre o que se prevê e o que se observa. Mas cada vez os buracos são menores e, além disso, o duende do colapso da função de onda ou o deus das supercordas não ajudam a explicar coisa nenhuma, defeito que a física não perdoa. A terceira forma de incluir o sobrenatural na ciência, de longe a mais popular entre os cientistas crentes, é arrumado num canto sem fazer nada. Deus é amor, que maravilha, muita fé e coisas boas, mas fica aí sossegadinho e não mexas em nada que isto já está tudo afinado. Ora a ciência têm uma forma estabelecida de lidar com este tipo de hipóteses. Vão para o lixo.

Se considerarmos um caso concreto o problema é ainda mais claro. As religiões cristãs assentam no relato de que Jesus, tal como Pitágoras, terá nascido de uma virgem e, tal como Inanna, terá passado três dias falecido antes de ressuscitar. Cientificamente, a conclusão mais justificável é a de que o que contam acerca de Jesus, como nos outros casos, é um relato fictício. Todas as evidências indicam ser mais fácil inventar histórias destas do que realmente nascer de uma virgem e ressuscitar depois de estar morto durante três dias. Até suspeito que o Ricardo Ribeiro concorda que a conclusão cientificamente correcta é a de que os aspectos sobrenaturais dos relatos da vida de Inanna, de Pitágoras e de Jesus são mito e não realidade. No entanto, se for um católico crente, o Ricardo tem de descartar o método científico e aceitar pela fé que Jesus, se bem que nem Pitágoras nem Inanna, nasceu mesmo de uma virgem e ressuscitou. Se isso não é incompatibilidade então fiddle é diddle e diddle é dee.

* Com minúscula, na minha opinião, tal como a matemática, a química e a informática, sempre que referem áreas da ciência. Com maiúscula apenas quando são os nomes de algo, como por exemplo disciplinas: Física I, Química Orgânica, etc.

1- O debate no Diário de Notícias. (no Que Treta!)
2- O debate no Diário de Notícias. (no Diário de uns Ateus)
3- Opus Dei, Ser cristão e cientista em perfeita unidade. Obrigado ao António Parente pelo link.
4- Poetry Foundation, The Higher Pantheism in a Nutshell. Recomendo a leitura integral a quem estiver interessado em teologia.

Em simultâneo no Que Treta!