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Autor: Ricardo Alves

7 de Setembro, 2004 Ricardo Alves

Laicidade sem fronteiras

O «Mouvement Europe & Laïcité» é uma associação francesa dedicada à defesa e promoção da laicidade em França e na Europa. Disponiblizou recentemente um folheto de 8 páginas (em formato pdf, necessita de Acrobat Reader 6.0) intitulado «Pour une laïcité sans frontière».

O MEL define a laicidade a partir de três conceitos: a absoluta liberdade de consciência, a separação do Estado e das Igrejas e a recusa de todo e qualquer dogmatismo.

O último ponto implica a recusa não apenas dos dogmatismos religiosos mas também dos dogmatismos políticos ou económicos, nomeadamente na construção europeia.

A laicidade do Estado é a única forma de permitir a sã convivência entre crentes, agnósticos e ateus, e visa construir uma sociedade em que os indivíduos possam ser senhores do seu destino.

Delegação portuguesa do «Movimento Europa e Laicidade».

Propostas para uma Carta Europeia da Laicidade.

5 de Setembro, 2004 Ricardo Alves

Sim à laicidade, não à Concordata

Caros amigos ateus presentes no 2º Encontro Nacional de Ateus,

No Portugal democrático, a liberdade de consciência e a igualdade entre todos os cidadãos são garantidas constitucionalmente. No entanto, tanto a Concordata como a Lei da Liberdade Religiosa estabelecem diferentes direitos para diferentes grupos de cidadãos em função das suas crenças religiosas, discriminando aqueles que não têm crença ou que, como nós, são ateus.

A nova Concordata, assinada no dia 18 de Maio de 2004, no Vaticano, pelos representantes do Estado português e da Santa Sé, espera neste momento pela ratificação da Assembleia da República, que poderá ocorrer ainda em Setembro. Substituirá então a Concordata de 1940, actualmente em vigor.

Num Estado democrático, qualquer lei pode ser revogada em qualquer momento pelos representantes eleitos do povo. Porém, uma Concordata, sendo formalmente um tratado internacional entre dois Estados, só pode ser alterada com o mútuo consentimento das duas partes e subtrai assim ao controlo democrático os privilégios específicos de uma igreja, a Igreja Católica Apostólica Romana (ICAR) e de um grupo de cidadãos portugueses, os católicos. As demais confissões religiosas estão sujeitas a um regime distinto, o instaurado pela Lei da Liberdade Religiosa, que as coloca aliás, através da chamada «Comissão de Liberdade Religiosa», sob a tutela da ICAR nas suas relações com o Estado.

A nova Concordata mantém um tratamento diferenciado para os cidadãos católicos, designadamente quanto ao ensino das suas ideias na escola pública, quanto ao casamento, quanto aos deveres judiciais, e confere um estatuto de excepção à Universidade Católica, para além de numerosas isenções fiscais para as instituições católicas. Trata-se, evidentemente, de manter os não católicos, particularmente os ateus, como cidadãos de segunda ou mesmo terceira categoria.

Sendo ateus, devemos defender a liberdade de consciência e a igualdade de todos os cidadãos independentemente da sua crença ou do seu ateísmo.

Declaramo-nos portanto contra esta Concordata (ou qualquer outra)!

Documento aprovado por unanimidade e aclamação no 2º Encontro Nacional de Ateus (Centro Escolar Republicano Almirante Reis, 4 de Setembro de 2004)

22 de Agosto, 2004 Ricardo Alves

A Laicidade na Grécia

Apesar de a palavra «laicidade» dever a sua origem a um étimo grego («laos»(1)), a Grécia actual é talvez, com a possível excepção de Malta, o Estado da União Europeia que mais se afasta do ideal de laicidade do Estado. O caso da Grécia evidencia que o confessionalismo de Estado é uma máquina de negar direitos, e que portanto, ao contrário do que afirmam os nossos críticos habituais, é a religião que actua negativamente.

No país em que a Constituição não só é proclamada «em nome da Santíssima Trindade» como declara no seu artigo 3º que a «religião predominante» é a religião ortodoxa grega, um grupo de cidadãos que queira fundar uma igreja e abrir um templo não o pode fazer sem obter a necessária autorização junto da… Igreja Cristã Ortodoxa Grega (ICOG). Evidentemente, a ICOG usa este direito de veto para controlar a concorrência. É assim que, apesar da existência de um número considerável de muçulmanos em Atenas, jamais a ICOG autorizou que uma mesquita abrisse as portas nessa cidade. (E os sacerdotes ortodoxos são, como é evidente, funcionários públicos com todas as regalias consequentes.) A liberdade de associação está portanto limitada.

A liberdade de expressão está restringida por duas disposições constitucionais, uma que proíbe o «proselitismo» (ou seja, as tentativas de persuadir ou simplesmente informar as pessoas de que existem outras opções religiosas ou filosóficas) e outra que permite a apreensão de jornais e livros em casos de «ofensa à religião cristã» (além disso, a reprodução da «Sagrada Escritura» depende da autorização da inefável ICOG). Assim, a liberdade de difundir ideias na Grécia está limitada à difusão da ortodoxia.

A falta de liberdade religiosa na Grécia causou atritos consideráveis com a U.E. apenas em torno da questão dos Bilhetes de Identidade, que deixaram efectivamente de mencionar a religião do seu portador (é um direito humano básico manter a convicção filosófica ou religiosa privada). No entanto, os B.I. gregos são vitalícios… portanto os B.I. emitidos antes de 2001 continuarão a exibir a religião de quem identificam.

A Grécia tem ainda outras extravagâncias religiosas, das quais a mais famosa é o Monte Athos, uma pequena península habitada apenas por monges do sexo masculino, que tem constitucionalmente o direito de se autogovernar e onde é proibida a entrada a pessoas «heterodoxas». Os tratados da UE regulando a famosa «liberdade de circulação» têm respeitado o «direito à diferença» do Monte Athos, o único espaço da UE onde um «cidadão europeu» não pode entrar. Outro território regido por leis supra-constitucionais é constituído por algumas localidades na fronteira com a Turquia, onde, sendo a população maioritariamente muçulmana, o ensino é em turco e com uma componente de estudos do Islão.

(1)«Laos» significa «povo», mas enquanto totalidade indivisível, enquanto «ethnos» remete para o fundo «racial» ou cultural, e «demos» para a entidade com capacidade política.

31 de Julho, 2004 Ricardo Alves

Não, «Jesus Cristo» não existiu!

Ao discutir a crença na existência histórica de Jesus Cristo, devemos definir previamente de que «Jesus Cristo» estamos a falar.

É óbvio que não existiu o «Jesus Cristo» milagreiro que fora concebido por uma pomba, teria ressuscitado, multiplicado pães, transformado água em vinho e sido protagonista de outros acontecimentos sobrenaturais que contradizem todo o nosso conhecimento, científico ou empírico, sobre o mundo material. Mesmo alguns católicos (os mais esclarecidos) concordarão que essas alegações são falsas, e defender-se-ão reclamando que são meras metáforas ilustrativas, com valor estritamente poético.

Porém, quase todos os seguidores das várias seitas cristãs se recusam a aceitar que não existiu historicamente um homem real que tivesse fundado uma nova religião, fornecendo algumas palavras e gestos posteriormente retomados e difundidos, e que tivesse inspirado os autores dos Evangelhos (canónicos e apócrifos). É este mito, o mito do Jesus Cristo histórico, que deve ser refutado.

O problema não deve ser comparado com o de provar a existência de outros fundadores de novas religiões, como Lutero ou Maomé. O segundo é referido sobejamente em vários relatos históricos, conduziu exércitos e deixou descendência. O primeiro é referido por um número significativo de fontes coevas. Quanto a «Jesus Cristo», a verdade é que os historiadores e cronistas do 1º século da nossa era não o referiram. Cerca de quarenta historiadores romanos e judeus, que escreveram sobre os acontecimentos políticos, sociais e religiosos da Palestina do século I, não registaram nada quer sobre os acontecimentos que os Evangelhos supostamente relatam, quer sobre o hipotético fundador da seita cristã, «Jesus Cristo». Os Evangelhos são portanto, quando muito, relatos teológicos e não jornalísticos sobre a evolução de uma nova religião a partir de um ramo do judaísmo (há razões para pensar que esse ramo coincidiria originalmente com a seita essénia). Deve notar-se que os Evangelhos segundo Mateus, Marcos e Lucas são referidos pela primeira vez por Irenaeus, em 190 n.e., e o Evangelho segundo João em 180 n.e., por Teófilo de Antioquia. São portanto, presumivelmente, muito posteriores aos acontecimentos que pretendem relatar.

Existem, no entanto, algumas referências que os cristãos costumam alinhar em defesa do suposto carácter histórico de «Jesus Cristo». Referem com insistência, por exemplo, uma passagem das «Antiguidades dos Judeus» de Flávio Josefo, um Fariseu que nasceu no ano 37 da n.e. (e que portanto não poderia ter sido testemunha ocular de um «JC» hipotético que tivesse sido crucificado por volta do ano 30). A referida passagem diria o seguinte:

«Por volta deste tempo, viveu um homem chamado Jesus, se lhe podemos chamar um homem.(…) Ele era o Messias. Quando Pilatos (…) o condenou a ser crucificado (…) ele ressuscitou ao terceiro dia (…) e a tribo dos Cristãos, assim chamada a partir dele, não desapareceu até hoje».

Na realidade, esta passagem só pode ser uma interpolação cristã. Josefo era um Fariseu, e não se referiria a um «Messias» a menos que se tivesse convertido ao cristianismo, o que sabemos que não aconteceu porque Orígenes, um cristão do segundo século n.e. que conhecia os escritos de Josefo, afirmou que este não era Cristão. E Clemente de Alexandria, um dos primeiros polemistas cristãos, nunca usou esta passagem na sua propaganda, tendo a primeira referência ao «testemunho» de Josefo sido feita pelo cristão Eusébio em 324 n.e. Pode portanto concluir-se que esta passagem é falsa. Trata-se de uma interpolação (tal parece óbvio aos especialistas, também do ponto de vista estilístico), sem dúvida feita por cristãos para efeitos de propaganda.

Outra passagem muito citada é de Tácito, nos seus «Anais», escritos por volta do ano 120:

«Nero (…) puniu (…) uma classe de homens odiados pelos seus vícios, a quem chamavam Cristãos. Christus, o seu fundador, sofrera a pena capital durante o reinado de Tibério, por sentença do procurador Pôncio Pilatos.»

Esta passagem é também, muito provavelmente, uma interpolação posterior, uma vez que é referida pela primeira vez no século XV da nossa era! Nenhum propagandista cristão anterior a essa data lhe fez referência, nem à mítica perseguição de Nero aos cristãos, mesmo aqueles que conheciam os escritos de Tácito!

Finalmente, no século I n.e. Paulo de Tarso (possivelmente o homem mais importante na invenção do cristianismo) nas poucas epístolas que podem ser atribuídas, sem margem para dúvidas, a um mesmo autor, jamais se refere a um Cristo histórico. Aliás, não refere alguns dos mitos mais importantes do cristianismo, como o nascimento a partir de uma virgem ou os milagres que lhe concederiam os foros de «divindade». Estas lendas devem portanto ser posteriores ao século I. Deve ainda acrescentar-se que a maioria dos aspectos relevantes da pseudo-biografia de «Jesus Cristo», longe de serem originais, são comuns a outros mitos religiosos da bacia mediterrânica. É esse o caso do nascimento a partir de uma virgem (um elemento recolhido no culto de Mitras). «Jesus Cristo» é portanto um mito, inventado por uma religião nascente.

Nota final: este texto beneficiou grandemente com a leitura de «Did Jesus Christ really live?» de Marshall J. Gauvin, «Did Jesus Exist?» de Frank R. Zindler e «Christ a fiction» de Robert M. Price. Uma descrição da génese do mito cristão, de um ponto de vista judaico, é dada em «O mito do Jesus Histórico», de Hayym ben Yehoshua.

27 de Julho, 2004 Ricardo Alves

Refutando Tomás de Aquino(4)

quinta (e última) «prova» de Tomás de Aquino para a existência de «Deus» é inspirada na «governança do mundo». Aquino afirma que coisas sem «inteligência», tais como os «corpos naturais», actuam para uma finalidade e que isto «é evidente do facto de actuarem sempre, ou quase sempre, da mesma maneira, para obterem o melhor resultado». Por conseguinte, segundo Aquino, não atingem a sua «finalidade» de forma fortuita, mas sim de acordo com um plano. Como «aquilo que não tem inteligência não pode dirigir-se para uma finalidade senão se for dirigido por um ser dotado de conhecimento e inteligência», então Aquino postula a existência de um ser que dirige as coisas da natureza, e chama-lhe «Deus».

Este argumento explora o temor humano de que o mundo não tenha finalidade. Na verdade, muitas pessoas agarram-se à sua crença numa divindade por medo da liberdade. Aceitar que o mundo não foi criado por uma divindade pode não ser difícil, mas aceitar que não há plano e que «por detrás» deste mundo existe apenas a indiferença da natureza, ou seja, que cabe-nos a nós encontrar uma finalidade para a vida, jamais é fácil.

Efectivamente, e ao contrário do que pensava Aquino, não há necessidade de um «Deus» para assegurar que cada pedra cai na vertical (ou para saber viver…). Para isso, bastam as leis da Física. E um ser que «planeasse» o movimento de todas as N partículas do universo teria inevitavelmente de manter a informação correspondente aos vectores posição e velocidade dessas N Partículas. Sendo o universo um espaço tridimensional, tal ser teria de armazenar 6N números. Ou seja, teria de ser tão extenso quanto o universo propriamente dito.

24 de Julho, 2004 Ricardo Alves

Preso por defender a liberdade de pensamento

O Supremo Tribunal de Teerão decidiu que Sayyed Hashem Aghajari continuará na prisão pelo crime de blasfémia, mas reduziu a sua pena a cinco anos de prisão. Deve notar-se que este professor de História iraniano fora condenado à morte por, durante um discurso público, se ter afirmado favorável a um «Islão reformado», moderno, em que os muçulmanos não seguissem os líderes religiosos «cegamente» e «como macacos», e em que cada um pudesse encontrar a sua própria interpretação dos textos «sagrados». Em suma, foi condenado por defender a liberdade de pensamento.

Embora Aghajari não se tenha afirmado ateu, o seu discurso de Junho de 2001 fora suficiente para que um juiz de província o condenasse à morte por apostasia em Novembro de 2002. Aghajari tem portanto estado preso desde 8 de Agosto de 2001, por vezes em regime de isolamento, e sob ameaça de execução. A sua pena foi agora reduzida a cinco anos de prisão (dois dos quais de pena suspensa). O advogado de Aghajari espera conseguir ainda mais uma redução da pena, após novo apelo. O caso Aghajari tem causado protestos consideráveis entre os estudantes iranianos reformistas. 




A liberdade de expressão é um direito humano fundamental, e inclui a possibilidade de criticar as religiões, até mesmo de as ridicularizar. Na privacidade dos nossos pensamentos, somos sempre livres. É na consciência dos indivíduos que os dogmas religiosos caem sempre pela primeira vez. Poder exprimir o nosso pensamento é um direito político, que os clericais sempre tentaram limitar, através de leis contra a blasfémia, e em nome de interditos religiosos por eles definidos.

As democracias afirmaram-se, na Europa, contra as igrejas. Os países muçulmanos necessitam de uma laicização radical e urgente. Homens como Aghajari são indispensáveis.
19 de Julho, 2004 Ricardo Alves

A hierarquia das igrejas em Portugal

A hierarquia tradicional das igrejas em Portugal, anterior à proposta de Lei de Liberdade Religiosa de Vera Jardim (de 1999), resumia-se ao reconhecimento estatal de uma única igreja, a ICAR, que gozava de vários privilégios conferidos pela Concordata de 1940, celebrada entre o ditador fascista Oliveira Salazar e o Papa pró-fascista Eugenio Pacelli.

O objectivo de Vera Jardim, plenamente atingido com a Lei de Liberdade Religiosa(LLR) aprovada em 2001, consistia em conceder a algumas outras igrejas parte dos privilégios de que gozava a ICAR, não beliscando no entanto a predominância da ICAR. Assim, a LLR exclui arbitrariamente uma igreja do seu campo de aplicação (a ICAR, ver artigo 58º) e introduz uma «Comissão de Liberdade Religiosa» (artigos 52º a 57º da LLR) para «ajudar o Estado» na tarefa que José Policarpo designou, à época, como «separar o trigo do joio», ou seja, decidir quais são as boas e as más religiões. Esta autêntica «Comissão de Opressão Religiosa» seria constituída por um Presidente (a nomear pelo Conselho de Ministros), «cinco pessoas de reconhecida competência científica» (a nomear pelo Ministro da Justiça), três membros indicados pelas igrejas não católicas tendo em conta a sua «representatividade» (e nomeados pelo Ministro da Justiça) e dois membros nomeados directamente pela Conferência Episcopal Portuguesa, apesar de a ICAR ser, recordemo-lo, a única igreja a que a LLR não se aplica.

A 17 de Março de 2004, Celeste Cardona deu posse à primeira «Comissão de Liberdade Religiosa». A título de representantes das «confissões minoritárias» foram nomeados um evangélico da AEP, um muçulmano e uma judia; a título de «especialistas», foram nomeados três professores próximos da ICAR e ainda um ismaelita e um hindu por participarem no «diálogo ecuménico e interconfessional» organizado pela ICAR. A interpretação do critério da «representatividade» ficou assim clara: embora qualquer IURD ou Maná (para nada dizer das Testemunhas de Jeová) tenha mais seguidores do que as associações judaicas ou muçulmanas (segundo o censo de 2001, haverá em Portugal menos de 2000 judeus e cerca de 12000 muçulmanos), as boas relações dos dirigentes destas últimas religiões com a ICAR asseguram-lhes lugares na Comissão.

Chegados a este ponto, o leitor interroga-se, avisadamente, sobre a importância que poderá ter esta Comissão… Os artigos 53º e 54º da LLR estabelecem-lhe as funções e a competência: emitir pareceres sobre o reconhecimento das igrejas pelo Estado e sobre os acordos a celebrar entre estas e o Estado, podendo assim as igrejas instaladas na Comissão dificultar o acesso de outras igrejas aos tempos de emissão na comunicação social, ao ensino nas escolas públicas e aos benefícios fiscais! Constituiu-se desta forma uma hierarquia das igrejas, através da qual a ICAR, coadjuvada pelas igrejas que decidiu co-optar para a Comissão, pode recomendar ao Estado quais são as boas e as más religiões. Além disso, a Comissão emitirá um «relatório anual» sobre os «novos movimentos religiosos», uma atribuição que faz lembrar o Tribunal do Santo Ofício… Situação actual comparável, entre os países da UE, existe apenas na Grécia, onde um local de culto não pode abrir sem a autorização prévia da Igreja Ortdoxa Grega…

Numa República verdadeiramente laica, nada disto seria necessário. Um Estado laico deve ser incompetente em matéria de religião. A «correcta» convicção religiosa ou não religiosa é um assunto da consciência de cada cidadão, no qual o Estado não deve interferir, limitando-se a garantir que, dentro dos limites legais, cada cidadão seja livre de crer ou não crer, de praticar ou não praticar, e que seja tratado em plena igualdade com os demais cidadãos independentemente da sua convicção. Decidir qual é a «boa» opção filosófica é evidentemente uma liberdade individual, e decidir associar-se com pessoas que pensam da mesma forma é uma escolha na qual nenhum grupo de cidadãos deve ser tratado de forma desigual face a outro grupo.

9 de Julho, 2004 Ricardo Alves

Refutando Tomás de Aquino(3)

O quarto argumento de Tomás de Aquino para a existência de «Deus» é baseado na «gradação» e procede por analogia. Os passos essenciais são os seguintes:

(i) «Entre os seres há alguns mais e menos bons, verdadeiros ou nobres»;

(ii) «Mais e menos» são relativos a um máximo;

(ii’) Da mesma forma que algo é mais ou menos quente comparativamente ao «mais quente»;

(iii) O máximo de cada género de coisa é a causa de tudo nesse género;

(iii’) Da mesma forma que «o fogo, sendo o máximo de calor, é a causa de todas as coisas quentes».

(iv) «À causa do ser, da bondade e de qualquer outra perfeição, chamamos Deus».

Este argumento é tão miserável que dá vontade de rir. Em primeiro lugar, a verdade da analogia não provaria a verdade do argumento em si. Em segundo lugar, tanto a analogia como a substância da pseudo-demonstração estão erradas.

Começando pela analogia(ii’,iii’), não existe um «mais quente» no sentido lógico. É sempre possível aquecer algo mais um grau que seja. Do ponto de vista físico, o limite consistiria em escolher uma partícula «Z», converter toda a massa do Universo em energia, e concentrar toda a energia do Universo na partícula «Z». A temperatura de «Z» seria a temperatura máxima desse Universo. Evidentemente, o «fogo» não corresponde a máximo algum de temperatura. No entanto, existe um mínimo absoluto de temperatura, que corresponde à imobilidade total de todas as partículas num sistema.

Estando a analogia errada, toda a pseudo-demonstração de Aquino pode ser enviada para o cesto dos papéis. No entanto, mesmo que assim não fosse, a argumentação (i,ii,iii,iv) poderia sempre ser refutada separadamente.

(i) Se podem ou não existir máximos de verdade, bondade ou nobreza, é discutível. A «verdade» lógica de uma proposição jamais o é «mais ou menos»; uma proposição ou é verdadeira ou falsa ou indiscernível. Quanto aos valores éticos, mesmo um valor potencialmente absoluto como a vida humana é relativizável (pensemos em tirar a vida a Hitler ou Salazar). O mesmo é válido para a estética.

(ii) «Mais e menos» nem sempre são relativos a um máximo; «4» é mais do que «3», e no entanto o conjunto dos números reais não tem um máximo no sentido lógico.

(iii) Que o máximo de cada género é a causa desse género de coisas é uma afirmação gratuita, sem qualquer base lógica ou científica.

(iv) Não havendo um «máximo», não necessitamos de uma causa.

8 de Julho, 2004 Ricardo Alves

Refutando Tomás de Aquino(2)

O segundo argumento de Tomás de Aquino a favor da existência do «Deus» católico é o da causalidade. É muito semelhante ao primeiro, e desfaz-se da mesma forma. O raciocínio de Aquino é o seguinte:

(1) no «mundo sensível» existe uma «ordem de causas eficientes»;

(2) não pode haver uma cadeia infinita de causas;

(3) à causa primeira «todos chamam Deus».

A premissa, conforme explicado num texto anterior, está errada. Conhecem-se decaímentos radioactivos que não são provocados por causa alguma. Por exemplo, n->p+e, onde a emissão de um bosão W por um quarque é espontânea. O ponto (2) do raciocínio é logicamente inatacável, mas mesmo que o ponto (1) não estivesse errado (por pressupor a necessidade de ordem causal), a conclusão (3) faz apelo a um argumento de maioria sociológica, o que a invalida sem mais.

O terceiro argumento apoia-se nas «cadeias de causalidade» dos argumentos anteriores (que já vimos serem erróneas) e resume-se aos seguintes pontos:

(i) tudo o que existe na natureza é gerado e é destrutível, ou seja, pode «ser» e «não ser»; portanto, nada é eterno;

(ii) o que existe não pode ser gerado do «nada», porque o que existe só pode ganhar existência a partir de algo já existente; portanto, cada coisa necessita de ser criada por algo anterior;

(iii) postula-se uma entidade necessária em si própria.

A falha mais óbvia deste terceiro argumento encontra-se em (ii). Efectivamente, na física moderna observa-se (ou seja, calcula-se e confirma-se experimentalmente) que podem ser criados pares partícula-antipartícula a partir do vácuo, ou seja, do «nada». (A existência do próprio Universo pode não ter causa necessária.) Como é impossível que o vácuo seja a «entidade necessária em si própria» a que Aquino e os seus coevos chamavam «Deus», e que também ditara as tábuas da «Lei» a Moisés, engravidara uma virgem, etc., segue-se que o terceiro argumento só seria válido se se quisesse chamar «Deus» ao vácuo (e mandando às malvas o indeterminismo).

Porém, pode afirmar-se sem margem para erro que o vácuo não tem sexo e não dita textos jurídicos

2 de Julho, 2004 Ricardo Alves

Atrás do véu

Existem duas linhas de argumentação entre aqueles que se opõem à proibição de símbolos religiosos (como o véu islâmico) nas escolas públicas.

(1) Proibir símbolos religiosos pessoais é limitar a liberdade de expressão.

(2) Deve respeitar-se a «identidade cultural» muçulmana ou outra, custe o que custar.

A postura (1) funda-se num valor que muito prezo (a liberdade de expressão) e que só aceito que seja sacrificado neste caso porque estão em risco outros valores igualmente fundamentais: a neutralidade confessional da escola pública e a igualdade entre os sexos. Deve acrescentar-se que proibir símbolos religiosos pessoais não é uma medida indispensável à laicidade escolar; é uma medida de emergência. Efectivamente, o véu islâmico aparece nas escolas francesas devido à pressão exterior de grupos extremistas, e faz-se acompanhar de um crescendo de reivindicações identitárias: rejeição do estudo do genocídio de judeus, recusa de assistir a aulas de educação sexual e até de participar na ginástica e na natação. A mensagem que assim chega à escola, enviada pelo clero mais fanático, é clara:

(i) as meninas não brincam com os meninos;

(ii) o respeito pela «cultura islâmica» necessita da segregação.

A situação agrava-se tanto mais quanto se verifica que, em muitos subúrbios franceses, as raparigas que não usam o véu são vítimas de violência, o que indica que o uso do véu, longe de ser uma escolha livre e pessoal, é uma imposição da família ou dos jovens machistas de bairro. A face e o cabelo desvelados das raparigas de «cultura muçulmana», nas escolas públicas, poderão ser muito educativos para esses jovens aprendizes de mulás extremistas. O direito a uma escola pública livre de pressões clericais deve portanto prevalecer.

Finalmente, a atitude (2) é a de certos «culturalistas» que defendem que as jovens de origem magrebina não fazem outra coisa senão exercer o seu sagrado «direito à diferença», e que não se apercebem de que neste caso se chegou ao «dever de diferença». Não é por acaso que cada vez mais jovens de «cultura muçulmana» se organizam e reivindicam o direito (veja-se lá o atrevimento!), de abandonarem a sua (presumida) «cultura de origem» seguindo o Corão apenas nos preceitos que quiserem, ou até não o seguindo de todo. É esse o caso do «Mouvement des Maghrébins Laïques de France» ou de «Ni putes, ni soumises» (uma associação de mulheres dos subúrbios contra a violência).

Os nossos «culturalistas» argumentam ainda que os valores cívicos e políticos são de origem «cultural» e que portanto não devem ser impostos a outras «culturas», mesmo que esse valores sejam, neste caso, a liberdade individual, a igualdade dos sexos e a laicidade. Mesmo os «culturalistas» da esquerda mais «radical» caem neste erro… É que quem define a «identidade cultural» são sempre os sectores mais tradicionalistas e integristas, ou melhor, não tenhamos medo da palavra: reacionários.