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Dia: 18 de Abril, 2005

18 de Abril, 2005 André Esteves

O Kitsch da Fé

A minha avó materna morreu na passada semana.

A morte não me é estranha. Conforme os anos vão passando, inevitavelmente o número de féretros vai aumentando, até que culmine no nosso. Ser ateu e olhar a morte nos olhos dá-nos uma perspectiva diferente dos outros. Não nos enganamos a nós próprios acerca do destino final do nosso eu. Isso aumenta a intensidade com que vivemos a vida e ao mesmo tempo, dependendo do homem, faz crescer em nós um certo grau de desprendimento com o que outros consideram importante.

Velei o corpo da minha avó. Ao contrário do que a propaganda e educação religiosa envenenam na percepção comum, um ateu não é um abjecto niilista (coitado do niilismo) em relação às cerimónias à volta da morte. Pelo contrário, apercebemo-nos de nuances práticas, da história e necessidades que aos olhos dos outros se encontram escondidas pelo seu medo.

Velamos o corpo, por tantas razões práticas… Ao vermos o corpo à nossa frente, hirto, a demonstrar os sinais ocultados da decomposição, somos confrontados com a inevitabilidade da morte do nosso ente querido. À memória do vivo é associada a memória do morto. Isso ajuda-nos a avançar no processo do luto. Há outras consequências práticas: a comunidade certifica-se que o morto não será enterrado vivo, bem como posso imaginar, no dealbar da humanidade protegia-se o corpo dos animais selvagens, antes de ser sepultado, em segurança, durante o dia. A necessidade do luto, a consciência da morte, e podemos ver isso pelos vestígios arqueológicos, pelo tratamento dado aos mortos, é a marca do nascimento da noção do tempo e da mudança no cérebro humano. As ofertas de flores, por exemplo, são uma tradição já de si paleolítica. Afastam o mau cheiro, bem como permitem demonstrar o nosso apreço pelo falecido.

Mas há mais pormenores locais e das culturas que se vão acumulando. Por exemplo, a minha avó foi a enterrar num caixão, mas envolvia-a uma mortalha branca. Um pormenor característico do Alentejo e que é herdado da cultura semita judaica ou muçulmana.

Mas considerando tudo isto, o que me veio à mente quando olhei para aquele Cristo de plástico na tampa do caixão, a velar, indeciso, pelo morto foi isto: indo às raízes da história da humanidade e eliminando os sucessivos aculturamentos impostos por missionários e conquistadores, o que sobra do catolicismo e do cristianismo?

O Kitsch…

Fui para fora da sala, fumei um cigarro e dei uma gargalhada.
Foi com o que fiquei da minha avó: ainda se ria do absurdo da vida com 84 anos.
Um sentido de humor imperdoável.

18 de Abril, 2005 pfontela

A ficção dos direitos da mulher

Para quem gostar de obras de ficção fica aqui uma boa dica: porque que é que os direitos da mulher são uma ficção ocidental. Uma “obra prima” do conservadorismo islâmico que visa convencer-nos que afinal a intolerância religiosa não existe e que os maus da fita são os que querem dar oportunidades de escolha livres a todos os cidadãos independentemente do sexo, nacionalidade, raça, orientação sexual, idade, etc.

Como sempre a sociedade ocidental é definida como um ninho de víboras que querem corromper a pureza islâmica (se por pureza se entender uniformidade à ponta de uma arma então o termo é usado correctamente) e tudo o que dela emana é vilificado. Um texto a recordar, não tanto pela sua qualidade mas pelo facto de muitos dos seus argumentos serem usados repetitivamente por muitos conservadores religiosos, de diferentes quadrantes, para defender posições similares. Sem dúvida que a cúria de Roma (o mais recente aliado das teocracias islâmicas na luta contra a modernidade) não teria problemas em assinar de cruz este género de ideias.

18 de Abril, 2005 Carlos Esperança

A gralha do «Público»

Para mim, ateu e jacobino, todos os cardeais são iguais: piedosos, tementes a Deus e, a partir de certa idade, castos. Sei que são importantes para os católicos e, nesta altura do conclave, decisivos para a escolha do Papa que melhor defenda os interesses da ICAR (Igreja Católica Apostólica Romana).

Tal como os cardeais, os papas tendem a ser iguais. A Santidade é profissão e estado civil comum a todos. A dilatação da fé é a obsessão que uns ensaiam de forma discreta e outros de forma vigorosa. O proselitismo está na matriz genética da ICAR desde o tempo do Imperador Constantino. As Cruzadas não foram um epifenómeno, foram uma manifestação de fé mal sucedida. A Inquisição não foi erro de percurso, foi o exercício do poder com excesso de fé. A contra-reforma não foi a crueldade de que se fala, foi um exercício pedagógico vigoroso destinado à reconversão dos crentes transviados.

O que eu não esperava ver era o «Público» a partilhar as minhas convicções. No seu número de hoje, apesar das desculpas que amanhã vai apresentar aos leitores, publicou o perfil do Patriarca Policarpo e o do cardeal Saraiva Martins, respectivamente nas página 4 e 5. Só os nomes, os títulos e as fotos são diferentes, tudo o resto é absolutamente igual, efeito provável da clonagem que a Santa Madre Igreja tanto abomina.

Já Luís de Stau Monteiro no seu livro «A Guerra Santa» considerava os generais todos iguais, a ponto de os soldados confundirem o general inimigo com o próprio, de tal modo que dois exércitos que aprisionaram os generais inimigos não deram conta da troca dos generais nem estes se aperceberam de ficar a comandar o exército errado.

Se o engano é possível com generais, mais fácil se torna com cardeais.

18 de Abril, 2005 Ricardo Alves

O «laicismo radical»

O texto reproduzido a seguir foi enviado para publicação ao jornal Público, em resposta a um artigo de Vital Moreira intitulado «Constituição europeia e religião». Nesse artigo, Vital Moreira acusara pessoas indeterminadas de serem «laicistas radicais» e «fundamentalistas» por defenderem a supressão do artigo I-52 da Constituição europeia, ou seja, por defenderem a laicidade da União Europeia. O Público entendeu não publicar esta carta de leitor. Fica aqui reproduzida.
«Senhor Director,
No Público de 12/4/2005, para minha perplexidade,Vital Moreira (VM) acusa os laicistas que se opõem à Constituição europeia de serem «radicais» e «fundamentalistas». VM defende, surpreendentemente, a institucionalização do diálogo europeu com as igrejas (estabelecido no artigo I-52), que apresenta como «condição da democracia participativa» (que prefere à democracia representativa?), mas não desmente que assim se institui um regime europeu semi-confessional distinto da separação das Igrejas do Estado que, felizmente, vigora em Portugal desde a Constituição (laicista «radical» e «fundamentalista»?) de 1976. VM nem sequer manifesta estranheza por a Constituição europeia separar o diálogo com as igrejas e organizações filosóficas do diálogo com as associações da sociedade civil, este já incluído no artigo I-47. Omite igualmente que o artigo I-52, ao também proteger contra a legislação europeia o estatuto de que gozam as igrejas ao nível nacional, evita que a legislação europeia contra a discriminação religiosa ou contra as sonegações de fundos afecte as igrejas, e perpetua os seus privilégios nacionais relativamente a outras associações, tornando assim o dito «diálogo» muito desigual.
Concordo no entanto com VM quando afirma que o Preâmbulo, na sua forma actual, confere à democracia e aos direitos fundamentais uma inspiração parcialmente religiosa inexacta, pois estas liberdades afirmaram-se, historicamente, em oposição ao poder das igrejas.
Tudo somado, espanta-me que VM não veja, mesmo perante o apoio das igrejas europeias ao Tratado Constitucional, que este não é laico. É caso para dizer que o europeísmo, como se diz do amor, pode cegar.
Ricardo Alves
13/4/2005»