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Categoria: História

17 de Junho, 2024 Onofre Varela

A Liberdade Que Abril Nos Deu

Que Histórias se contam na Bíblia?

A minha experiência de ser silenciado pelo poder religioso e político em tempo de Democracia, aconteceu pela primeira vez em 1978 no jornal O Primeiro de Janeiro (PJ). Portanto, já com a Liberdade de Expressão instalada há quatro anos pela Revolução dos Cravos, e instituída há dois anos pela publicação da Constituição da República Portuguesa (1976).

Andava eu a ler o livro “A Bíblia e os Extraterrestres”, do advogado francês e perito em Língua Hebraica, Pierre-Jean Moatti, acabado de ser editado (pela Via Editora, Lisboa, 1978) e cujo conteúdo me remeteu para a leitura da Bíblia procurando comprovar as citações do autor.

Em Êxodo 19:16-20, é narrada a descida de Deus sobre o Monte Sinai do seguinte modo que me pareceu espectacularmente cinematográfico: “E todo o povo viu os trovões e os relâmpagos, e o sonido da buzina, e o monte fumegando” (?!). Fiquei curioso e intrigado!… Deus precisava de fazer um cagaçal de tal tamanho para se mostrar à malta?!… Esta imagem fantástica remeteu-me para a descida de uma nave espacial, com fogo e fumo dos jactos, mais um ruído de motores de tal modo ensurdecedor e potente que fez tremer o monte!…

Nesse tempo eu tinha iniciado uma rubrica onde escrevia semanalmente um texto com o título genérico OVNI’s EXISTEM, onde comentava as observações de Objectos Voadores Não Identificados, que estavam tão em voga e era raro o dia em que não houvesse notícia dando conta de uma estranha observação nos céus em qualquer parte do mundo.

Módulo Lunar, o engenho espacial que permitiu ao Homem pisar outro planeta. Repare-se no seu aspecto zoomórfico. O habitáculo e módulo de subida sugere-nos uma cabeça. As suas janelas triangulares são dois olhos de expressão agressiva, e a porta de entrada uma boca ameaçadora pronta a morder. O andar de descida é um corpo munido de possantes membros que o fixam ao chão.

Impressionado com a leitura da Bíblia e do livro de Pierre-Jean Moatti (que me remetia para a ideia de termos sido visitados, em tempo tão recuado, por seres oriundos de outras paragens cósmicas) publiquei no dia 5 de Novembro de 1978, o primeiro artigo de uma série de três, com o sugestivo título: “A Verdade da Bíblia (1) – Os Colonos que Vieram do Cosmos” com uma ilustração legendada (e publicada aqui).

Quando, no dia da publicação, entrei ao serviço no início da tarde, o director chamou-me. Na sua secretária tinha o jornal aberto na página onde saiu o meu artigo. Perguntou-me o que queria dizer aquele número um entre parêntesis. Ficou a saber que referia o primeiro artigo de uma série de três.

A sua reacção foi peremptória: proibiu-me de escrever mais sobre qualquer tema que abordasse a Bíblia, ou qualquer outro assunto relacionado com religião. Alegou ter recebido “telefonemas de leitores indispostos com o meu texto e não queria perder leitores”.

Assim ficou aquela série, de três artigos, pela publicação do primeiro!… Com o correr do tempo percebi que “os telefonemas de leitores indispostos com o meu texto” não era mais do que uma desculpa “de mau pagador”… fui-me apercebendo de factos que me levaram a concluir que aquilo não foi mais do que o cumprimento dos recados da Igreja levados ao director por um lacaio da seita Opus Dei que várias vezes por mês reunia com ele (e também com o director do JN) ao início das madrugadas!…

Tinham passado quatro anos após o 25 de Abril, e dois sobre a publicação da Constituição da República Portuguesa onde se afirmam as liberdades de expressão e de culto… mas o raciocínio daquele director ainda não se adaptara ao novo regime e parecia obedecer a ordens eclesiásticas.

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

17 de Abril, 2024 João Monteiro

Dinossauros cristãos

Nota: Texto da autoria de Daniel Ramalho.

Em 1890, na sua obra Princípios da Psicologia, o psicólogo Americano William James escreveu: ‘A melhor maneira de entender a natureza humana é estudá-la nas suas expressões mais extremas.’ Doze anos mais tarde, na compilação de 20 palestras dadas na Universidade de Edimburgo intitulada Variedades da Experiência Religiosa, viria a reafirmar esse princípio fundamental do seu pensamento relativamente à nossa compreensão da espiritualidade nas suas várias formas. Nessa obra, William James explorou as expressões mais extremas da experiência religiosa (incluindo o êxtase, a santidade, a conversão, e a culpa perante Deus) como forma de compreender o que é a vivência normal do comum religioso.

Sendo um princípio manifestamente tão útil e fértil, dei por mim a aplicá-lo espontaneamente no meu estudo do extremo representado pela tribo Pirahã, que existe em quase total reclusão no Amazonas. É uma tribo actualmente com pouco menos de 500 indivíduos e que teria permanecido em total obscuridade não fosse o facto de a sua língua ser a única restante no mundo da família a que pertence, e de causar em igual medida fascínio e dores de cabeça a filósofos e linguistas desde os anos 70, período em começou a ser estudada. Alguns aspectos da sua língua são simplesmente alienígenas para nós, como por exemplo o facto de terem uma consoante apenas usada por homens, e não terem termos fixos para números nem cores, mas apenas expressões aproximadas para ambos (i.e. não têm “um” e “dois,” mas “pouco” e muito,” e não têm terminologia cromática abstracta para além de “claro” e “escuro,” ou apontar para uma cor presente diante dos interlocutores).

Outras das suas peculiariedades são-nos sintacticamente incompreensíveis, como não terem recursividade (i.e. há um limite para o tamanho das frases que podem ser gramaticalmente formadas), nem terem cláusulas subordinadas (i.e. em lugar de dizerem “gostava de comer aquilo que estás a comer,” dizem “estás a comer, quero comer também.” Outros aspectos da sua cultura ligados à língua são considerados talvez primitivos por nós. Por exemplo, a língua dos Pirahã tem partículas gramaticais que ligam cada nome comum ao presente imediato, pelo que não têm história para além daquela que pode ter atestada por pessoas vivas. Por esse motivo, não têm contos de fadas para contar às suas crianças, não têm mitos de criação e, mais relevante para este fórum, não têm qualquer crença num Criador omnipotente. Acreditam em entidades sobrenaturais, mas apenas aquelas que conseguem ver nas diversas encarnações da Natureza, seja nas sombras e ilusões ópticas que esta cria.

 Faço referência a esta cultura tão extrema relativamente à nossa no mesmo sentido de William James pelo modo como permite iluminar a nossa própria normalidade, que à luz dessa comparação não será, como pretendo demonstrar, menos extrema do que a normalidade Pirahã.

Os Pirahã não têm palavras para graus de parentesco mais remotos do que dos avós. Isto acontece porque dada a longevidade média dos seus membros, não têm em geral experiência imediata de bisavós, e como vimos, nada fora da sua experiência imediata tem existência para eles. Isto parece a nativos da nossa civilização a epítome da miopia histórica. Contudo, todo este intróito teve como objectivo demonstrar que as limitações impostas à percepção temporal dos Pirahã não são diferentes em certo sentido às que foram impostas pelo Cristianismo à civilização Ocidental.

O debate contínuo entre cristãos e ateus baseia-se em grande medida na distância cronológica que nos separa de Jesus, por ser demasiado extensa para que possa garantir qualquer certeza relativa aos seus supostos feitos. O dia-a-dia de ambos é medido nessa mesma escala, e pensamos em 2024 anos como uma quantidade de tempo enorme por usarmos a mesma referência temporal, quer sejamos crentes quer não. Esta referência é tão universalmente aceite como “a medida do homem” que mesmo os ateus usam como argumento comum relativamente às afirmações cristãs as semelhanças entre as afirmações de fé do Cristianismo e as daquelas muito mais “remotas,” quanto as de Platão 350 anos antes, de Buda 550 anos antes, ou dos Egípcios mil anos antes. Estas medidas de tempo são consideradas gigantescas. Poderíamos dizer que assim é pelo tempo médio da vida humana ser tão curto, mas se assim fosse seria arbitrário dizer 2000 anos, ou 3000, ou 7000, ou 10.000, por excederem esse tempo de forma tão extrema. O tempo bíblico em geral e o início do Cristianismo em particular parece ser de facto para todos nós, crentes e ateus, um ponto de referência fundamental, que determina a medida do tempo que os Pirahã diriam na sua linguagem anumérica ser “pequeno” ou “grande.”

Talvez em nenhum outro campo isto seja mais evidente do que na arte. Pensemos em qualquer dos grandes artistas universais, mesmo anteriores ao Cristianismo. Qual deles dedicou o seu génio a representar algo anterior ao tempo bíblico, ou na Antiguidade a deuses ou demiurgos que não fossem antropomórficos de algum modo, ou a qualquer forma de eternidade que não seja em certa medida sobrenatural? Quem procurou extirpar da sua criação artística toda a linguagem religiosa para procurar representar o tempo na sua inimaginável magnitude e sublime magnificência de formas e beleza que engendrou? É certo que isto seria difícil de concretizar antes de Darwin, mas não teria um Darwin surgido séculos antes se o tempo “A.D” “D.C.” não fosse “normal”? Não teria o mundo natural sido dignificado como merece na produção pictórica e escultórica? Todos conhecemos o famoso fresco da Capela Sistina intitulado a Criação de Adão. Muitos dirão que sem religião, a Humanidade teria perdido esta imortal obra de arte e nada teria preenchido o seu vazio. Mas que teria Michelangelo ou um génio do seu calibre produzido se tivesse tido acesso à total dimensão da pré-História? Na imagem acima deste texto vemos um fóssil de um Psitacossauro a ser atacado por um Repenomamus, um pequeno mamífero do Cretáceo. Que metáfora melhor poderia haver para o erguer dos mamíferos do que esta imagem – real, não imaginária –, de um humilde mamífero, nosso “Adão,” a atacar e a devorar um representante da espécie dominante do planeta da altura, um dinossauro? Seria uma escultura destas inferior à de David antes de enfrentar Golias, menos rica na sua simbologia? Não. Apenas estamos limitados pelo facto de considerarmos 2000 anos uma quantidade de tempo extrema, além da qual nada pode ser de alguma forma ligado a nós enquanto humanos feitos à imagem de Deus. Não podemos nesse enquadramento considerar algo emoldurado em cinza vulcânica há 125 milhões de anos com metáfora de nós, ou algo digno de reflexão quiçá espiritual. Mesmo esquivando milhões de anos desde esse tempo, fomos incapazes de pensar em termos artísticos nos vários encontros que terão acontecido entre as várias espécies humanas que existiram muito antes de termos sido a única que sobrou. Ou na honra que deveria ter sido feita aos primeiros artistas que se dedicaram a pintar paredes de pedra num momento em que, ao contrário de qualquer artista conhecido depois deles, não estavam no topo da cadeia alimentar e no entanto decidiram dedicaram tempo da sua curtíssima vida a imortalizar uma imagem das suas vidas apenas por ser bela.

Que Capelas Sistinas do Paleozóico poderíamos ter tido sem o grilhão da temporalidade cristã? Que Capitólios do Triássico? Que frescos do apocalipse da grande extinção Permo-Triássica? Que Pietàs dos grandes líderes do planeta, os dinossauros, no dia do impacto desse asteróide que foi, enquanto mamíferos, o nosso verdadeiro Salvador? Que histórias a enfatizar que vivemos na Terra uns meros 0.09% do tempo que os grandes répteis reinaram? Onde estão os grandes murais a representar as nebulosas que originaram a nossa galáxia? Quem esculpiu o momento da morte do último Neaderthal? Quem honrou o enorme sacrifício dos nossos antepassados, anatomicamente e intelectualmente nossos pares, que sofreram de forma inimaginável para morrerem aos 20 anos, mas que procriaram a tempo de serem antepassados de todos nós? Quem escreveu o épico dos mamíferos do Paleoceno, a ode aos triápsidos, a epopeia dos Ardipithecus, o soneto ao primeiro anfíbio? Ninguém, porque tudo o que se passou antes de nós aconteceu há demasiado tempo, há mais de 2000 anos. É compreensível: essa escala de tempo não é só facilmente envolta para pelas nossas mentes espartilhadas, mas ajuda-nos a lembrar de que tudo antes dessa época, todos os milhares de milhões de anos e quintiliões de formas de vida que viveram e morreram nesse longo entretanto, foram apenas prolegómenos ao tempo abraâmico. E até para ateus isto parece natural.

Em 1978, o psicoanalista francês Dominique Laporte escreveu uma breve mas genial obra intitulada sem pudores História da Merda. No centro de gravidade entre a seriedade e a sátira, Laporte afirma peremptoriamente que o momento crucial da história da Humanidade foi nada menos que a invenção da sanita. Isto porque todas as outras espécies do planeta convivem com as suas próprias excreções corporais, urina e fezes, e estas humilhantes provas da sua fisicalidade e mortalidade fazem parte do seu mundo. Apenas para os humanos há a possibilidade de carregarem no botão do autoclismo e verem num instante estas lembranças de que a nutrição não é apenas um prazer desaparecerem da sua vista para sempre, como se se transportassem para um plano etéreo. Diz Laporte que a partir desta gloriosa invenção, o humano pôde considerar-se verdadeiramente um ente divino, acima de qualquer outra criatura, porque na verdade já não excreta senão durante breves segundos. Apenas se alimenta, e num piscar de olhos todo o sub-produto da sua digestão e função renal desaparece como que por milagre. O Cristianismo, de certa forma, fez o mesmo relativamente a todo o tempo pretérito a si próprio. Puxou o autoclismo da pré-História e assim criou o mito de que apenas o homem pós-Bíblia existe – mesmo para aqueles que se dedicam a criticar a Bíblia. Tudo o resto, aquilo que foi animal e repugnante, como peixes, anfíbios, répteis, mamíferos, e hominídeos, desapareceu debaixo do turbilhão sugador das águas da Bíblia sobre as quais pudemos então todos andar como Jesus andou.

Numa prateleira da minha biblioteca pessoal mantenho um fóssil de uma trilobite. Este singelo artrópode que agora ali existe ladeado de autores clássicos morreu talvez há 300 milhões de anos. Mantenho-o lá para me lembrar constantemente que toda a sabedoria dos autores que venero e cuja sabedoria me alimenta diariamente não passa de um grão de pó num enorme edifício cujas forma e dimensão somos incapazes de imaginar. Para que não me encontre um dia a rodopiar no puxar do autoclismo que foi talvez o maior sucesso da história do Cristianismo. Para me lembrar de que os “primitivos” Pirahã, que não têm palavra para “bisavós,” não são tão diferentes de nós quando consideramos que só temos a palavra “antepassado” para nomear toda a enorme variedade de humanos – melhor dizendo, pessoas – de outras espécies, que nos deixaram em legado quem somos hoje. Para que esses homens e mulheres extintos não seja nunca, jamais, aos meus olhos, dinossauros cristãos.

14 de Março, 2024 Onofre Varela

Espírito missionário

Quando cumpri o serviço militar em Angola (de Dezembro de 1965 a Fevereiro de 1968) não tinha o interesse cultural que adquiri mais tarde, no sentido de aproveitar o tempo passado em África para me engrandecer intelectualmente.

E não foi assim por mais do que uma razão: primeiro, por não ser de minha vontade prestar serviço no Exército (conto a experiência no livro 191 – Memórias de um Soldado em Angola. Editora Verso da História, 2016 / comercializado pela Book Cover Editora). E depois, porque nos meus 20 anos de idade não tinha a maturidade de que necessitava para, naquela fase da vida, ter outro interesse que não fosse o de chegar vivo ao fim de cada dia, esquecendo (ou melhor: não sabendo) outros interesses de ordem cultural e antropológico que bem podia ter aproveitado.

Só muito depois de regressar me dei conta de ter perdido oportunidades únicas que desperdicei por desconhecimento. Estive em terra africana, no berço da Humanidade, e não vi, nem senti – do modo como, obrigatoriamente, deveria ter visto e sentido – o que me rodeava. Não só a paisagem, mas principalmente aquela gente maravilhosa que tem chocolate na pele; os seus usos e costumes, mais o entendimento que tinham das coisas e da própria vida. Um manancial de estudo antropológico que desperdicei por não estar culturalmente preparado para isso nos meus 20 anos mal vividos!

Recordo que numa outra zona – por onde não passei mas de cuja existência sabia – havia militares aquartelados na “Missão”. Era um lugar de sanzalas que rodeavam o quartel militar estabelecido num edifício que serviu de morada a missionários protestantes, daí o termo por que era referido. A partir de Março de 1961, com os violentos ataques dos guerrilheiros aos colonos, e depois com o evoluir da guerra, os missionários acabaram por abandonar a “Missão” que, só então, o Exército ocupou como quartel.

Quero aqui dizer que tenho a maior admiração pela figura de “missionário” e do consequente “espírito de missão”. Muito provavelmente terei uma visão romântica do que é ser missionário (como tinha do jornalismo… antes de entrar nas redacções dos jornais).

Foto de Ben White na Unsplash

Li relatos que me mostraram o sacrifício e a heroicidade dos missionários na ajuda de populações, desde o fornecimento de comida e prestação de cuidados de saúde, acalentando a necessária confiança no futuro a quem nada tem. Bem sei que toda essa dádiva tinha a intenção de conquistar almas para um culto religioso representado por quem prestava aquela ajuda social, com a intenção de levar os pobres angolanos a abraçarem o Cristianismo. A ajuda era só a sementeira… a colheita seria feita depois.

Só quando procurei informação sobre a atitude missionária, constatei haver uma indústria do sector!… Encontrei uma lista de 23 “empresas missionárias” que procuram jovens com espírito de missão evangélica!

Empresas que ostentam nomes como: Missionários do Preciosíssimo Sangue; da Consolata; do Coração de Maria, e de São João Baptista… e li a declaração de interesses, que diz: “Missionário é ser chamado, escolhido, separado e preparado por Deus, para levar a mensagem do Evangelho (…) com o intuito de converter alguém à sua fé”.

Esta constatação dissipou o romantismo do entendimento que eu tinha da atitude missionária, por se afirmar no acto de recrutar fiéis para uma religião (tal como se recruta soldados para um exército de mercenários), no auto-convencimento de ter havido por ali uma “mão de Deus na escolha e na preparação dos eleitos” (!!!).

Mas para além desta atitude proselitista, ficou-me a certeza de haver um espírito fraterno dos jovens generosos que se deixam recrutar para prestarem serviço em missões humanitárias em regiões como África, Ásia, Oceânia e América Latina, merecendo o meu maior respeito e admiração.

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

12 de Março, 2024 Onofre Varela

Quando formos grandes…

Quando se ouve uma voz que contraria a tradição e a ordem estabelecida, originam-se reacções que vão desde o escândalo dos resistentes a novas ideias, até ao fascínio dos que aderem ao que é novo. Em todos os tempos as vanguardas começaram por ser repudiadas, depois toleradas, acabando aceites. 

Lembremos Galileu Galilei e Giordano Bruno.

O julgamento de Giordano Bruno pela Inquisição Romana. Relevo em bronze de Ettore Ferrari, Campo de’ Fiori, Roma.

Galileu Galilei (1564-1642), astrónomo, construiu o primeiro telescópio e observou os astros. Concluiu que a Lua girava à volta da Terra, e esta rodava à volta do Sol. O conhecimento da sua época não era científico, mas religioso, e a Igreja garantia que o nosso planeta era o centro do mundo e que o Sol e a Lua rodavam à volta da Terra para nosso puro deleite, pois Deus assim quis e fez! Galileu foi condenado pela Santa Inquisição e fingiu retratar-se, evitando ser morto na fogueira diabólica onde a Igreja adorava queimar aqueles que não diziam amen consigo. No tribunal, terá dito: “eppur si muove” (no entanto ela [a Lua, a Terra] move-se).

Giordano Bruno (1548-1600) foi monge e estudioso do Universo. Concluiu poder ser falsa a ideia (defendida pela Igreja) de que só a Terra era habitada por vida inteligente, defendendo a hipótese da existência de muitos outros mundos habitados por gente como nós. Ao contrário de Galileu, não aceitou fazer uma retratação negando as suas ideias, e por isso foi condenado a morrer na fogueira. Os seus algozes foram mais longe. Depois de o amarrarem no poste e antes de lançarem fogo à lenha que o rodeava, com um alicate puxaram-lhe a língua e pregaram-lhe uma tábua para que o monge não blasfemásse!…

Charles Darwin teve o mesmo problema com a Igreja quando expôs a Teoria da Evolução, contrariando a Criação Divina. Hoje, passados 165 anos após a publicação do seu livro “Origem das Espécies” (1859), ainda há quem defenda o conceito religioso da Criação contra a evidência científica da Evolução!

Isto acontece assim porque o raciocínio de muita gente está amarrado a conceitos religiosos desde criança, impedindo, ou dificultando, o entendimento científico. Conclui-se que uma parte da sociedade é constituída por interesses supérfluos e serôdios, levando ao desinteresse pelas Ciências e pela História. Considerou-se ser mais importante jogar à bola, do que ler um livro; exercitar a musculatura do corpo em ginásios, do que treinar o músculo do cérebro em livrarias e bibliotecas. 

Ter músculos esculpindo o corpo é a primeira escolha porque se vê por fora e faz inveja aos nossos amigos que são tão estúpidos quanto nós. Vivemos a cultura do corpo esquecendo a cultura do espírito.

No campo destas considerações encontramos o Ateísmo que já faz um quarto da população mundial. Não é muito, mas está a crescer. Quando formos grandes… a maioria de nós dispensará a redutora ideia da fábula de Deus e dos santinhos e, provavelmente, também, a beleza exterior que nada vale se não for alicerçada na beleza interior. 

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico) 

6 de Fevereiro, 2024 Eva Monteiro

Os milagres Segundo a Ciência

Luigi Garlaschelli (Itália)*

Fenómenos paranormais, mistérios e milagres

Os fenómenos paranormais violam as leis da natureza, mas como cientistas curiosos gostamos de investigar se os factos paranormais realmente existem e se existem provas convincentes dos mesmos. (A resposta, até agora, é “NÃO”).
Um famoso “mágico” e escapista americano, James Randi, ofereceu, durante cerca de 30 anos, um milhão de dólares para quem conseguisse repetir o paranormal sob controlo. Ninguém conseguiu conquistar essa verba.
Os fenómenos paranormais aparecem com menos frequência, quanto mais são  investigados. Eis aqui, como exemplo, alguns mistérios (nem todos paranormais) com os quais me ocupei:
– Aprendi os segredos dos faquires (e eu próprio me tornei faquir): posso deitar-me numa cama com “unhas eriçadas”, expelir fogo, comer vidro, parar os batimentos cardíacos, etc.
– Cacei luzes perdidas num cemitério.
– Tratei da espada cravada na pedra! (E até consegui sacá-la)
– Examinei vedores, pessoas que afirmam poder encontrar uma fonte de água subterrânea com um pau, mas não foram capazes de detetar água a correr num cano.
– Testei, por meio de uma experiência, se a homeopatia seria eficaz em galinhas (e não é).
– Inquiri sobre as estradas mágicas onde os veículos sobem na descida (mas isso é apenas uma ilusão de ótica).

Mas os milagres também são fenómenos paranormais, embora ocorram na esfera religiosa. Esclareço que nós, cientistas, não estamos interessados na vertente da crença, mas no exame dos fenómenos. Em Itália, temos muitos milagres e explorei alguns deles.

Caravaggio «pictor praestantissimus», 2014

Sangue milagroso


O mistério mais famoso que investiguei é o chamado milagre do sangue de São Januário (San Gennaro). Esse “milagre” acontece três vezes por ano, na catedral de Nápoles, quando o sangue numa ampola se liquefaz, misteriosamente. É normal que o sangue coagule, mas não é normal acontecer que ele se liquefaça de novo e depois volte a coagular, novamente e novamente. Reproduzimos (ou imitamos) esse milagre por um método químico. Criámos um gel, ou seja, uma gelatina, feita de cloreto férrico e carbonato de cálcio. Este gel “tixotrópico” pode ser facilmente liquefeito com batidas suaves e depois, em repouso, solidifica novamente. Durante a cerimónia típica de liquefacção do sangue, o acto pelo qual o abade verifica se a liquefacção ocorreu faz com que o relicário portátil seja virado várias vezes, proporcionando assim a agitação necessária.
Outro sangue milagroso é o de São Lourenço (San Lorenzo), na cidade de Amaseno (a sul de Roma), que se liquefaz todos os anos, no dia 10 de agosto. Tive oportunidade de o observar bem: trata-se de uma substância normalmente sólida, mas que derrete quando a temperatura passa dos 30 graus, como acontece no verão. Na minha reprodução usei óleo de coco e corante vermelho.
A composição química da relíquia napolitana só poderá ser identificada pela análise do conteudo da ampola, porém tal análise é proibida pela Igreja. No entanto, bastaria apenas testar se o conteúdo se liquefaz batendo ou aumentando a temperatura.

As curas de Lurdes


Falemos agora das curas milagrosas de Lurdes (Lourdes, em francês), que deveriam ser as mais fiáveis, pois foram examinadas por três comissões, duas médicas e uma eclesiástica. Desde 1848, foram reconhecidos 70 milagres oficiais. Mas devemos ter em conta os seguintes factos: 
– Nos primeiros 50 anos (1848 -1909) ocorreram 38 curas. Entre 1910 e 1959: 25. De 1960 a 2009: 4. Assim, o número de milagres diminuiu constantemente.
– Nos primeiros 50 anos não existiam radiografias nem análises laboratoriais reais, portanto os diagnósticos das doenças eram muito incertos.
– As percentagens de curas “inexplicáveis” em Lurdes são iguais às que ocorrem nos hospitais, mas estas são menos visíveis.
– As curas nunca são – como seria necessário para um milagre – imediatas, perfeitas e completamente sem tratamento.
– Muitas vezes os documentos não são suficientes e os exames médicos ou diagnósticos são questionáveis (mesmo recentemente, como no caso da italiana Delizia Cirolli).
– Na maioria dos casos, tratava-se de doenças funcionais e não orgânicas (auto-sugestão e placebo).
– Muitas vezes, se confia demais nas testemunhas.
– Geralmente leva muito tempo até que o milagre seja reconhecido.
– É muito difícil – ou mesmo impossível – para quem quer fazer investigação obter fichas clínicas completas.
– O ex-diretor da Comissão Médica de Lurdes, Patrick Theillier, afirmou: “Uma pessoa doente só pode recuperar de uma doença que seja suscetível de desaparecer. O milagre não violenta a Natureza. Nunca aconteceu que uma criança com síndrome de Down fosse curada em Lurdes. Concluindo, o que se designa de milagre pode, em termos médicos, ser chamado de desaparecimento espontâneo dos sintomas.”

O Sudário de Turim


O Sudário de Turim é um pano de linho mundialmente famoso, atualmente guardado na catedral de Turim, e que os católicos tradicionalmente consideram o pano no qual o cadáver de Jesus Cristo foi amortalhado. A autenticidade da relíquia é contestada. Segundo alguns, foi realmente a mortalha de Jesus. De acordo com outros, é uma falsificação medieval. A Igreja (teoricamente) mantém uma posição neutra a este respeito e deixa os cientistas livres para decidir.
O Sudário é um lençol de linho com dimensões de 1,41 x 1,13 metros. Traz, nos dois lados, uma imagem escura de um homem torturado. (Vestígios de queimaduras também marcavam a imagem). Há vários indícios de que o sudário não é autêntico:
– As verdadeiras mortalhas palestinianas do século I DC eram totalmente diferentes. Naquela época os cadáveres eram amarrados e usavam-se vários panos. Além disso, os panos eram feitos de materiais diversos e confecionados com uma forma de tecelagem diferente.
– Para fabricar o Sudário de Turim foi utilizado um tipo de tecido que não existia até à Idade Média.
– O Sudário só apareceu no ano de 1355, numa pequena capela em França. Imediatamente após esse aparecimento, foi exibido para atrair os peregrinos e apresentado como verdadeiro. Por causa disso, dois bispos proibiram a sua exposição. (Existem documentos e mesmo bulas do papa da época, relacionados com essa proibição). Assim, mesmo a Igreja durante vários séculos não o considerou autêntico.
– Em 1988, três dos laboratórios mais experientes do mundo dataram-no com carbono-14. Resultado: é do século XIV!
– Um corpo humano real não deixa traços como os do Sudário: o traço é deformado e não matizado, mas é limpo.

O Sudário foi estudado, em 1978, e as características da imagem humana foram especificadas. Assim:
– A imagem é clara, matizada e não distorcida
– A imagem não se deve ao pigmento (ou seja, a grânulos sólidos), mas sim às fibras amareladas devido à decomposição da celulose (térmica ou química). O amarelecimento existe apenas na parte superficial dos fios de linho. No entanto, foram encontrados microvestígios de ocre (= terra argilosa, geralmente pulverulenta, de amarelada a avermelhada, usada como pigmento para tintas)
– A imagem mostra “negatividade”: descoberta graças à primeira fotografia, em 1898, na altura da revelação das placas fotográficas, parecia uma imagem real, porque as partes proeminentes do rosto se tornam brilhantes e as menos proeminentes, escuras.
– A imagem não fluoresce.
– Os vestígios de sangue não são matizados como a imagem corporal, mas são nítidos.

Todas essas características são consideradas inexplicáveis e, como tal, não criáveis por um artista. “O sudário é um objeto “impossível”, portanto um milagre”. Será possível? Eis as minhas hipóteses para o testar:
– A imagem original deveria ser mais visível, no início. Um artista não criaria uma imagem muito fraca.
– O Sudário foi criado esticando um pano sobre um corpo e esfregando-o com ocre seco. – Para a face foi utilizado um baixo-relevo para evitar deformações.
– Marcas de sangue e chicote foram pintadas posteriormente.
– Com o passar dos anos, o pigmento degradou-se.
– As impurezas contidas no pigmento provocaram o amarelecimento superficial das fibras.
– Este processo deve produzir automaticamente um pseudonegativo, uma imagem superficial, rasa e fraca, sem distorção e sem pigmento.
– Explicam-se os microvestígios de ocre remanescente, a falta de deformação e as características das manchas de sangue.

Os meus testes práticos foram, portanto, os seguintes:
– Esfregar, sobre um corpo real, o ocre, contendo vestígios de ácido (para simular impurezas de pigmento).
– Usar um baixo-relevo para o rosto.
– Adicionar marcas de chicote e sangue com um pincel.
– Meter no forno, a 125 graus e durante 2 horas, para simular antiguidade, com a minha “Máquina de fazer Sudários”!
– Lavar o pano para retirar o pigmento.
– Adicionar queimados, vestígios de sangue, etc.

O resultado apresenta uma imagem matizada, vestígios de sangue não matizados, pseudo-negatividade, imagem superficial devido ao amarelecimento das partes superficiais dos fios, etc. Portanto, não é verdade que o Sudário tenha propriedades que não podem ser reproduzidas!

Mais maravilhas


Na religião católica há casos de hóstias que sangram, como o milagre de Bolsena (1263). No entanto, muitos casos semelhantes também ocorreram em pão, bolos, etc. geralmente no verão. Por exemplo:
– Sangramento de hóstias em Paris (verão de 1290); Bruxelas (junho de 1369 e julho de 1379); Wilsnack, Alemanha (agosto de 1383); Sternberg, Alemanha (julho de 1492); Berlim (verão de 1510);
– Sangue num bolo, Stennwitz, Alemanha (julho de 1693);
– Sangue no pão, Chalons, França (setembro de 1792);
– Sangue na polenta (comida de milho), Legnaro, Itália (agosto de 1819).
Somente em 1819 se entendeu que se tratava de um microrganismo (Serratia marcescens) que cresce em alimentos ricos em amido, se o clima for quente e húmido, e que produz um pigmento vermelho. Assim nasceu a microbiologia. O milagre é facilmente reproduzido se se colocar algumas gotas da cultura Serratia numa fatia de pão.

Estátuas a chorar (e a beber)


Como pode uma estátua chorar? Às vezes há explicações naturais: a humidade condensa, a cola para os olhos derrete, etc. Por exemplo, numa estátua do Padre Pio, a água condensou-se por dentro e pingou de uma fenda (do cotovelo!). Por vezes ocorre trapaça. Houve um caso na Sicília de uma estátua a transpirar óleo. A polícia escondeu uma câmara e foi observada uma mulherzinha com uma garrafinha a derramar óleo na testa da estátua. Nestes casos, bastaria fechar a estátua num recipiente hermético, com câmaras e boa iluminação, para ver se ela realmente continuava a chorar.
Um caso famoso foi o de Civitavecchia, perto de Roma (1995): uma estatueta de Nossa Senhora parecia chorar lágrimas de sangue. Testemunhas viram-na chorar novamente. Mas cada testemunha relatou coisas diferentes, e as fotografias mostraram que nenhuma gota de sangue apareceu na face da estátua, exceto as primeiras. Além disso, o sangue era masculino e os donos da estátua sempre se recusaram a analisar seu DNA. Deixo as conclusões consigo.
É possível fazer uma estátua chorar sem tocá-la (este é um truque de laboratório, que reproduzi em entrevistas na TV). Numa estátua de gesso, oca, o líquido é guardado em um pequeno reservatório e escorre dos olhos. Os buracos não podem ser vistos porque estão cobertos por uma pequena quantidade de gesso que, por ser poroso, permite que o líquido escorra lentamente após alguns minutos.
Em 1996, muitas estátuas, em templos hindus, aparentemente bebiam leite de uma colher que lhes era levada à boca. O ‘milagre’ durou alguns dias. Em breve se percebeu que o leite não entrava realmente na boca, mas na verdade escorria pelo corpo da estátua.

Ligações:

www.luigigarlaschelli.itwww.cicap.org

https://sindone.weebly.com

https://skepticalinquirer.org/

Luigi Garlaschelli é um químico (agora reformado) e membro de C.I.C.A.P.  (italiano: Comitato Italiano per il Controllo delle Affermazioni sulle Pseudoscienze – português: Comissão italiana para o Controlo  das Afirmações nas Pseudociência).

Texto da revista Ateismo, nº 37, cedido por Luís Ladeira, tradutor.

7 de Julho, 2021 João Monteiro

Padre Eugénio Jalhay (3)

Texto de Onofre Varela, publicado na Gazeta Paços de Ferreira.

O difícil caminho da vida de Eugénio Jalhay começou a desenhar-se em 1910 com o advento da República que muitos políticos portugueses reclamavam. A agitação do fim da Monarquia e a ascenção dos sanhosos republicanos, fez soprar maus ventos para o clero. A legislação do novo regime recuperou uma lei de 28 de Agosto de 1767 (entre outras do tempo do Marquês de Pombal) determinando que os Jesuítas fossem obrigados a sair imediatamente do país e dos seus domínios. Assim se iniciou um itinerário de fugas para o sacerdote-arqueólogo Eugénio Jalhay. O advento da República com forte carga anti-clerical, obrigou muitos religiosos, mormente Jesuítas, a saírem do país.

Eugénio Jalhay iniciou, então, um itinerário de fugas, quando completou 20 anos de idade. Partiu para Tortosa (Espanha) e aí estudou Filosofia. Foi depois para Lovaina (Bélgica) onde completou os estudos e chegou a ser professor num colégio em Jette-Saint-Pierre – fundado por padres jesuítas expulsos da novel República Portuguesa, perto de Bruxelas, fundado por padres jesuítas expulsos da novel República Portuguesa – que recebia estudantes fugidos de Portugal.

Os ventos da História continuavam a soprar mal, não só para os clérigos portugueses, mas para toda a Europa. Nos Balcãs, em 1913, terminara uma guerra que durou um ano e criara um caldo conflituoso de interesses vários englobando dois grupos em constante estado de tensão: a Tríplice Aliança, contemplando Alemanha, Austria-Hungria e Itália, e o bloco composto por França, Grã-Bretanha e Rússia. Os jogos de interesses políticos acabaram por conduzir ao assassinato do arquiduque herdeiro Francisco Fernando da Áustria, em Sarajevo, no dia 28 de Junho de 1914, o que ditou a causa imediata da Primeira Guerra Mundial, com a declaração das hostilidades da Alemanha à Rússia e à França, em Agosto. Logo a seguir a Inglaterra e o Japão declararam guerra à Alemanha. Estavam lançadas as cartas para o jogo que os homens mais adoram: a guerra!… E os alemães invadiram a Bélgica e o norte da França.

Eugénio Jalhay parecia ter sido talhado para estar nos locais errados na hora certa, e o seu sotaque de estrangeiro despertou curiosidade e desconfiança aos alemães invasores. Foi confundido com um espião, prenderam-no e quiseram fuzilá-lo. Com a preciosa e vital ajuda de alguém que o sabia inocente daquela acusação, conseguiu fugir para Inglaterra e daí partir para Espanha, fixando-se num colégio Jesuíta em Los Placeres (Pontevedra, Galiza). Em 1916 Jalhay estava em La Guardia (A Guarda, Galiza) participando em escavações arqueológicas na povoação castreja do monte de Santa Tecla (Teca ou Tegra) na margem direita da foz do rio Minho. Em 1919 foi ordenado sacerdote em Burgos (Castela e Leão, Espanha). Voltou à Bélgica em 1920 e quatro anos depois regressou a La Guardia iniciando colaboração na revista jesuíta Brotéria (excelente revista! Quero registá-lo aqui). Em Portugal as convulsões republicanas de década e meia direccionaram a política para outras saídas, e a 28 de Maio de 1926 foi imposta uma ditadura militar que deixou a República e a Democracia à espera, dormitando à porta do Parlamento (sendo acordada com ramos de cravos vermelhos 48 anos depois, numa madrugada libertadora e sem tiros, em Abril de 1974). O católico António de Oliveira Salazar iniciava a sua ascenção em cargos políticos pela porta do Ministério das Finanças, e em 1928 os Jesuítas foram convidados a regressar a Portugal, estabelecendo-se, então, a Redacção da revista Brotéria, em Lisboa.

Foi assim que Eugénio Jalhay voltou à sua terra natal depois de 18 anos de fugas. Assumiu a direcção da Brotéria, e a sua costela de investigador da História dos povos de antanho levou-o a frequentar reuniões na Associação dos Arqueólogos.

(Continua)

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico) OV

6 de Julho, 2021 João Monteiro

Padre Eugénio Jalhay (2)

Texto de Onofre Varela, publicado no jornal Gazeta Paços de Ferreira. Segunda parte do texto.

Finda a Primeira Grande Guerra, Afonso do Paço regressa a Portugal no final do ano de 1918, ou princípio de 1919 e, em 1929, dedica-se à Arqueologia, actividade que o apaixonava paralelamente à vida de militar, e que exerceu até ao fim da sua vida (1968).

Já quanto ao padre Jalhay, ele começou por frustrar todas as minhas tentativas de conhecimento da sua vida, pois nenhum dos documentos adquiridos no Museu me falava dele! Recorri às bibliotecas municipais de Paços de Ferreira e do Porto, mas nos livros consultados não encontrei referências biográficas da misteriosa figura do padre Eugénio Jalhay, que se apresentava, cada vez mais, como enigma difícil de desvendar, começando pelo seu próprio nome: Jalhay, que sabia ser apelido belga (mo dissera a minha mulher, que o conheceu quando ela era uma miúda que distribuía água aos sedentos estudantes de arqueologia em tempo de campanhas de escavação na Citânia). Por isso me interrogava: o que levou um padre belga a deslocar-se para o Sul da Europa e fazer Arqueologia em Sanfins de Ferreira na década de 1940?!…

Numa segunda visita ao Museu, e em conversa com o seu guarda e guia (um membro da família Brandão) comentei a dificuldade em conseguir a informação que procurava. Fiquei a saber, então, que, para além das publicações adquiridas na minha primeira visita, o Museu nada mais tinha sobre a Citânia e os seus arqueólogos. Porém, havia uma pequena brochura editada em 1962 (presumo que se tratava de uma separata da Revista de Arqueologia) que prestava homenagem à memória do padre Jalhay, com texto de Mário Cardoso, e desde há muito tempo esgotada. Talvez nela encontrasse respostas para as minhas questões… e ele tinha um exemplar na sua biblioteca particular. Emprestou-mo… e dissipou-se o mistério. Ali mesmo, num canto do museu, li aquele texto de um só fôlego, e tomei notas.

Eugénio Jalhay, padre jesuíta de descendência belga… nasceu em Lisboa em 1891!… Ora bolas!… Lá se foi o devaneio do enigma por água abaixo!…

O percurso de vida deste sacerdote-cientista foi um rosário de incidentes ditados pelas convulsões da História, o que o obrigou a constantes deslocações.

Eugénio Jalhay foi um dos 14 filhos de Adelaide de Ascenção Rogeiro Montez e de Emile Auguste Jalhay (belga), industrial de fiação estabelecido na Covilhã. Entrou no Noviciado de Barro da Companhia de Jesus, perto de Torres Vedras, quando contava 14 anos. É desse tempo o seu encontro com o apelo da Arqueologia.

Certo dia acompanhou o padre Paulo Bovier Lapierre na descoberta de elementos paleolíticos em Monsanto, Lisboa. Nessa primeira deslocação a um campo arqueológico teve a dita de conhecer o arqueólogo José Leite de Vasconcelos que o animou a dedicar-se à Arqueologia. Foi essa a semente que germinou, deu fruto e condicionou toda a sua vida paralela à de sacerdote, levando-o à tarefa de fazer ressuscitar povoados castrejos, mostrando a História que a erosão dos séculos e o verde da Natureza ciosamente encobriam. (Continua)

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico) OV

Citânia de Sanfins – Paços de Ferreira. Foto de Henrique Matos. Fonte: Wikipedia
5 de Julho, 2021 João Monteiro

Padre Eugénio Jalhay (1)

Texto de Onofre Varela publicado na Gazeta de Paços de Ferreira. Primeira parte.

No último número da Gazeta deliciei-me com o artigo “Conhecer o nosso Património” da professora Rosário Rocha, do Agrupamento de Escolas de Frazão. Conta-nos um passeio cultural que fez com os seus alunos da Turma F do Centro Escolar da Arreigada, visitando, com guias qualificados, o Mosteiro de Ferreira, o Museu Arqueológico da Citânia de Sanfins e as ruínas da própria Citânia que justifica a existência do Museu. 

Termina o seu artigo dizendo que “deveria ser ‘obrigatório’ que todas as turmas fizessem o roteiro cultural do nosso concelho”. Aplaudo a ideia!… O conhecimento de História deve começar por sabermos a nossa própria história, estudando a nossa família e o lugar onde moramos. Os primeiros passos a dar no sentido de sabermos História, podem (e devem) ser dados na nossa terra, à nossa porta e na nossa casa. Todos nós temos a nossa própria História que, obrigatoriamente, devemos conhecer. É a partir dela que ficamos a saber quem, e como, somos nós… e que podemos (sobretudo, devemos) respeitar gentes e lugares.

O artigo da Professora Rosário Rocha lembrou-me o interesse que alimentei pela Citânia de Sanfins de Ferreira há mais de 50 anos, e espevitou-me no sentido de contar aqui a minha experiência. Por isso vou-me distanciar do tema que habitualmente abordo nestas páginas (a defesa do Ateísmo) para me dedicar, por quatro edições, à Citânia de Sanfins e a um dos seus importantes arqueólogos, o padre Eugénio Jalhay.

Desde 1969 que, pelo casamento, estou ligado à família Brandão de Sanfins de Ferreira, detentora de brasão que pode ser visto, talhado em pedra, a encimar o portão da Casa da Igreja, ou Solar dos Brandões, edifício do século XVIII que foi residência da família. Em 1947 foi cedida uma sala do Solar para a instalação do Museu Arqueológico da Citânia, e depois a autarquia comprou a casa e a quinta.

Na década de 1960 tive o meu primeiro contacto com a Citânia, que visitei demoradamente, e com o Museu Arqueológico onde adquiri brochuras que me informaram sobre a história daquele lugar arqueológico datado do I milénio AC. Desde logo a minha atenção recaiu sobre dois nomes ligados às escavações da Citânia: o Tenente-coronel Afonso do Paço e o Padre Eugénio Jalhay, os grandes impulsionadores da investigação arqueológica, responsáveis pelo retomar das escavações nas campanhas de 1944/45 (e nos anos 50) naquele lugar histórico situado no planalto da freguesia de Sanfins, na Cumieira (ou Cumeeira, de cume), que já tinha sido escavado pelos arqueólogos Francisco Martins Sarmento, José Leite de Vasconcelos e Félix Alves Pereira, em 1895.

Naturalmente interessei-me por saber mais sobre aqueles dois arqueólogos que redescobriram a Citânia e a mostraram ao mundo. O militar nasceu em Viana do Castelo em 1895, fez os seus estudos em Viana, em Braga e na Faculdade de Letras em Lisboa. Em 1917 foi incorporado no Exército e, um ano depois, em plena Primeira Guerra Mundial (que já estava perto do fim [1914-1918] mas ainda ninguém o sabia), tomou parte na célebre e trágica batalha de La Lys, travada a norte da fronteira Franco-Belga (onde se destacou o nosso soldado-herói Milhões [Aníbal Augusto Milhais], natural de Murça) no dia 9 de Abril de 1918, sob o comando do general Gomes da Costa. Com os soldados exaustos e em vésperas de serem rendidos por tropas inglesas, o Exército Português sofreu grande número de baixas, e Afonso do Paço foi aprisionado pelos alemães, tendo sido libertado em Dezembro de 1918. Só muitos anos depois desta libertação é que entra em cena a personalidade que nos interessa para estas crónicas: o padre Eugénio Jalhay.

(Continua)

 (O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico) OV

Citânia de Sanfins, Paços de Ferreira. Foto de Henrique Matos. Fonte: Wikipedia.
29 de Abril, 2021 João Monteiro

Feliz 25 de Abril!

Texto publicado no Facebook, no dia 25 de Abril

A data que hoje se comemora é importante para todos os cidadãos democratas, inclusive para os ateus, agnósticos, livres-pensadores e humanistas.

Representa o fim de um regime ditatorial e a passagem para um regime democrático; o fim do lema “Deus, Pátria, Família”; o fim do autoritarismo; o fim de uma polícia política e da tortura de inocentes; o fim de uma guerra colonial que praticamente ninguém queria; o início de uma época de esperança, acrescida de uma vontade de reconstruir a sociedade; a promoção de uma cada vez maior capacitação individual; passou a dar-se prioridade ao investimento na educação, na saúde (com a criação do SNS) e na ciência; a conquista de diversos direitos, incluindo o da livre-expressão, e muito, muito mais. E ainda mais o que falta fazer.

Hoje é dia de celebrar: Viva a Democracia e viva a Liberdade!

21 de Abril, 2021 João Monteiro

Lei da separação do Estado das Igrejas

Assinala-se hoje, dia 20 de Abril, os 110 anos em que foi aprovada, por decreto, a Lei da separação do Estado das Igrejas. Entre os seus princípios destacam-se: a liberdade de consciência; a religião católica deixar de ser a religião do Estado; ninguém poder ser perseguido por motivos de religião; a república não reconhecer, não sustentar, nem subsidiar culto algum; ou ainda a proibição de realização de reuniões políticas nos lugares habitualmente destinados ao culto de qualquer religião.

A lei original estava organizada em torno dos seguintes sete capítulos:

I – Da Liberdade de consciência e de culto;
II – Das corporações e entidades encarregadas do culto;
III – Da fiscalização do culto público;
IV – Da propriedade e encargos dos edifícios;
V – Do destino dos edifícios e bens;
VI – Das pensões aos ministros da religião católicos;
VII – Disposições gerais e transitórias

E a mesma lei pode ser consultada aqui, no site da Associação República e Laicidade.

Apesar destas conquistas sociais, elas não permaneceram no tempo, tendo sido alvo de sucessivas reformas. Como sabemos, a história é feita de avanços e recuos. Hoje, a Igreja Católica tem privilégios (originados pela Concordata e outra legislação); o Estado paga a capelães dos hospitais, das forças armadas e das prisões; e as escolas públicas e universidades promovem comunhões pascais e cerimónias (como temos denunciado). Há pois muito por reivindicar, como temos vindo a fazer junto das entidades competentes, e como continuaremos a fazer.

Afonso Costa assina a Lei da separação do Estado das Igrejas.
Foto do Arquivo Municipal de Lisboa.