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Autor: Ludwig Krippahl

4 de Março, 2009 Ludwig Krippahl

Treta da Semana: os Mamadus.

Esta semana celebro a promoção do Professor Mamadu (1), anteriormente Mestre Mamadu (2). Ou, se calhar, é outro Mamadu que sempre foi professor (3). Ou outro (4). As moradas são todas diferentes. Não sei se é um a fugir dos maus olhados (ou dos antigos clientes), se é uma invasão de Mamadus ou se é a versão vidente-astrológica do jogo da vermelhinha.

Mas nota-se um franco progresso. Enquanto Mestre, Mamadu era «especialista em destruição de trabalhos de bruxaria e especialista em retorno de afecção, mesmo casos muito complicados». Quanto aos «problemas de amor, dinheiro, saúde entre outros», ajudava a resolvê-los, mas não era sua especialidade (2). Agora está muito melhor. «Especialidade de todos os trabalhos ocultos»(1). É raro encontrar um especialista em tudo, mesmo entre os professores, por isso o esforço de se especializar em todos os trabalhos ocultos fá-lo merecer o novo título.

Alguns podem questionar como é que ele pode ser especialista em tudo se o termo denota uma dedicação especial a alguma parte. Ou como é que ele sabe ser especialista em todos os trabalhos ocultos se os trabalhos são ocultos. Não terá escapado algum, mais escondido? Infelizmente, muitos há que não questionam nem isto nem o resto dos disparates que esta gente vende.

A culpa, em parte, é da reverência excessiva com que lidamos com as crenças. A nossa sociedade enaltece, favorece e protege quem acredita em disparates. Seja que disparate for. Que uma virgem deu à luz, que um condutor de carroças falava com o criador do universo, que este criou o universo em meia dúzia de dias. Acreditar ou, especialmente, representar uma crença, dá estatuto social. Dizer que uma crença é disparatada é visto como uma ofensa ou agressão. E até se considera um direito dos pais treinar os filhos a crer no que quer que os avós tenham impingdo aos pais pelo mesmo processo.

O problema não é só a ignorância. É certo que é mais fácil enganar quem está menos informado, mas mesmo um analfabeto tem relutância em aceitar que o Mamadu resolve tudo e mais alguma coisa só por se dizer «Dotado de Dom hereditário». Mas se uma pessoa é treinada desde cedo a desligar o cérebro quando lida com certas afirmações está muito mais vulnerável. Mesmo que seja formada e informada.

Todos os pais deviam pensar nisto quando transmitem crenças injustificadas aos seus filhos. Pode não parecer nada demais ensinar a criança a acreditar que a hóstia se torna no corpo de um deus ou que o sacerdote merece respeito especial porque sim. Salvo raras excepções, crenças como essas são inofensivas. Mas não é inofensivo treinar alguém a aceitar crenças desta maneira, sem considerar os porquês. É isto que o torna vulnerável aos Mamadus. E Mamadus há muitos, com muitos nomes e profissões. Há Mamadus Alexandra Solnado, Cristina Candeias e Paulo Cardoso. Há Mamadus Jim Jones, David Koresh e Shoko Asahara. Há Mamadus Joseph Ratzinger, Ali Khamenei e Tenzin Gyatso. São muito diferentes, para todos os gostos e feitios, mas são todos Mamadus. São todos especialistas no negócio, pouco oculto, de explorar a credulidade dos outros.

1- Classificados Lisboa, Astrólogo – Grande Medium Vidente
2- Páginas Amarelas, Mestre Mamadu
3- Directório IOL, Professor Mamadu (em Lisboa).
4- Directório IOL, Professor Mamadu (no Porto).

Publicado também no Que Treta!

3 de Fevereiro, 2009 Ludwig Krippahl

E o problema é …?

A propósito do primeiro aniversário do Portal Ateu, o Alfredo Dinis escreveu um post curioso de título «O problema fundamental do ateísmo». O curioso é que não se percebe qual é o problema.

«O ateísmo militante, como é o do Portal Ateu, tem um problema fundamental. Se a sua crítica da religião for irrelevante, como é a constante crítica baseada em factos anedóticos, o seu efeito na religião é positivo, uma vez que critica o que de facto é criticável […] Se, pelo contrário, a crítica da religião feita pelo ateísmo militante for objectiva e inteligente, e se dirigir a aspectos realmente fundamentais, uma tal crítica só pode ser benéfica para a religião, uma vez que desafia os crentes a reavaliar criticamente esses aspectos.»(1)

Ora, se este ateísmo é bom por um lado e bom por outro parece-me que o problema não estará no ateísmo.

Um problema é confundir crença com religião. As crenças são pessoais. Um crente pode acreditar que a hóstia se transforma no corpo de Jesus e outro ao lado acreditar que é só uma bolacha de farinha num ritual meramente simbólico. Mas as religiões são instituições. O catolicismo diz que a hóstia se torna no corpo de cristo e não o propõe como uma crença opcional. Eu concordo que é bom criticar qualquer crença porque a crença ou ganha fundamento por resistir à crítica ou cede o lugar a uma crença melhor. Mas a avaliação crítica é inconveniente para as religiões porque não podem mudar de crença tão facilmente.

Outro problema é assumir que há uma distinção objectiva entre os «factos anedóticos» e os «aspectos realmente fundamentais» das religiões. Se fingirmos que só há uma religião podemos criar essa ilusão, pois aí o fundamental é apenas o que a religião oficialmente diz para se acreditar. Mas se considerarmos todas as religiões a ilusão desaparece. Para um católico o Papa é fundamental e o criacionismo anedótico. Mas para o evangélico é precisamente o contrário. E para o ateu é anedótico o que não for devidamente fundamentado, o que põe no mesmo saco a suposta origem divina do Corão e a alegada ressurreição de Jesus.

Mas o problema principal é não compreender o objectivo dos ateus. É mesmo esse. Motivar os religiosos a avaliar criticamente as suas crenças. Porque o crente que o fizer verá que tem apenas duas opções. Se decide julgar a sua crença religiosa por critérios objectivos que sejam igualmente válidos para pessoas com ou sem qualquer fé então torna-se ateu. De todas as opiniões que se pode formar acerca de qualquer religião o ateísmo é a única que trata essa religião da mesma maneira que trata as outras. Nem o agnosticismo consegue isso porque, tal como os crentes, também os agnósticos são ateus em relação a todas as religiões excepto uma pequena minoria.

E a alternativa que preserva a crença religiosa tem que invocar critérios subjectivos, mostrando ao crente que o fundamento da sua religião é apenas a sua preferência pessoal. Segue aquela religião porque é dessa que gosta mais, tal como prefere este clube ou aquele estilo de música. E isto também é bom. Este exercício de liberdade pessoal elimina o problema da religião se arrogar de ter valor normativo propondo que aceitar o seu dogma é uma virtude que todos devem almejar. Ou de se arrogar de ser factualmente verdadeira e fonte de conhecimento, como se algum padre conseguisse distinguir a água benta da água por benzer.

Aquilo que para o Alfredo é um “problema fundamental do ateísmo militante” para mim é uma virtude. Fazer pensar acerca das crenças. Porque o mundo que eu quero não é um mundo de ateus. Isso era uma chatice e limitava-me a um par de posts por semana. O que eu quero é um mundo onde o dogma religioso seja visto como um gosto em vez de um facto. Quero um mundo onde a fé seja uma preferência em vez de a julgarem uma virtude. E quero um mundo onde as religiões se submetam à escolha livre de cada um em vez de submeter liberdades e pessoas ao supostos caprichos de deuses imaginários.

1- Alfredo Dinis, O problema fundamental do ateísmo. A propósito do primeiro aniversário do Portal Ateu.

Em simultâneo no Que Treta!

24 de Janeiro, 2009 Ludwig Krippahl

Extremismo, só com moderação.

Foi marcado o julgamento do casal Neumann, do Wisconsin (1). Cristãos dedicados, sempre trataram a sua filha Kara com oração em vez de medicação. Infelizmente, a criança tinha diabetes e morreu em Março do ano passado. Tinha 11 anos de idade e nenhuma culpa pelos genes e pais que o deus dos seus pais lhe dera. Se condenados, os devotos Neumann podem cumprir até 25 anos de prisão. Não ajuda a Kara mas talvez evite que façam o mesmo a outro filho.

Felizmente, a maioria dos crentes não é idiota e a maioria das crianças não tem doenças mortais. Por isso a conjunção dos dois é rara. Mesmo assim, só nos últimos 25 anos a estupidite religiosa matou trezentas crianças nos EUA. É muito menos rara do que devia ser.

Mas também é preocupante que as crenças dos fundamentalistas e dos moderados sejam as mesmas. Ambos crêem que os filhos nascem com a religião dos pais, que as coisas acontecem segundo a vontade divina, que um livro sagrado é a palavra do seu deus e assim por diante. A grande maioria de crentes sensatos distingue-se da minoria de doidos apenas por levar as mesmas crenças menos a sério.

Pode bastar. Há muita gente que bebe bagaço ou fuma haxixe sem ser alcoólico ou drogado. Mas tem que ser pouquinho de cada vez. Também as crenças religiosas são para consumir com moderação por serem tão fortes. Há poucas religiões light. Um deus algo-poderoso que dê uns toques aqui e ali não satisfaz. Os crentes querem um Deus Todo-Poderoso, com maiúsculas e tudo, capaz de controlar todo o universo. Uma crença que os aqueça por dentro. Mas disso só se pode tomar um calicezinho aos domingos e dias de festa. E nunca quando se tem crianças doentes em casa.

1- New York Times, Trials for Parents Who Chose Faith Over Medicine

Em simultâneo no Que Treta!

21 de Janeiro, 2009 Ludwig Krippahl

Esclarecendo

O Alfredo Dinis pediu alguns esclarecimentos acerca do slogan da campanha ateísta inglesa, «There’s probably no God. Now stop worrying and enjoy your life». O primeiro é «Não consigo entender por que razão a improbabilidade da existência de Deus deverá tornar as pessoas mais felizes [ou] a existência de Deus deverá torná-las infelizes. Alguém me quer explicar isto?» (1)

A existência de deuses não depende da nossa felicidade, tal como o estado do tempo não depende da minha vontade de ir à praia. São questões de facto e não de preferência. Se chover, chove. Se não houver deuses, não há. E tudo indica que não há. Durante milénios apontaram deuses nas doenças, no nascer do Sol, na criação da Terra e na origem da vida. Foi sempre falso alarme. Os deuses de hoje são tão ténues e distantes que nem se lhes distingue existência de inexistência. Seja para nossa felicidade ou tristeza, provavelmente não existem.

O Alfredo continua. «Sou cristão, acredito na existência de Deus e isso faz-me feliz. […] Porque deveria tornar-me ateu?» A mensagem não é “torne-se ateu”. É não se preocupem com a vossa religião e, sobretudo, com as dos outros. Não se preocupem se um homem quer casar com um homem ou se uma mulher quer ser sacerdote. Não se preocupem com aquilo que só vos preocupa por motivos religiosos.

«Se eu fosse ateu ou simplesmente agnóstico, ficaria preocupado com o slogan. É que não me dá a certeza de que Deus realmente não existe. Por que razão viver nesta incerteza me faria feliz?»

Se o meu objectivo fosse crer especificamente numa certa crença também queria sentir certeza. Mas não me interessa crenças falsas. O que quero é a crença que melhor corresponda à realidade, seja que crença for. Quero chegar à verdade ou o mais próximo que conseguir. Quero acreditar que está um dia de sol só quando estiver mesmo em vez de apanhar uma chuvada convencido que está bom tempo. Por isso não abdico da dúvida. É a dúvida que me faz procurar a verdade. A certeza só convida a ficar pelo caminho.

«O slogan pressupõe ainda que o mundo se divide em duas partes: a dos ateus, que são felizes e gozam a vida ao máximo, e a dos crentes que vivem infelizes e incapazes de tirarem o máximo partido da vida.»

Não é entre ateus e crentes. O slogan sugere uma divisão entre aqueles para quem a fé é uma opção pessoal, que cada um terá ou não conforme queira, e os outros que vêem a sua religião como um dever. Regras a cumprir. Os padres não podem casar, deve-se confessar os pecados, as mulheres não podem celebrar missa, nunca negar o Espírito Santo e assim por diante. A mensagem dos ateus é que a religião é opcional. Venerem o que quiserem, comam hóstia se gostarem, com ou sem manteiga, e casem-se com quem entenderem que ninguém, nem sequer Deus, tem nada a ver com isso.

Aprecio estas perguntas contundentes que o ateísmo estimula. É justo e gratificante que pessoas como o Alfredo confrontem os ateus com as suas dúvidas. Porque este diálogo crítico com os ateus contrasta com o ecumenismo melindroso e hipócrita que aconchega religiões. Os líderes de cada religião apregoam às outras o respeito mútuo, a compreensão e a coexistência de “diferentes verdades”. Mas dentro da sua congregação sabem que quando há duas versões da mesma verdade pelo menos uma tem que ser treta. José Policarpo gerou polémica afirmando o óbvio porque aquelas palavras eram para consumo interno mas foram publicitadas como produto de exportação. Isto violou o acordo sagrado das religiões nos países democráticos. Não criticar para não ser criticado.

Com os ateus não há melindres. Se o José Policarpo tivesse aconselhado as raparigas católicas a não casar com ateus ninguém ligava. E se o Alfredo Dinis confrontasse evangélicos ou muçulmanos com este empenho já se tinha metido num monte de sarilhos que nem Jahve sabia onde acabavam. Mas nós não temos telhados de vidro. De todos os que rejeitam Jesus como deus, Maomé como profeta ou o Papa como infalível os ateus são os únicos sem uma crença a jeito para apedrejar em retaliação. Não é possível dissuasão ou détente. É por isso que consideram o ateísmo o maior drama da humanidade. Mas o diálogo assim é mais interessante.

1- Alfredo Dinis, 19-1-09, autocarros cheios de equívocos.

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9 de Janeiro, 2009 Ludwig Krippahl

Evolução: Por toda a parte

É comum, e errado, pensar a evolução como progredindo para um fim. A sequência do peixe que se transforma em anfíbio, réptil, mamífero e finalmente em homem sugere que o peixe já planeava unhas e cabelo. Mas a evolução é mais como um balde de berlindes despejado contra a parede. Em retrospectiva, cada encontrão e ressalto parece ter servido para pôr aquele berlinde exactamente ali. Mas ia parecer o mesmo qualquer que fosse o sítio ou o berlinde. O filme de cada berlinde faz parecer que havia um plano a seguir mas a visão do conjunto desengana-nos.

Assim, podemos distinguir dois problemas. Um é compreender as nossas origens sabendo já que existimos. É traçar, em retrospectiva, o trajecto que o berlinde percorreu. A física e a teoria da evolução explicam o que levou aquele berlinde ou aquela espécie a estar ali e a ser como é. Bem diferente é ponderar o que temos de especial para que a evolução conspirasse criar-nos. Esse é um falso problema. É como perguntar o que tem o berlinde azul de especial para que todos os outros o empurrassem exactamente para onde calhou. Nada. Se repetíssemos a experiência nem aquele berlinde ia parar ali nem nós seriamos como somos.

Isto não reduz a física e a teoria da evolução à narrativa do passado. A curto prazo podemos prever com detalhe as trajectórias dos berlindes ou as variações das características nas populações. O que faz a incerteza eventualmente dominar as estimativas é a complexidade dos sistemas, não a natureza das teorias. E há aspectos previsíveis mesmo a longo prazo. Podemos prever aproximadamente a distribuição dos berlindes pela sala em função da altura a que despejamos o balde, da espessura da alcatifa ou dos obstáculos que há no chão. E como olhos, pernas, asas e mandíbulas evoluíram independentemente várias vezes, podemos prever que se repetíssemos a evolução da vida na Terra, essas características iriam surgir de novo*.

Outro falso problema é haver seres vivos cada vez mais complexos. A vida surgiu com microorganismos simples que se juntaram em organismos multicelulares e eventualmente deram florestas, baleias e nós. Parece que uma tendência misteriosa os empurrou para a complexidade. Mas a tendência, tal como nos berlindes que se espalham pela sala, é apenas que a vida se espalhe pelas configurações que se reproduzem com sucesso. E a vida também começou contra a parede, encostada ao mínimo de complexidade abaixo do qual não é possível competir como ser vivo. Dali só havia um lado para onde se espalhar. De qualquer forma, ainda hoje quase todos os seres vivos são bactérias. Salvo raras excepções, a vida continua encostada à parede.

A evolução não conduz a vida a um destino ordenado. Espalha-a caoticamente por todos os cantos e feitios em que esta prolifere, revelando que, contrariamente ao que se acreditou durante muito tempo, o universo não foi feito a pensar em nós. E isto incomoda alguns. Como ao berlinde que desse graças pela posição privilegiada que supunha merecer, também a muita gente incomoda saber que somos o que nos calhou pelo entornar do balde. Além disso, a evolução não é só algo que aconteceu. Está a acontecer. Os berlindes espalham-se com o balanço da queda e param em pouco tempo, mas a evolução é empurrada pela energia de uma estrela com cinco mil milhões de anos pela frente.

Por isto, a teoria da evolução é incompatível com um propósito inteligente para a nossa origem. Alguns tentam conciliar a teoria da evolução com um plano divino propondo que a evolução foi apenas o mecanismo que o criador escolheu para nos criar, mas isto não faz sentido. Estamos a meio do processo e não é coisa a que recorra quem sabe o que quer e como o obter. Para pôr o berlinde azul exactamente naquele canto não se despeja o balde do outro lado da sala. A evolução, como método de criação inteligente, só faria sentido se o criador não soubesse bem o que queria e pusesse tudo a mexer a ver se dava alguma coisa interessante.

Mas o pior em tentar conciliar a teoria da evolução com uma criação inteligente é não perceber uma parte importante do que a teoria nos diz. Que não é preciso inteligência nem propósito para a vida surgir, evoluir e tornar-se inteligente. Basta herança com modificação e tempo para que, mais cedo ou mais tarde, a vida se espalhe o suficiente para encontrar um canto de onde possa compreender a sua origem.

* Assumindo que já havia triploblastos (quase todos os animais excepto alguns como alforrecas, esponjas e corais). A evolução é mais complexa que um balde de berlindes, e pode ter sido uma grande sorte terem surgido certas coisas como eucariontes e embriões com três camadas.

Em simultâneo no Que Treta!

7 de Janeiro, 2009 Ludwig Krippahl

Deus e o tabaco

Ontem começou a Atheist Bus Campaign, uma campanha publicitária organizada por ateus do Reino Unido, com o slogan «Deus provavelmente não existe. Agora deixe de se preocupar e goze a vida»(1). Não há consenso acerca do “provavelmente” entre os ateus. Richard Dawkins, por exemplo, preferia “quase de certeza”. Mas segundo Tim Bleakley, o director da firma de publicidade contratada para esta campanha, foi necessário incluir o “provavelmente” para evitar uma violação do código publicitário. Porque, para os religiosos, dizer simplesmente que Deus não existe «seria enganador»(2).

Em rigor, isto é correcto. Não podemos saber nada com certeza absoluta. Por exemplo, não podemos ter a certeza absoluta que o tabaco prejudica a saúde. Se expusermos quinhentos ratos a fumo de tabaco e estes sofrerem mais de cancro que os quinhentos do grupo de controlo, o melhor que podemos dizer é que provavelmente o tabaco causa cancro. Por muitos ratos, ou humanos, expostos ao tabaco, há sempre a possibilidade do resultado ser por outra coisa qualquer. A recolha de dados confirmatórios aumenta a confiança mas nunca dá certeza absoluta. Resta sempre algum “provavelmente”.

Mas eventualmente a confiança é tão alta que é melhor dizer simplesmente que o tabaco causa cancro no pulmão. Vir escrito nos maços que o tabaco provavelmente prejudica a saúde é que seria enganador. O “provavelmente”, se bem que correcto em teoria, na prática sugere uma incerteza maior que essa possibilidade irredutível de ter havido algum erro.

A conclusão que Deus não existe merece mais confiança que os malefícios do tabaco. O Deus judaico-cristão, omnipotente e omnisciente, é incompatível com o universo que conhecemos. As leis da física não permitem omnipotência nem omnisciência, e isso sabemos com mais certeza do que sabemos que o tabaco faz mal. Os crentes contrapõem que não se pode concluir que o deus deles não existe porque, sendo omnipotente e omnisciente, pode esconder-se onde entender e fazer milagres sem ninguém ver. A física pode ser milagre, o Big-Bang pode ser milagre, a origem da vida pode ser milagre. Não se vê a mão de Deus mas ela está lá, invisível.

Mas então também o cancro dos ratos pode ter sido obra de Deus e afinal o tabaco não faz mal nenhum. Se não podemos concluir que Deus não existe quando tudo sugere outras causas, também não podemos concluir que o tabaco faz mal só por ser isso que as evidências indicam. Se calhar o cancro é um milagre invisível. O cancro, e tudo o resto. Porque se não rejeitamos estas hipóteses impossíveis de testar ficamos condenados à ignorância e incapazes de decidir. Qualquer coisa que aconteça, por muito óbvia que pareça a sua causa e por muito fácil que seja de explicar, pode ter sido milagre de Deus, da Virgem, do São Nãoseiquantas ou até de gremlins invisíveis.

O tabaco faz mal e Deus não existe. Provavelmente, sim, mas esse provavelmente é tão insignificante que mais vale poupar os pulmões e os joelhos.

1- Atheist Bus Campaign
2- New York Times, 6-1-09, Atheists Decide to Send Their Own Message, on 800 Buses

Em simultâneo no Que Treta!

2 de Janeiro, 2009 Ludwig Krippahl

Acreditas?

A pergunta “acreditas no Pai Natal?” é normalmente interpretada como referindo a hipótese do Pai Natal existir. O inquirido responderá de acordo com a sua opinião acerca da existência do Pai Natal. Mas a pergunta “acreditas no teu pai?” é diferente. O mais provável é o inquirido assumir a existência do seu pai como um dado aceite e responder de acordo com a relação que tem com o pai. Se confia nele ou não.

Este é um problema no diálogo com os crentes. Acreditar num deus, para muitos crentes, não é considerar verdadeira a hipótese que esse deus existe. Essa hipótese parece nem merecer consideração. Acreditar, para estes crentes, é confiar no deus cuja existência assumem implicitamente. Daí a confusão quando questionamos o fundamento desse acreditar.

Acusam-nos de argumentar acerca desse deus. Não é nada disso. O deus é apenas parte da hipótese e o argumento acerca da justificação para crer que ele existe. Mas a interpretação do crente é que se questiona a sua confiança nesse deus, vendo na conversa uma discussão sobre os atributos do deus. Se é infalível, se é benevolente, se ditou todos aqueles capítulos e versículos e assim por diante. E, por isso, o que tenta justificar é essa confiança. Invoca o fundamento para a moral, o sentido da vida, a relação pessoal com o salvador e uma data de coisas que só seriam relevantes se assumíssemos que existe e estivéssemos a decidir se merece confiança. Mas nada disto serve para concluir que esse deus existe, e essa é a questão que queremos focar.

Em parte compreende-se esta confusão porque a educação religiosa foca o dever de confiar no deus e esconde a questão fundamental da sua existência. Na catequese não explicam às crianças porque é que o deus que calhou aos seus pais há de ser o único e verdadeiro. Dizem-lhes que é e seguem em frente. O objectivo é incutir-lhes crenças e não ensiná-las a questionar. Mas isto só explica a confusão inicial. Uma vez esclarecido que o que questionamos é a hipótese do tal deus existir o problema devia ficar resolvido.

Com os fundamentalistas resulta. Mais ou menos. Apresentam argumentos incoerentes em como a informação codificada no ADN supostamente demonstra que Jesus é filho de um deus e nos salvou a todos, ou disparates do género. Isto não justifica acreditar que o deus deles existe, mas pelo menos não fogem da pergunta e quase reconhecem a necessidade de encontrar indícios objectivos para fundamentar a sua posição. Quase porque, no final, invocam sempre a fé e os milagres.

Talvez pelo ridículo em que caiem os fundamentalistas, outros crentes preferem evitar a pergunta aproveitando a ambiguidade do termo “acreditar”. Por muito que se insista no problema de justificar a crença que aquele deus existe arrastam sempre a conversa para a confiança que têm nele. Nas teologias mais elevadas, o ar rarefeito inspira razões para além da razão e outras inefabilidades como desculpa para se confiar em algo que nada indica existir. E não tentam sequer demonstrar que existe.

A investigação sistemática e objectiva permitiu-nos compreender muitas coisas. Não só acerca de objectos materiais ou relações de causa e efeito mas também que se formam partículas subatómicas sem que nada o cause, que a matéria distorce o espaço-tempo, que num sistema formal complexo não se pode derivar tudo o que é verdadeiro sem derivar contradições e que há números infinitos infinitamente maiores que outros números infinitos. Esta abordagem serve para resolver problemas dos mais concretos aos mais abstractos. É por isso revelador que, quando se chega à existência de deuses, os fundamentalistas se estampem contra os factos e os outros crentes fujam da pergunta invocando «outras formas de saber» que ninguém explica o que sejam.

Se existisse, o omnipotente e caridoso criador do universo seria como um elefante na casa de banho. As evidências seriam tão esmagadoras que nem o mais céptico dos ateus teria coragem de duvidar. Que ao fim de tantos séculos só haja desculpas vagas e disparates sem qualquer vestígio claro desse ser é evidência suficiente para concluir que ele não existe.

Publicado em simultâneo no Que Treta!

27 de Dezembro, 2008 Ludwig Krippahl

Torce palavras

A teologia safa-se pelo domínio da ambiguidade, e Anselmo Borges deu uma bela lição disto no DN de dia 20. A Associação Humanista Britânica está a organizar uma campanha publicitária a favor do ateísmo, com o slogan «Deus provavelmente não existe. Agora deixe de se preocupar e goze a vida» (1). Anselmo Borges diz que é uma ideia interessante porque obriga «as pessoas a pensar nas questões essenciais, e Deus é uma dessas questões decisivas.» (2)

Questões são perguntas. Como é que surgiu o universo? O que nos causou? Como podemos saber? O Anselmo torce o sentido de “questão” e mete uma resposta pela porta do cavalo. Porque Deus não é uma questão. O deus do Anselmo é apenas uma de muitas tentativas de responder estas perguntas. E levanta uma questão importante. Porque é que há de ser o deus dele e não um dos outros? Para responder a isto, a teologia torce as palavras conforme dá jeito.

«Afinal, também há razões para não crer, mas, quando se pensa na contingência do mundo, no dinamismo da esperança em conexão com a moral e na exigência de sentido último, não se pode negar que é razoável acreditar no Deus pessoal, criador e salvador, que dá sentido final a todas as coisas. Numa e noutra posição – crente e não crente -, entra sempre também algo de opcional.»

Crer ou não crer é uma escolha. Mas a palavra “razões” é usada aqui de duas formas subtilmente diferentes. Quando somos razoáveis baseamo-nos em razões partilhadas. Quando usamos razões só nossas não somos razoáveis aos olhos dos outros. É razoável largar o pote se está demasiado quente mas não por me dar na gana ou por medo que dê azar. As razões para não crer em Deus vêm do que observamos à nossa volta. Cada criança que fica sem pernas por pisar uma mina dá uma razão forte para rejeitar o tal ser benevolente que lhe podia ter segredado “cuidado, aí há minas”*. A imensa indiferença do universo perante o nosso sofrimento torna razoável a descrença. Mas a crença em Deus, como o próprio Anselmo admite, vem apenas de desejos pessoais como a esperança e a exigência de um sentido último, e não é por desejos que se forma uma opinião razoável acerca do que existe ou não existe.

Depois, o amor. «Agora que está aí o Natal, é ocasião para meditar no Deus que manifesta a sua benevolência e magnanimidade criadoras no rosto de uma criança. Jesus não veio senão revelar que Deus é amor, favorável a todos os homens e mulheres» (mas não às crianças que pisam minas).

Usamos a palavra “amor” para referir o que sentimos por alguém ou para referir esse alguém. Esta ambiguidade é ideal para a teologia. No primeiro sentido “Deus é amor” dá uma evidência directa que Deus existe. Todos sentimos amor e os crentes amam Deus. O sentimento existe. E torcendo a palavra para o outro lado concluem que o objecto desse amor também existe. É um disparate atraente. É disparate porque o objecto do nosso amor pode nem se parecer com aquilo que julgávamos amar. Mas é atraente porque preferimos esquecer essas experiências dolorosas e fingir que não é assim. O amor não só cega como enfraquece as ideias.

E quando torcem o amor com a ciência têm uma combinação perfeita. «A existência de Deus não é objecto de saber de ciência, à maneira das matemáticas ou das ciências verificáveis experimentalmente.» Ou seja, a existência de Deus não é ciência por não ser de cariz experimental. E Deus é amor, que sabemos não ser científico. Mas isto só encaixa torcendo as palavras. Porque o amor é experimental; é experimentando-o que o conhecemos e é pela experiência quotidiana que sabemos quem amamos e quem nos ama. E o amor só não é científico porque nos falta uma teoria detalhada. Falta-nos as palavras para modelar o amor. Falta-nos o logos do amor.

Mas isso é o que a teologia finge ser. O logos de Deus que, segundo dizem, é amor. A teologia é a teoria do amor inventada por celibatários que baralham as palavras e negam a experiência. Não admira que mesmo ao fim de tantas voltas não tenham chegado a lado nenhum.

*A desculpa para isto é a vontade livre. É um argumento válido, e aceito-o. Mas apenas nos casos em que a própria criança pôs lá a mina.

1- CNN, 23-10-08, Atheists Run Ads Saying God ‘Probably’ Doesn’t Exist
2- Anselmo Borges, DN, 20-12-08, ”Provavelmente Deus não existe”

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14 de Dezembro, 2008 Ludwig Krippahl

O amor ao próximo

A homossexualidade é crime em 86 países. Nestes, o sexo consensual entre adultos, em privado, pode levar à prisão ou até à pena de morte. Nos próximos dias a França irá propor às Nações Unidas uma declaração condenando a criminalização da homossexualidade. «Exortamos os Estados para tomar todas as medidas necessárias, em particular legislativas ou administrativas, para garantir que a orientação ou identidade sexual não possam, em circunstância alguma, servir de base a acções penais, em particular execuções ou penas de prisão.» (1)

Esta declaração conta já com o apoio de toda a Europa. Toda? Não! Um pequeno estado povoado de irredutíveis católicos ainda resiste ao avanço da decência. O Monsenhor Celestino Migliore, observador permanente da Santa Sé nas Nações Unidas, diz que apesar da Igreja Católica se opor à «discriminação injusta» dos homossexuais, uma declaração da ONU poderia pressionar os estados que não reconhecem o casamento entre homossexuais. Há que escolher, portanto, o mal menor. Mais vale deixar que metade dos países do mundo prendam e executem pessoas pela sua orientação sexual do que arriscar que outros se sintam pressionados a conceder os mesmos direitos civis a todos os casais que queiram viver uma vida em conjunto. Isso sim seria uma tragédia.

Felizmente se preservou o espírito cristão de amor ao próximo. Foi difícil, mas graças a Carlos Magno, às cruzadas, ao diálogo sempre amigável entre as várias variantes do cristianismo e à Santa Inquisição, sobreviveu até hoje esta visão do mundo que leva todos os cristãos a considerar acima de tudo a dignidade da pessoa humana em vez das politiquices e jogos de poder. Um bem haja a todos e que o vosso deus vos dê a eternidade que merecem.

1- ZNag, 12-12-08, Tell Obama, Clinton: Act Now for UN Decriminalization
Outras fontes:
Times Online, Vatican opposes de-criminalising same sex unions
Guardian, A watershed for gay rights

Em simultâneo no Que Treta!