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Dia: 21 de Setembro, 2006

21 de Setembro, 2006 jvasco

Dar a outra face

A mensagem da Bíblia é, no seu global, extremamente bélica e intolerante.
Tanto no Antigo Testamento, como no Novo Testamento.

Jesus é esclarecedor: «não vos venho trazer a Paz, mas a Espada».

Apesar de dezenas e dezenas de citações que comprovam estas minhas alegações (e apesar das maiores igrejas cristãs terem todo um historial que as ilustra em actos, guerras e agressões e respectivas fundamentações teológicas), todos os cristãos que conheço acham tais alegações disparatadas.

Tentam refutá-las com base em interpretações distorcidas que traiem a mensagem bíblica. Caso a caso, citação a citação, é fácil desconstruir tais patéticas interpretações que tentam negar o óbvio: o carácter bélico da mensagem bíblica.

Outra linha de argumentação, e esta já merece mais crédito, é a exposição de outras passagens que evocam a mensagem oposta. Apelam à Paz e à piedade. Em actos concretos.
É óbvio que tais passagens são dezenas de vezes menos frequentes que as restantes (e não exagero: é mesmo outra ordem de grandeza!). Mas as mensagens não se medem «ao litro»: se bem que tal disparidade na frequência dos apelos para a guerra e para a paz não possa ser ignorada, a verdade é que cada um dos apelos à paz merece ser estudado com cuidado, para que se poder concluir algo a respeito do teor mais ou menos bélico da Bíblia.

Uma das mais importantes afirmações que Jesus faz a este respeito é a seguinte: «Se alguém te bater na face direita, oferece-lhe também a esquerda» (Mt. 5, 39).

Importa debruçarmo-nos sobre esta passagem. Ela é muito importante, uma das que mais influencia a percepção (distorcida) que as pessoas têm daquilo que é a mensagem de Jesus. Quando eu era mais novo (e cristão) achava estas palavras ousadas, revolucionárias, e seu conteúdo profundo. Muita gente acha isso…

…E não se apercebe que são um enorme e patético disparate.

Se mais pessoas seguissem este conselho, o mundo seria pior. Os agressores teriam mais incentivos (e menos riscos) para agredirem. Os agredidos eram mais humilhados e injustiçados. Os povos conheceriam melhor o domínio, o saque e a pilhagem, e os corruptos, os invasores, os saqueadores teriam ainda menos quem lhes fizesse frente.

Se a Inglaterra, a Rússia, e os Estados Unidos tivessem dado ouvidos a Jesus, não saberemos quantas suásticas teriam sido edificadas, após o domínio nazi que teria sido incontestado. É um exemplo insignificante, pequeno, no imenso oceano de exemplos em todas as escalas, em tantos episódios no dia-a-dia. Se muitos seguissem tal conselho, as guerras e agressões não iriam diminuir, aumentariam alimentadas por tão delicioso incentivo.

Não há razões para preocupação, é claro. A verdade é que as palavras de Jesus são tão disparatadas, que não existe sequer o risco de serem levadas a sério, mesmo por aqueles que as acham tão belas. Mesmo esses facilmente se apercebem que não as podem pôr em prática, pois o bom senso sobrepõem-se, e existe uma noção intuitiva de que a justiça não poderia prevalecer dessa forma (e isso dificilmente seria louvável) e de que as consequências de tal atitude seriam o abuso incondicional por parte dos piores entre os piores. Muitos podem continuar a gostar de tal passagem, desligando-a completamente daquilo que seria afectar a sua vida por tais palavras. E bendita incoerência essa!

Não me interpretem mal: não venho aqui defender que nunca se deve perdoar, ou outras teses bélicas do género propaladas na Bíblia (lembram-se do «olho por olho»?). Há casos em que se deve retaliar, e outros em que se deve perdoar – qualquer incondicional será disparatado. Os estudiosos da ética e da teoria dos jogos têm chegado a resultados muito interessantes a este respeito. O jogo do prisioneiro, tão simples, tem dado bases sólidas para que o conhecimento avance neste domínio e se chegue cada vez mais longe.

Há casos em que a agressão deve ser perdoada, e outros em que se deve retaliar. Mas no que respeita à informação, o ideal é que o agressor espere sempre a retaliação, para que diminua o seu incentivo para agredir. O erro presente neste disparate de Jesus não está, portanto, apenas ao nível do incondicional como ao nível da informação. Ou seja: não é apenas errado perdoar sempre, e em qualquer situação, como também é indesejável que os agressores esperem que tal aconteça.

Assim sendo, depois de tantos incentivos que a Bíblia dá para a guerra e para agressão, nesta passagem apelando à Paz, só não se incentiva mais a guerra porque, por ser tão disparatada, está fora de questão que seja posta em prática.

21 de Setembro, 2006 Carlos Esperança

Islão e democracia

Em sociedades em que a religião é obrigatória o condicionamento da opinião pública começa na infância pela manipulação das crianças e pela fanatização que conduz ao martírio e ao crime.

O Islão de hoje não é diferente do catolicismo medieval mas este, graças à descoberta da cultura helénica e do direito romano, encontrou forças para usar a razão e contestar a fé, para fazer a Reforma e retirar ao Papa o poder temporal.

O direito divino, como origem do poder, foi substituído pela legitimidade democrática e a secularização tornou as sociedades abertas, tolerantes e plurais. A fé foi remetida para esfera privada e as convulsões surgem quando os crentes pretendem fazer proselitismo através do aparelho de Estado.

Hoje, é o protestantismo evangélico que lidera o fundamentalismo cristão nos EUA, em clara violação da Constituição e da vontade dos seus fundadores. A Igreja Ortodoxa tem dificuldade em aceitar a separação do Estado e tem uma exegese de pendor francamente reaccionário.

Mas é no Islão que os constrangimentos sociais e a violência clerical empurra os crentes para a irracionalidade da fé e a aceitação acrítica do Corão. Como há muito desistiram de questionar o que o clero diz que o Profeta disse e quer, há um permanente conflito com a modernidade e uma violência incompatível com a civilização.

A laicidade que libertou o Ocidente da tutela clerical é impensável onde o clero islâmico tem o poder absoluto no campo económico, político, militar, assistencial e ideológico.

Tal como durante a inquisição era impossível contestar a autoridade do Papa e o seu poder, também nas teocracias islâmicas é impossível discutir a desigualdade da mulher, o adultério, a poligamia, o repúdio, a guerra santa e o pluralismo.

As religiões são, por natureza, totalitárias e avessas à modernidade. Ao atribuírem aos livros sagrados a vontade literal de Deus ditada a um eleito como versão definitiva, acaba com a discussão e com a vida do réprobo enquanto a separação entre a Igreja e o estado se não afirmar.

É esse passo que parece estar cada vez mais longe nas teocracias islâmicas e que propicia o confronto entre a fé e a modernidade.

Contrariamente ao que têm afirmado os bispos católicos os árabes não temem a liberdade religiosa que, segundo sondagens, é o que mais apreciam no Ocidente. São os clérigos que se assustam com a possibilidade de verem os seus crentes a renunciar à fé.

A liberdade, a democracia e, sobretudo, a perda de direitos sobre a mulher, assusta-os. É por isso que não renunciam à sharia, que não dispensam uma boa decapitação a quem renuncie à fé, uma alegre lapidação à mulher adúltera e uma divertida amputação para quem roube.

O que está em curso é uma luta desesperada contra a modernidade por uma civilização falhada.

Publicado também no Ponte Europa.

21 de Setembro, 2006 Palmira Silva

Selam, mais um fóssil do Australopithecus afarensis

A última edição da revista Nature descreve a descoberta da equipa liderada por Zeresenay Alemseged, um paleoantropólogo do Max Planck Institute for Evolutionary Anthropology em Leipzig. A equipa encontrou o fóssil mais completo de um exemplar do Australopithecus afarensis, a que chamaram Selam ou DIK-1-1, o fóssil com 3,3 milhões de anos de um bébé de 3 anos encontrado em Dikika na Etiópia, uns quilómetros apenas do sítio arqueológico em que foi descoberto em1974 o fóssil de Lucy, o primeiro exemplar encontrado desta espécie.

Lucy é o membro mais antigo da linha de bípedes que levou, cerca de quatro milhões de anos mais tarde, aos humanos modernos. E, como veremos, os homínideos «Lucy» apresentavam uma série de características morfológicas intermédias entre os outros primatas e os humanos.

Aproveito o ensejo para corrigir um equívoco muito disseminado, que os «humanos são descendentes dos macacos», equívoco muito aproveitado pelos criacionistas embora seja totalmente errado. Os homínideos não são descendentes dos macacos; aproximadamente há 5 milhões de anos atrás, a árvore filogenética humana e a dos chimpanzés dividiu-se em ramos distintos a partir de um ancestral comum. Os macacos modernos, são deste modo apenas os nossos parentes evolutivos próximos, não são nossos ancestrais. Assim esse axioma utilizado e abusado pelos criacionistas é tão absurdo, como todos os seus argumentos, como dizer que alguém é descendente de um primo.

Voltando ao Selam, nomeado a partir da palavra etíope para paz, embora muitos mais exemplares do A. afarensis tenham sido descobertos, este exemplar de um bébé afarensis, cuja idade foi estimada em 3 anos, é o mais completo descoberto, e inclui a escápula ou omoplata, osso nunca encontrado antes. A escápula do A. afarensis apresenta características intermédias entre a escápula dos homens e macacos modernos que permitem concluir que este nosso antepassado remoto estava a perder as suas capacidades de locomoção nas árvores.

E de facto, uma análise do esqueleto de Lucy tinha permitido chegar à conclusão que Lucy exibia bipedalismo. Os membros inferiores do Australopithecus afarensis não eram simiescos e são quasi indistinguíveis dos membros inferiores humanos. Nos humanos, por exemplo, os ossos do calcanhar têm uma almofada alargada composta de osso esponjoso que absorve o impacto gerado pelo bipedalismo. O calcanhar do esqueleto de Lucy exibe esse osso esponjoso enquanto os macacos, que se movem apoiando-se nas articulações interfalângicas (dedos), não apresentam essa almofada óssea. O fémur de Lucy, embora proporcionalmente mais longo que nos humanos modernos, exibia uma série de características claramente humanas. Nos humanos, o colo do fémur apresenta um centro esponjoso que absorve o impacto de caminhar e uma camada mais espessa de osso compacto no topo da articulação para suportar o esforço. Nos macacos, este arranjo é totalmente diferente; o colo do fémur é quase completamente sólido, apresentando apenas um pequeno núcleo central de osso esponjoso.

O fémur dos macacos apresenta uma quilha larga ao longo da parte superior do colo onde se une com o receptáculo da anca. O fémur do Australopithecus afarensis é idêntico neste arranjo ao fémur humano. É na cintura pélvica, no entanto, que as características humanóides e o bipedalismo do Australopithecus afarensis são mais claramente evidentes. Na realidade, a cintura pélvica do Australopithecus afarensis, com o seu sacro proporcionalmente mais largo que o dos humanos modernos, era mais adequada ao bipedalismo que a nossa. Nos humanos um sacro tão largo estreitaria o canal de parto e tornaria impossível o parto, o que não acontecia no Afarensis que apresentava uma dimensão craniana muito inferior.

Este trilho de pegadas de hominídeos, descoberto em 1978 por Mary Leakey numa camada de cinzas vulcânicas com mais de três e meio milhões de anos, num sítio próximo de Laetoli na Tanzânia, mostra claramente mostram que a espécie que deixou estas marcas caminhava de forma bípede eficientemente, como um humano. Não há evidência de um polegar divergente como apresentado pelos macacos, e foi encontrado um arco plantar muito similar ao humano. Um modelo do pé do A. afarensis reconstruído a partir dos ossos fósseis recuperados, encaixa-se perfeitamente nas pegadas de Laetoli.

O osso hióide (o Hyoideum ou osso da língua) do Selam, por outro lado, apresenta mais semelhanças com o análogo nos chimpazés modernos o que implica uma capacidade de vocalização muito próxima da dos macacos e que um longo caminho evolucional foi percorrido para o desenvolvimento das nossas capacidades discursivas.

Não há ainda reacções dos criacionistas a esta descoberta que comprova claramente o carácter transicional do Afarensis, provavelmente vão continuar a negar todas as características humanóides do Afarensis e pretender que este é apenas mais um macaco e que as pegadas de Laetoli foram feitas não pelo A. Afarensis mas por um homem igualzinho aos homens modernos, criado à imagem de Deus!