Loading

Dia: 19 de Setembro, 2006

19 de Setembro, 2006 Carlos Esperança

Bento XVI e o Imperador Hirohito

O imperador Hirohito, em 1945, coagido pelo general Mc Arthur, teve de dizer aos japoneses que não era Deus, o que levou ao suicídio de muitos que ficaram desolados.

Também Bento XVI, a reboque dos acontecimentos, acabou a negar a infalibilidade papal em que os mais devotos acreditavam.

19 de Setembro, 2006 Ricardo Alves

Jónatas Machado e a Teoria da Informação

«Esta é a quarta parte da série dedicada ao criacionismo, cujos argumentos foram tão bem resumidos pelo artigo de Jónatas Machado (JM) no jornal «O Público» do passado dia 8. Neste episódio veremos o problema da informação:

«Os criacionistas mostram que as mutações acumuladas, além de não criarem informação genética nova, destroem o genoma.»

Em primeiro lugar, temos o problema do sentido em que se usa a palavra «informação». JM ilustrou bem este problema num comentário neste blog:

«Assim como a informação contida nos livros não se confunde com as páginas […] também a informação contida no DNA não se confunde com os ácidos nucleicos […] A mesma pressupõe uma linguagem que dê sentido às sequências (de nucleótidos e demais informação não linear) e lhes faça corresponder operações celulares específicas.»

Isto está errado. Não há uma linguagem que faz corresponder ao Oxigénio e ao Hidrogénio a operação de se juntar para formar água. O que se passa é que as moléculas destes gases reagem espontaneamente em certas condições. Este é exactamente o caso com o DNA, o RNA, as proteínas, e tudo o que acontece dentro das células. São reacções mais complexas, que se encadeiam em grandes redes de processos químicos, mas que se regem pelos mesmos princípios que regem a combustão, a formação de gotas de óleo na água, a dissolução do açúcar na limonada, ou qualquer outro processo deste tipo.

É certo que se fala muitas vezes do código do DNA, do DNA como a linguagem da vida, e outras metáforas. Mas é como os glóbulos vermelhos a falar uns com os outros nos desenhos animados «Era Uma Vez a Vida». É uma forma engraçada de explicar conceitos básicos, mas claramente inadequada a uma análise mais rigorosa. Vamos então pôr de parte esta metáfora infeliz. Estamos a falar de moléculas, e não de textos escritos ou de glóbulos vermelhos que falam.

Pela definição de Ralph Hartley, a quantidade de informação numa sequência é tanto maior quanto mais símbolos diferentes possa ter e quanto mais longa for a sequência. Por isso o DNA tem mais informação quanto mais nucleótidos tiver, ou seja, quanto mais longo for. É bem conhecido que mutações podem alongar o DNA, quando um acidente na cópia faz com que um trecho seja repetido. Assim podemos ver que a informação, neste sentido, aumenta facilmente com as mutações.

É claro que podemos dizer que duplicar trechos não aumenta informação, pois são apenas cópias do que já lá estava. O que nos traz às medidas de informação de Shannon e Kolmogorov. Simplificando, a informação contida numa sequência é tanto maior quanto mais «desordenada» for a sequência. Isto é abusar da teoria, mas não quero tornar a discussão demasiado técnica, por isso vou apelar à intuição do leitor para explicar por exemplos. Imagine uma sequência de 30 As:

AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA

Isto podia ser escrito de uma maneira mais simples. Por exemplo:

30xA

Ou seja, a sequência de 30 símbolos na verdade tem apenas a informação duma sequência de 4 símbolos. Em geral, quanto mais estruturada e organizada a sequência, mais fácil é de a comprimir em sequências menores, e por isso menos informação ela tem. Uma sequência sem ordem nem estrutura nenhuma, como por exemplo:

AjdljAkSyEFekdHRpJxjwlJqalYaEEoTpCYlsUWlkalkf

não pode ser facilmente abreviada. A consequência disto é que as mutações aleatórias na verdade aumentam a quantidade de informação no DNA, aumento este que serve para alimentar o processo de selecção natural, pelo qual muitas sequências são eliminadas por não beneficiarem os organismos.

Outro problema no argumento que JM apresenta é, mais uma vez, confundir indivíduos com populações. Como JM elaborou num comentário:

«Na verdade, a criação de novas espécies é o resultado de perdas de informação […]. Dentro da categoria Caninus Familiaris [sic] existem 400 subespécies de caninos, embora todos eles com menos informação genética do que os seus ascendentes.[…]. Pensemos, por exemplo, num cão Chihuahua totalmente «careca». […] Embora se esteja aqui perante um caso de adaptação, a verdade é que se está perante perda de informação genética.»

O exemplo que JM escolheu é particularmente infeliz. No Chihuahua há dois tipos de pelagem: pêlo curto e pêlo comprido. O que era no lobo ancestral apenas um fenótipo, tornou-se pela evolução em dois fenótipos diferentes. Todo este exemplo dos cães demonstra um ganho nítido de informação. Inicialmente havia uma espécie, um ancestral recente do lobo cinzento. Hoje em dia há ainda o lobo cinzento (Canis lupus), e a sub-espécie do cão doméstico (Canis lupus familiaris). Como JM diz, e muito bem, as 400 raças diferentes são sub-espécies, e pertencem todas à mesma espécie. Ora o que JM parece dizer é que só se perdeu informação quando uma espécie como o lobo cinzento evoluiu para o lobo cinzento mais todas as 400 raças de cães domésticos. Parece-me que o que JM fez foi, inadvertidamente, dar um excelente exemplo de como a evolução pode aumentar a quantidade de informação presente numa população de organismos. O erro aqui foi (mais uma vez) o de confundir o processo de transformação de populações, que é a evolução, com aquilo que se passa isoladamente com indivíduos (e.g. o coitado do Chihuahua careca).

Outro ponto importante é que a mutação não é um processo dirigido, mas pode ser revertido por outra mutação. Se A sofre mutação e fica B, B pode sofrer mutação e ficar A novamente. Se uma mutação acrescenta um trecho ao DNA, outra pode apagá-lo. Qualquer que seja a definição que usemos, se uma mutação diminui a informação, a mutação contrária aumenta-a. Por isso é obviamente falsa a afirmação que a mutação apenas diminui a informação.

Em suma, quando virem este argumento criacionista da informação, lembrem-se de três coisas:

1- Nem os glóbulos vermelhos falam, nem o DNA é uma linguagem. Pode ficar giro nos desenhos animados ou alguns livros menos rigorosos, mas não é verdade.

2- A evolução é um processo de populações. Se numa população alguns indivíduos perdem o pêlo, o que interessa é que agora na população passou a haver dois tipos de pelagem em vez de apenas um. Ou seja, mais informação.

3- As mutações são reversíveis. Se muda para um lado também pode mudar para o outro, e por isso é absurdo dizer-se que só podem reduzir a informação.»

19 de Setembro, 2006 Carlos Esperança

O Papa e o Islão

O Papa Rätzinger, mentor ideológico do seu antecessor, é ainda mais conservador, com um pensamento mais estruturado e uma agenda mais apressada.

Frio, inteligente e calculista não podia ignorar o imenso alarido que provocariam as suas palavras, descontadas as proporções, impossíveis de quantificar previamente.

Bento XVI é a réplica católica do protestantismo evangélico neoconservador dos EUA e, salvas as devidas proporções, o expoente máximo da postura homóloga dos próceres do Islão. Não foi por acaso que chamou Constantinopla à actual cidade de Istambul.

Condena o relativismo, não se conformando com o pluralismo. Combate a laicidade e interfere de forma vigorosa nos países de tradição católica para obstar às leis que regulam o aborto, o divórcio, a eutanásia, a contracepção ou o planeamento familiar.

O Papa não é apenas o ideólogo do teoconservadorismo, é agente do combate obstinado à modernidade e arauto do regresso ao concílio de Trento. Críticas acerbas ao budismo e ao hinduísmo, a cruzada contra o laicismo e o combate ao evolucionismo, que considera uma ideologia, fazem de B16 o mais obsoleto hierarca do cristianismo. Da teologia à política, da moral à economia e da ciência à religião, Bento XVI situa-se sempre no campo conservador mais duro, aliando um proselitismo exacerbado e uma inflexibilidade teológica.

A expansão do islamismo na sua forma mais arcaica, com laivos de demência fascista, assusta este Papa que vê os feudos tradicionais em rápida secularização numa Europa que deixou de acreditar em verdades únicas e que mais facilmente se envolve na luta de classes do que em querelas da fé.

Foi a inquietação que, na minha opinião, o precipitou para o confronto. Do outro lado disseram-lhe que o Islão era pacífico, assassinando uma freira, perseguindo cristãos e incendiando igrejas. A intolerância não é monopólio de uma religião, é a tradição ancestral das três irmãs abraâmicas.

O seu grande objectivo foi colocar-se na vanguarda do combate ao terrorismo, urgente e necessário, para reivindicar para o Vaticano os louros de uma vitória sabendo que, em caso de derrota, a democracia e a liberdade morreriam e o cristianismo não sobreviveria.

O conflito entre o Papa e o Islão não nasceu das divergências, surgiu das afinidades.

Publicado também no Ponte Europa.

19 de Setembro, 2006 Ricardo Alves

A asneira de Ratzinger (telegraficamente)

  1. Por princípio, defendo a liberdade de expressão até para os que não me reconhecem esse direito, como é o caso de Joseph Ratzinger.
  2. Não sei se a já famosa passagem bizantina sobre o Islão foi inserida como uma provocação calculada, ou se foi uma amostra da insensibilidade papal. Inclino-me para a segunda hipótese.
  3. As reacções violentas das organizações islamistas legais (Irmandade Muçulmana, Jamaat-e-islami) indiciaram aquilo mesmo que pretendiam desmentir: que o Islão não inculca a contenção e a tolerância pelos erros e pelas provocações.
  4. Nada disto aconteceria com Karol Wojtyla, que era um diplomata prudente e um entusiasta do diálogo inter-religioso.
  5. A violência actual poderia ter sido evitada se B16 tivesse mencionado a violência pretérita da sua igreja.
  6. Provocação ou erro, Ratzinger recuou. Não haverá ninguém, entre os que o imaginam líder de cruzada, que lhe chame «islamófilo» ou «Chamberlain»?
19 de Setembro, 2006 Palmira Silva

Bento XVI e a modernidade II

O mundo islâmico continua inflamado com as palavras do Papa – que Silvio Berlusconi classificou como «uma provocação positiva» – não só com as proferidas na palestra em Regensburg como com o suposto pedido de desculpas.

De facto, muitos consideram-no ainda mais ofensivo que a citação que o motivou, já que Ratzinger não pediu desculpas pelo que disse nem lamentou tê-lo dito, apenas declarou lamentar as reacções dos muçulmanos que não perceberam o seu discurso, isto é, subentende condescendentemente que os muçulmanos são demasiado burros para perceberem uma alocução erudita.

O Papa conseguiu ainda insultar os judeus, não só com a homilia em Castel Gandalfo em que citou Paulo de Tarso sobre a crucificação do mítico Cristo, mas igualmente com o que o rabi-chefe sefardita Shlomo Amar considera uma tentativa de transformar conflitos entre nações ou entre nações e terroristas numa «guerra de religiões».

E enquanto os protestos contra o Papa continuam no mundo islâmico, muitos analistas do Vaticano – e muitos católicos – interrogam-se, tal como eu, se este homem tão inteligente e tão experiente em questões de fé pode ter cometido um erro tão crasso sem ter previsto as consequências. Para além disso, como notam alguns analistas, não há qualquer inconsistência entre as palavras do Papa na referida palestra e a sua visão negativa do Islão, expressa em palavras, por exemplo nos seus livros já referidos, e em acções, como a sua oposição à entrada da Turquia na União Europeia.

Aliás, ontem Bento XVI voltou a defender a importância das raízes cristãs da Europa, ressaltando que «a história e a cultura da Europa têm o selo do Cristianismo», dizendo ser fundamental no alargamento da UE perceber as questões da identidade e dos fundamentos espirituais em que se apoiam os Estados e os povos europeus. «Sem uma verdadeira comunhão de valores, não poderá ser realizada nenhuma segura comunhão de direito». Voltando a enfatizar a necessidade do ensino da religião católica no ensino oficial europeu, necessidade que os dirigentes políticos têm de reconhecer para a inculcação dos valores europeus (só faltou acrescentar face à ameaça islâmica) que para Ratzinger são os valores(?) cristãos.

Isto é, desta vez indirectamente Ratzinger não só voltou a mostrar a sua objecção à entrada da Turquia, país laico (por enquanto) de maioria islâmica, como demonstrou claramente o seu desejo de unir a Europa sob o estandarte do Vaticano (ou pelo menos do cristianismo), isto é, firmar a ideia na concorrência islâmica que a Europa é cristã e que quem não partilha esta religião não é bem-vindo.

Por outro lado, Ratzinger demonstrou mais uma vez que não comunga de facto dos valores europeus, que segundo Ratzinger são assentes no cristianismo. Na realidade, os valores em que assenta a nossa sociedade democrática, tolerante e pluralista foram construídos contra a Igreja católica – sempre com muita oposição pela Igreja – e são de factos valores que Ratzinger nunca aceitou e contra os quais está em cruzada.

Este Papa, que quer redefinir razão de forma a ser apenas coincidente com catolicismo, isto é que se arroga a ser apenas ele o detentor do pensamento racional – e apenas ele porque, como indicam fontes próximas do Vaticano, este Papa absolutista que escreve os seus próximos discursos, não admite críticas e despede ou exila quem não partilha a sua «racionalidade» – que confunde os nossos valores civilizacionais com relativismo, que os continua histrionicamente a condenar como loucura e erro não é o defensor da civilização ocidental contra o «perigo muçulmano» como muitos agora apregoam!

Nós não vivemos um choque de civilizações no sentido de Huntington, vivemos um choque de civilizações em que de um lado estão os fundamentalistas de todas as religiões, unidos numa causa comum contra a modernidade e suas «imoralidades». O choque de civilizações é o choque da civilização moderna com a civilização medieval que o obscurantismo das religiões do livro quer impor. Como bem o demonstram os seus protestos uníssonos contra essa modernidade, seja o reconhecimento da mulher como um ser humano de plenos direitos seja o reconhecimento dos direitos dos homossexuais!

Existem islâmicos que lutam nos seus países pela laicidade e reconhecimento dos direitos humanos, se opõem à sharia e restantes barbaridades. Isto é, existem muitos muçulmanos que lutam pelo mesmo que nós lutamos! Mas as vozes desses muçulmanos racionais serão abafadas se embarcarmos no objectivo deste Papa: unir toda a Europa sob o cristianismo numa espécie de nova Cruzada contra o Islão.

Os prenúncios desta Cruzada surgiram no rescaldo da guerra dos cartoons em que o Vaticano advertiu que se o Islão exige respeito pela sua religião então tem de respeitar as restantes. E, especialmente avisou que «Nós devemos frisar sempre a nossa exigência de reciprocidade» segundo declarações do ministro dos Negócios Estrangeiros do Vaticano, o arcebispo Giovanni Lajolo, ao Corriere della Sera, em uníssono com Bento XVI que numa conversa com o embaixador de Marrocos frisou que a paz só pode ser assegurada pelo «respeito pelas convicções religiosas e práticas dos outros, de forma recíproca em todas as sociedades».

Isto é, Bento XVI pretendia que se o mundo islâmico não desse liberdade religiosa aos cristãos então o mundo cristão em retaliação não deveria igualmente dar liberdade religiosa aos muçulmanos.

Como é óbvio, as pretensões de Ratzinger são incompatíveis com os valores da nossa sociedade e como tal devotadas ao insucesso se este exigisse semelhante disparate aos governos europeus! E o próprio Ratzinger deveria saber perfeitamente que essas pretensões seriam acolhidas da mesma forma que as suas constantes exortações contra os avanços civilizacionais ocidentais: o reconhecimento à saúde reprodutiva das mulheres, da liberdade de expressão, da laicidade, dos direitos dos homossexuais, da independência da ciência dos ditames absurdos do Vaticano, etc..

(continua)