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Dia: 20 de Novembro, 2004

20 de Novembro, 2004 Mariana de Oliveira

O paradoxo do imame

Mohamed Kamal Mustafa, imame da mesquita de Suhail de Fuengirola, em Málaga, foi recebido em quase-apoteose por centena e meia de muçulmanos, gritando «todos somos o imame», que o acompanharam na sua primeira aparição pública depois de ter sido condenado a um ano e três meses de prisão por afirmar, no seu livro «A mulher no Islão», que os golpes que se aplicam às mulheres devem ser dados em «partes concretas do corpo, como os pés e as mãos, […] devendo utilizar-se uma vara fina e leve para que não deixe cicatrizes ou hematomas. Os golpes não deverão ser fortes e duros porque a finalidade é fazer sofrer psicologicamente e não humilhar e mal-tratar fisicamente».

Kamal Mustafa assinalou que está há doze anos em Fuengirola «a tirar as pessoas do mau caminho e levando-as ao bom caminho» e afirmou a sua oposição à violência contra a mulher porque a sua religião não o permite. O que aparentemente são dicas para «como espancar a sua esposa sem deixar marcas» nada mais devem ser do que erros de impressão ou, então, a sensibilidade do comum dos cidadãos é muito susceptível. Na sua aparição esteve acompanhado por mulheres que testemunharam o seu bom carácter e que reiteraram a injustiça da pena que lhe foi aplicada. Não se sabe é se estas mulheres foram sujeitas a algumas das sugestões escritas no livro.

Há que congratular a decisão do terceiro juízo criminal de Barcelona, que entende que os factos dados como provados constituem um delito de incitamento à violência contra grupos em razão do seu sexo. Não se resumindo apenas à questão da violência, o tribunal entendeu que o livro, ao tratar de questões como a menstruação, o parto, o vestuário da mulher ou a obediência, «está presidido por um tom de machismo obsoleto, em alguns casos muito acentuado, discordante com o princípio da igualdade».

Tendo sempre em conta a tolerância que devemos ter com todos os grupos culturais e religiosos diferentes do nosso e que devemos pugnar pela boa convivência social, as nossas leis e princípios fundamentais não devem ser ameaçados por perspectivas contrárias que põem em causa séculos de luta política que permitiram que, actualmente, todos possamos ser iguais e mereçamos o mesmo respeito independentemente do sexo, da cor e da religião.

20 de Novembro, 2004 Carlos Esperança

A ICAR está obsoleta

A ICAR, incapaz de inovar, para manter fiel a clientela, acaba por regressar aos velhos truques numa sociedade alfabetizada. Os milagres muito batidos, o aparecimento da Virgem (a obsessão pela virgindade é esquizofrénica) a uns pobres de espírito a quem transmite recados do seu divino filho, visitas do Cristo, ele próprio, a uns inocentes a quem faz pedidos patetas e um ror de prodígios capaz de adormecer crianças e imbecilizar adultos, são os truques em que reincide para manter a quota de mercado e alargar a base de apoio.

Nem ao menos se lembra de encomendar hóstias com sabores às pastelarias diocesanas, perfumar a água benta com aromas testados à saída da missa pela pituitária dos devotos, temperar a água com que baptiza as crianças, evitando o choro e o resfriado, ou inovar a música e ultrapassar o cantochão. Até os chocalhos que anunciam a passagem da hóstia pelo sacrário estão desafinados e distorcem o som com o verdete acumulado.

Bem sei que o passado pouco recomendável de muitos papas, bispos e padres não ajuda à propagação da fé e à frequência do culto. O livro de referência – a Bíblia – tão arcaico e cruel, tão cheio de incoerências e maldições, não ajuda Deus no seu prestígio, acusado de ser o seu autor.

Que resta, pois, à ICAR, perdido o medo do inferno, desinteressados homens e mulheres do destino da alma, incapaz de conter o consumo de carne de porco à sexta-feira, sem clientes para a compra de bulas e com o dízimo caído em desuso?

Cada vez se encontra em maiores dificuldades para introduzir no código penal o pecado como crime. Não consegue para os pecados veniais uma simples coima nem para os mortais uma pena de prisão. A blasfémia é ignorada em juízo, o divórcio é facilitado e o adultério deixou de interessar o Estado. Apenas o aborto consegue ainda, em países de forte poder clerical, devassar a vida íntima das mulheres e submetê-las ao vexame de um julgamento e ao opróbrio da prisão. Mesmo a apostasia, que é para os pios doutores da ICAR, uma ofensa imperdoável, é uma prática corrente com crescente popularidade.

Assim, resta à ICAR vociferar contra o preservativo, atirar-se à pílula como S. Tiago aos mouros e execrar a investigação em células estaminais. Já poucos lhe ligam quando apostrofa a eutanásia, afronta a proibição do ensino da religião nas escolas do Estado ou injuria os casamentos homossexuais.

Os últimos padres vão enegrecer ao fumo das velas, abandonados pelos crentes, proibidos de ter uma companheira que lhes alivie a solidão, enquanto os bispos e o papa satisfazem o narcisismo com a riqueza e o colorido dos paramentos. Acabam por descrer da virtude da Igreja, da bondade do seu Deus e a renunciar à salvação da alma.