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Dia: 25 de Outubro, 2009

25 de Outubro, 2009 Ludwig Krippahl

Treta da semana: Leitura simbólica.

A propósito das declarações de Saramago, que a Bíblia é um «manual de maus costumes», teólogos e sacerdotes têm apontado que ler a Bíblia é uma coisa muito complicada. Como disse Carreira das Neves em debate com Saramago, a Bíblia tem infinitas leituras (1). Mas isso quase tudo tem e, retorquiu Saramago, por muitas interpretações que se dê a um texto não se pode esquecer o que lá está escrito.

Um problema que este episódio revela é a noção que alguns iluminados católicos sabem, com o saber de quem sabe, qual a interpretação certa para cada passagem. Por exemplo, o Filipe Noronha, no Companhia dos Filósofos, escreve acerca de Saramago que «mesmo para quem se diz ateu, a sua interpretação do texto e a mensagem que nos quer fazer chegar é […] um sinal claro de que devemos insistir na luta contra este tipo específico de ignorância.»(2) Mas dizer que a interpretação de Saramago é ignorante implica haver conhecimento. E, acerca disto, não há. Podemos ler tudo o que os cristãos escreveram acerca da Bíblia, de Aquinas a Ricoeur passando por Kiergegaard e C. S. Lewis, e o que vamos encontrar – nos duzentos mil livros que Carreira das Neves mencionou – é só opiniões. Para ser conhecimento precisavam assentar a opinião em algum processo fiável, testável e independente de opções subjectivas. Julgam que interpretam bem, cada um com a sua interpretação. Mas não sabem.

E isto de exigir «uma compreensão da Bíblia enquanto texto literário para verdadeiramente chegar ao seu sentido»(3) é moda recente. Só a partir do século XIX é que a exegese católica começou a considerar a Bíblia literatura. Antes disso defendiam uma interpretação literal. Daí que, quando afirmam que não se deve ler a Bíblia à letra, de uma forma a que chamam “banal”, contradizem dezoito séculos de tradição católica e outras variantes contemporâneas de cristianismo.

E a letra continua lá. Podemos interpretar o livro de Jó como uma crítica à justiça retributiva, mas é ainda verdade que Jahve e Satan submeteram o desgraçado a uma injustiça intolerável. Podemos ler o sacrifício de Abraão como um salto de fé, a solução para um dilema impossível, algo com um significado existencial tão profundo que não serve para nada. Mas não podemos negar que o texto exalta um personagem disposto a matar o filho em nome da religião. E isso é um mau costume. Qualquer pessoa civilizada reconhece que a liberdade religiosa acaba muito antes do infanticídio. Mesmo sendo legítimo aos católicos darem outras interpretações a estes textos, essas não anulam o que lá está escrito.

E há episódios que nenhuma (re)interpretação pode safar. Moisés desce da montanha e manda chacinar uma data de gente por ter um deus diferente. Deus manda matar cidades inteiras, destrói Sodoma e Gomorra por causa de preferências sexuais, transforma uma mulher em sal só porque olhou para trás, mata os primogénitos no Egipto só porque o Faraó era teimoso e assim por diante. Se os lermos como obra humana, estes relatos explicam-se pelo contexto cultural. Eram pessoas menos esclarecidas, intolerantes, sem respeito pela liberdade religiosa, privacidade e outros direitos fundamentais. Mas se é um livro inspirado por um deus então esse deus é horrível. Esse deus permitiu – e permite – que se façam coisas terríveis em seu nome. Se apedrejar uma rapariga até à morte por ter relações sexuais antes de casar não é um mau costume, não sei o que possa ser.

Finalmente, muitas interpretações pouco ajudam. O Novo Testamento relata como Jesus cresceu, liderou um grupo de crentes e foi morto na cruz. Os cristãos interpretam isto como um sacrifício do seu deus que, tornando-se homem, morreu e ressuscitou para nos redimir e mostrar que a morte pode ser vencida. O que é uma afronta ao sofrimento humano. Ser torturado e morrer é terrível, mas é terrível para quem é mortal, quem perdendo a vida perde tudo, quem não se pode defender do mal que lhe causam e deixa filhos órfãos e família desamparada. Um deus eterno, omnisciente e omnipotente, que com um pensamento podia ter transformado os soldados romanos em bolacha Maria, nunca esteve em perigo nem fez sacrifício nenhum. Fez teatro. E de mau gosto. É como ir à Etiópia, passar lá uma tarde sem lanchar e, de volta a casa, mandar àquela gente que morre à fome um postal da jantarada para terem esperança de vencer o seu jejum.

Muito pouco na Bíblia é compatível com os valores da civilização moderna. Quem preza a liberdade e a justiça não pode concordar nem com o antigo testamento, com um deus tirano que castiga e tortura só porque lhe apetece, nem com o novo testamento, em que o mesmo deus se faz inocente e se finge matar para nos dar esperança ou mostrar que morrer na cruz é amor. É claro que podemos reinterpretar a Bíblia à luz dos nossos valores. É sempre possível inventar que tudo o que parece mal é metáfora para outra coisa que vá escapando. Mas é incorrecto vender esta reinterpretação, muito forçada, como conhecimento. É mera opinião. E seria mais prático e honesto admitir, de uma vez por todas, que a Bíblia é um conjunto de obras literárias escritas por humanos. De grande valor histórico e cultural, com passagens bonitas, e com as falhas e caducidade de qualquer obra humana. O texto faz parte da nossa cultura mas a mensagem, felizmente, deixou de ser relevante.

Em simultâneo no Que Treta!

1- SIC, 23-10-09, Frente-a-frente, José Saramago e Joaquim Carreira das Neves
2- Filipe Noronha, 23-10-09, Todos temos razão.
3- Agência Ecclesia, Saramago faz releitura banal da Bíblia. Via (2).
4- Catholic Encyclopedia, Biblical Exegesis

25 de Outubro, 2009 Fernandes

O Deus do Clero

Este Deus é totalmente autónomo. Absoluto. Encerra tudo em si mesmo. É completamente diferente de tudo o que existe, pelo menos assim é descrito em todos os catecismos, e assim configurado, é como melhor serve e menos prejudica os interesses do Clero.

O Deus do Antigo e do Novo Testamento em nada difere do Zeus grego, do Júpiter romano ou Wotan germano. Todos são deuses despóticos, violentos e cheios de ciúme. Muitos duvidam da teologia que se encarrega da concepção de Deus, da fundamentação e das consequências que daí advêm para a vida dos homens. Não vai longe o tempo em que os Padres (a quem Deus investiu como donos-da-Verdade), ensinavam na catequese os muitos detalhes da natureza e vontade do “Deus-Verdadeiro”. Explicavam: «só o que a Igreja Católica ensina, é que foi revelado por Deus». Significa isso que nenhuma Igreja a não ser a Católica, está bem informada? Deus só se revela às suas ovelhas de forma indirecta? Os crentes só obtêm verdades em segunda mão? O Catecismo Católico continua a ensinar: «Deus permite o sofrimento, para que façamos penitência pelos nossos pecados para podermos obter a recompensa eterna». Assim sendo, milhares de sofredores, de assassinados (especialmente os assassinados pelo Clero), só padecem a dor para poderem obter a recompensa celestial? O catecismo, como código moral que é, continua: «os condenados ao Inferno sofrem mais do que qualquer homem pode imaginar. Padecem os tormentos dos fogo…e habitam na companhia do Diabo». Nos anos sessenta, estes absurdos, eram “Matéria de Fé” . O Clero, agora, não opina de maneira igual sobre este assunto. Ter-se-á então equivocado? Não é válido, hoje, aquilo em que éramos obrigados a acreditar firmemente, há trinta anos apenas?

– O Pecado é uma ofensa ao amor paterno, o perdão só Ele o pode conceder -. As interacções deste tipo, persistente e regularmente repetidas, são os factores constituites de qualquer religião. Às pessoas expostas a semelhante manipulação mental, estes mecanismos convertem-se em estruturas psíquicas solidificadas. As interacções entre Deus-Pai e Deus-Filho são petrificadas e convertidas em esquemas organizacionais abstractos (patterns) de modo que, os actos de demonstração amorosa como, a oração, o arrependimento e a obediência, provocam de maneira automática, as contrapartidas correspondentes, – o amor paternal de Deus! – Um deus que ama os seus, na condição de que estes acreditem que ele existe e Lhe obedeçam segundo a Sua vontade. Um Deus que ameaça com sofrimento eterno quem se atreve a questionar o seu amor ou a sua existência.

Deus não existe, o Clero sim. Este servir-se-á sempre da religião como do pão para a boca. Intitulam-se intérpretes de Deus, numa indisfarçável soberba e ganância pelo poder. Para eles a religião é o “emprego”. No dia em que o cristianismo se mostrar irremediavelmente inútil aos seus interesses, substituirão esta, por outra cosmovisão mais rentável.

Quem se atreverá a exigir de Deus, gestos de amor que possam, eventualmente, divergir dos interesses do Clero?