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A indignação de um profissional de saúde

Texto da autoria de Vítor Oliveira.

Liguei à enfermeira chefe do meu serviço, a tremer de excitação, assim que recebi a notícia.
“Boa noite, chefe. Soube que vamos receber doentes de COVID-19. É verdade?”
“É verdade, sim.”

Desde o início da pandemia, dizia aos meus colegas: “quero ir para a linha da frente”. A ideia era estimulante, o desejo dessa experiência altamente apetecível. Para um auxiliar de ação médica, como eu, os dias são bastante rotineiros e os novos desafios são escassos, especialmente depois de mais 10 anos no mesmo serviço. Não me interpretem mal, eu adoro o meu trabalho e, aliás, não me vejo a fazer outra coisa que não seja aquilo que faço. A desgraça que nos assolou a todos trouxe a perspectiva da possibilidade de me colocar à prova num novo ambiente, numa nova realidade que nunca havia experimentado. Estava ansioso por poder fazer parte da linha da frente e a voz do outro lado da linha dizia que o desafio havia sido lançado e eu havia sido chamado. Aceitei, mesmo sabendo os riscos que me esperavam e não estou arrependido. Tive (e ainda tenho) a oportunidade de assistir a extraordinários exemplos de superação humana.

Hoje, depois de quase 3 meses de batalha, o meu sangue ferveu quando me deparei com a notícia que me levou a escrever estas palavras.

Segundo o jornal Agência Ecclesia, realizou-se no Hospital de Gaia, dia 17 de julho, uma celebração de ação de graças pelos recuperados de COVID-19, onde as palavras do bispo auxiliar do Porto, D. Armando Esteves, foram de que o Serviço de Assistência Espiritual pretende “proporcionar um momento de manifestação de fé, renovando a esperança e reafirmando a confiança em Deus, agradecendo-lhe pela dedicação e pela coragem daquelas e daqueles que servem a nobre tarefa do cuidado dos doentes infetados”.

Reafirmar a confiança em Deus, agradecendo ao mesmo (Deus) a dedicação e a coragem dos que estiveram na linha da frente? Compreendi bem as suas desafortunadas palavras, caro D. Armando Esteves? Vossa Excelência não estará, acaso, a romantizar excessivamente os acontecimentos através de uma óptica que é favorável à sua fé naquilo que “está” no céu? Se esse é o caso, permita-me que eu, mísero mortal, o traga de volta à realidade na terra.

Dedicação e coragem vi eu, quando colegas meus deixaram de ver a família por semanas com medo de os infetar e mesmo assim, a enxugar lágrimas de receio e saudade, continuaram a trabalhar zelosamente, todos os dias, sem faltar ao trabalho. Deus não vi, não compareceu para os ajudar.

Dedicação e coragem vi eu, quando olhos atentos e mãos extremosas ajudavam na colocação dos fatos de proteção, tapando qualquer abertura nos mesmos de forma a manter protegidos os colegas que iam entrar. Deus não vi, não compareceu para os ajudar.

Dedicação e coragem vi eu, quando desgastados após horas a suar devido ao abafo dos fatos claustrofóbicos, com sede e fome e vontade de se aliviarem dos despojos das suas funções corporais, colegas meus continuavam a ser caridosos para com os utentes que estavam a cuidar. Deus não vi, não compareceu para os ajudar.

Dedicação e coragem vi eu, quando vários enfermeiros que ficaram com úlceras de pressão devido ao uso dos equipamentos de proteção, voltaram de novo a entrar quando chamados em situação de urgência, ignorando a ferida que lhes doía. Deus não vi, não compareceu para os ajudar.

Dedicação e coragem vi eu, quando imensos grupos de voluntários se uniram para, com o seu tempo e dinheiro, nos fazerem de raiz o material de protecção que não possuíamos. Foi-me impossível não ficar emocionado ao ver redes imensas de genuína empatia humana a expandirem-se pelo ciberespaço e a conseguir arrecadar milhares de euros para esta causa. Deus não vi, não compareceu para os ajudar. Vi uma tremenda força terrenal, todos os dias, a brotar de locais onde a esperança parecia perdida… no entanto, rejubilem-se os fiéis! Foi Deus! Deus, o maior interveniente nas acções fantásticas destes seres menores! É para ele que vai o agradecimento maior! Nunca as mãos humanas, nutridas apenas pela filantropia, conseguiriam materializar assim a esperança que parecia perdida! Aleluia! Aleluia! Manifestemos a nossa fé, renovemos a esperança! O Homem é secundário e a confiança está sempre em Deus!

Poderei perguntar que Deus é esse que, embora seja capaz de facilmente intervir e guiar a natureza humana, se demonstra ser incapaz de exterminar um pequeno vírus da mãe natureza? Que permite que esse mesmo vírus possa infectar e adoecer e matar e afectar a vida de milhões de pessoas? Onde lhe anda a pujante omnipotência, bíblica em proporções, nos dias de hoje? Será que a perdeu? Não existirá um fármaco celeste que lhe trate tal problema?

Eu tinha um preconceito que seguia a esta linha, “aquele que através da fé vislumbra a ilusão da bondade celeste, dificilmente deposita os olhos na verdadeira bondade humana”. Hoje, o preconceito desapareceu e tornou-se facto, ao perceber que os meus companheiros e companheiras ficaram desprovidos dos méritos que lhes são devidos, pois os louros acabaram predados a favor de um Deus ausente.

Imagem de Sasin Tipchai por Pixabay