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Dia: 12 de Novembro, 2007

12 de Novembro, 2007 Carlos Esperança

Momento Zen de segunda

João César das Neves (JCN) não é apenas professor da Universidade Católica, é o braço armado das sotainas, o mensageiro de todos os recados da Igreja Católica Apostólica Romana (ICAR).

Na homilia de hoje contemplamos o azedume do prosélito em «O SURDO REGRESSO DA LEI DE SEPARAÇÃO», como se a separação da Igreja do Estado não fosse a mais digna postura e a mais pacífica para com as diversas religiões.

Ironicamente, Paulo Baldaia, chefe de redacção do JN, assina, também hoje, no JN, um artigo com uma visão muito mais lúcida sobre a ICAR: «O negócio da fé».

Talvez para expiação dos pecados, JCN exige a regulamentação da Concordata (tratado dispensável entre o Estado português e o do Vaticano) – uma forma de reivindicar os privilégios que a hierarquia católica reclama e de que JCN sub-repticiamente se faz eco.

JCN deplora a derrota do miguelismo que, na sua opinião, «tentou responder à crescente onda jacobina», o que «gerou a longa e degradante servidão da Igreja sob o jugo liberal da segunda metade de Oitocentos». Para ele, o que não seja um Governo semelhante ao do Irão é um regime de «servidão da Igreja».

Segundo o beato plumitivo, as normas cuja extensão aos lares da ICAR é uma exigência legal, não passam de «regulamentos e exigências tolas».

Sem o dizer claramente, vê no fim do subsídio à Universidade Católica a «agressão» de Sócrates, «talvez inspirado pelas tolices de Zapatero», e, tecendo o mais terno louvor à bondade da ICAR, considera «confronto» e «opressão» o cumprimento da Constituição, que garante a liberdade religiosa, com tratamento igual das diversas confissões.

A extinção dos lugares de capelães hospitalares, prisionais e castrenses, na função pública constitui «perseguição» e «opressão» [sic] de que é vítima a Igreja católica.

12 de Novembro, 2007 Helder Sanches

Reflectir o meu ateísmo – Parte 3

Promover uma laicidade pró-activa

A questão da separação do estado e da Igreja está na ordem do dia nos Estados Unidos. Após o 11 de Setembro, a resposta norte-americana foi, na minha opinião, a pior possível e aquela que melhor serviu os interesses das linhas mais conservadoras de ambos os lados da barricada. Pior do que guerras santas, só mesmo guerras económicas mascaradas de guerras santas. Às religiões serve-lhes a aparente luta contra os infiéis ou fundamentalistas e aos governos assenta-lhes que nem uma luva a máscara dos motivos religiosos. Entretanto, as multinacionais sorriem e o povo chora!

Que no princípio do séc. XXI se vivam cenários como este parece-me lamentável, mas não surpreendente, face aos factos históricos recentes. Mesmo sem 11 de Setembro, creio que a tendência estava desenhada para um aumento da visibilidade das religiões nas sociedades ocidentais. Alguns factores estariam já a contribuir para esse fenómeno, tendo o 11 de Setembro apenas acelerado o processo. Senão, vejamos:

  • Desde os anos 70 que na maioria dos países ocidentais se tem vindo a acentuar uma maior descrença no sistema político;
  • A globalização também está ao alcance das “religiões privadas” – seitas – tendo permitido que algumas delas crescessem nas últimas décadas para dimensões de fazer inveja à religiões tradicionais em muitos países;
  • O extremismo islâmico tem-se propagado por todo o mundo desde os anos do Ayatollah Khomeini;
  • A secularização da maioria dos países ocidentais não lhes permite controlar fenómenos de propagação religiosa, quer activos, quer reactivos;
  • A incapacidade demonstrada para uma solução política no conflito do médio oriente é um convite a uma resolução patrocinada pelo divino (guerra santa).

A meu ver, é imprescindível que as democracias seculares ocidentais criem mecanismos para se protegerem elas próprias não apenas dos perigos externos mas, principalmente, dos internos. Não defendo um estado ateu, defendo, isso sim, um estado fortemente laico; forte ao ponto de ser pró-activo nessa laicidade e não apenas um mero gestor ou observador.

A liberdade de fé, crença e religião deve existir mas sempre fora de todo e qualquer contexto estatal. As organizações religiosas não devem de usufruir de nenhum benefício fiscal ou legal, devendo o Estado abster-se de qualquer patrocínio ou subsídio às organizações religiosas. Apenas os serviços comprovados de acção social deverão estar enquadrados nesses benefícios em regime de igualdade com outras organizações não religiosas de índole social.

Não devem ser permitidas quaisquer referências religiosas no discurso político, independentemente do órgão de soberania em causa. As cerimónias oficiais devem dispensar qualquer participação de representantes religiosos, devendo a representação religiosa ser totalmente irradiada do protocolo de Estado. Igualmente, aos órgãos de comunicação do Estado – RTP, RDP, etc – deverá estar proibida a terminologia religiosa.

Por último, os partidos políticos e os seus representantes não deverão prestar declarações públicas de favorecimento religioso em períodos eleitorais.

Nenhum destes princípios é contrário à livre actividade religiosa. No entanto, previnem por um lado a utilização da religião como arma política e, por outro, garantem uma equidistância do Estado com todos os cidadãos de qualquer religião ou de religião nenhuma. Repare-se, ainda, que estes mecanismos não só permitem proteger o Estado da influencia religiosa, mas também o contrário. O único compromisso das religiões com o Estado é o de cumprir a lei, tal como qualquer outra pessoa individual ou colectiva.

Admito que esta matéria seja talvez das mais complexas e susceptíveis de causar polémica. Exactamente por isso é que o Estado deve defender, em primeiro lugar, os direitos implícitos nos seus princípios de secularismo e laicidade. Só depois, então, é que o Estado se deve comprometer a garantir outros direitos também fundamentais, como liberdade de fé, culto e religião.

(Publicação simultânea: Diário Ateísta / Penso, logo, sou ateu)

12 de Novembro, 2007 Ricardo Alves

Abraão, ou a obediência

No primeiro livro da Bíblia, Abraão recebe ordem de «Deus» (dito, significativamente, «o Senhor») para matar o seu filho Isaac. Abraão não estranha a ordem e nem sequer hesita: pega no seu único filho e leva-o para o altar dos sacrifícios. Pelo caminho, Isaac (cuja idade desconhecemos mas que é suficientemente crescido para falar), pergunta ao seu pai que animal sacrificarão em holocausto. Abraão responde que «Deus proverá quanto à vítima para o holocausto, meu filho». Chegados ao altar, Abraão dispõe a lenha, ata o filho, e já ergue o cutelo no ar para lhe cortar a garganta quando recebe ordem divina para parar. Era apenas um teste, e pela sua obediência é recompensado pelo «Senhor» com a promessa de uma descendência numerosa. Registe-se que o Isaac deste episódio nascera pouco depois de uma «aliança» entre o «Senhor» e o obediente Abraão, na qual Abraão prometera cortar o prepúcio a todas as crianças do sexo masculino suas descendentes a troco de algumas terras do Médio Oriente.

O episódio do sacrifício de Isaac tem um sentido evidente: o «Senhor» («Deus») recompensa a obediência imediata e incondicional, e a disponibilidade para matar os próprios filhos. Não é demais sublinhar este último aspecto. A evolução dotou o animal humano de sentimentos de afecto pelos filhos. Matar a própria descendência é destruir a sua própria herança genética e perder também um enorme investimento em alimentos, aquecimento e educação. A disponibilidade de Abraão indica-nos o ponto na história da humanidade em que a cultura começou a combater a natureza humana, ou seja, o momento em que surgiram instituições suficientemente poderosas para tentarem convencer os seres humanos de que poderiam ter algo a ganhar na obediência acrítica e ilimitada à autoridade. Evidentemente, a aliança celebrada nesse momento não é entre os homens e um «Senhor» que não dá ordens porque não existe. A aliança é entre a religião e o Estado centralizado e autoritário: a religião convence os homens de que devem obedecer à autoridade estatal; o Estado protege a religião e os seus sacerdotes.

A religião que celebra esta aliança propõe um «Deus» sem obrigações éticas ou morais, pois pode mandar os seus seguidores matar os próprios filhos. O Estado que aceita esta aliança saberá utilizar este ideal de obediência bovina, para proveito seu e da religião abraâmica, durante séculos. Existe forma melhor de se convencer os pais (e as mães) a enviar os seus filhos para a morte quase certa numa guerra perdida à partida, do que convencê-los de que há uma vida eterna?

As religiões abraâmicas começaram a ser desafiadas na Europa e em toda a bacia mediterrânica no século 18, o momento em que se disse claramente pela primeira vez que as autoridades tradicionais podiam e deviam ser questionadas, que nenhuma autoridade se podia arrogar um poder acima dos homens (ou das mulheres), e que cada indivíduo era soberano de si próprio. No entanto, o princípio abraâmico sobrevive. Foi útil no século 20 a todos os que quiseram sacrificar o indivíduo ao colectivo, o presente ao futuro, a liberdade individual à autoridade estatal. O princípio abraâmico sobrevive hoje nas religiões que dele saíram (judaica, cristã e islâmica), e que continuam a homenagear Abraão e a sua prontidão para matar o próprio filho ao primeiro resmungo (capricho?) divino. A mutilação sexual que simboliza a «aliança» entre Abraão e o «Senhor» é praticada, até hoje, em todos as crianças que têm o azar de nascerem de pais judeus ou muçulmanos. É a obediência de Abraão que os muçulmanos homenageiam na sua peregrinação a Meca. E entre os cristãos, o homicida Abraão é elogiado por Paulo de Tarso, o verdadeiro fundador da seita. Existe mesmo em Portugal um Fórum Abraâmico que não se envergonha de ostentar o nome do obediente e entusiasta candidato a infanticida.

Em pleno século 21, felizmente são cada vez mais os que rejeitam o ideal de obediência abraâmico e preferem a sua liberdade enquanto indivíduos sem «Senhor».

[Diário Ateísta/Esquerda Republicana]