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Deus é mau? Nem pensar nisso!

Muitos descrentes olham para a mitologia judaico-cristã, e encaram o Deus da Bíblia como sendo uma entidade imaginária muito pouco agradável. Levam em conta as injustiças, as crueldades, o machismo e homofobia, as cidades destruídas, os dilúvios, os inocentes punidos, e consideram que se esse Deus existisse, ele seria mau.
Muitos mas não todos.

Com os crentes isto não se passa: discordam em muitas coisas – em quase tudo, na verdade – mas nenhum crente considera que Deus é mau. É virtualmente impossível encontrar alguém que diga: «Eu acredito no Deus da Bíblia, e acho que esse Deus é mau: criou um mundo cheio de sofrimento e dor, e é-lhe indiferente; puniu inocentes pelas falhas de outros; criou um lugar de sofrimento eterno, coisa própria do mais sádico e cruel dos seres; gosta de ser louvado e glorificado, mostrando uma vã e fútil vaidade, indigna de um ser com tanto poder; criou Satanás e as ferramentas para que alguns de nós fossem tentados a desobedecer-lhe, sabendo que isso aconteceria necessariamente; e castigou-nos a todos por isso; é mau. Mas enfim, é o mundo que temos: fomos criados por um Deus maldoso».

Nem tão pouco alguém que diga: «Repara: nós fomos criados à imagem e semelhança de Deus, por isso Ele não pode ser tão diferente. Nós muitas vezes somos vaidosos, egoístas, injustos, desagradáveis; e podemos ser piores se tivermos muito poder nas mãos e não tivermos de prestar contas a ninguém. Deus é assim: um tanto impulsivo, às vezes parece uma criança mimada. Mas tal como nós, Deus também faz coisas boas. As flores, as montanhas, a lua, a natureza é tão bela. Claro que depois existem os escaravelhos, os mosquitos, as bactérias. Mas a verdade é que se Deus faz coisas más e um tanto parvas umas vezes, também faz coisas boas e brilhantes outras vezes».

Os crentes só dizem algo do tipo: «Deus é Amor infinito. Deus deu a sua vida por nós, ninguém tem tanto Amor! Deus é mais poderoso e magnificiente dos seres. É infinitamente sábio, infinitamente misericordioso, infinitamente justo. Nós não somos ninguém para questionar as suas acções. Ele é Amor, Ele é Bondade, Ele é a fonte de toda a Santidade, Ele é a Verdade e a Vida».

Eu entendo bem a razão de tal concordância. Se eu acreditasse em Deus, confesso que pensaria da mesma forma.
É que alguém fez constar que ir para o Inferno corresponde a passar a eternidade num sofrimento inconcebível. Eu não sei quanto aos leitores, mas a mim a eternidade parece-me muito tempo, e um sofrimento tão grande que eu não consiga sequer imaginar parece-me um tanto desagradável.
Eu nunca diria que Deus é mau, pois teria medo que Ele, ofendido, me fizesse pagar pelas minhas palavras. Tenho a minha dignidade, e não vendo a minha liberdade de expressão por nenhuma bagatela, mas a ideia de passar a eternidade no Inferno poria as coisas em perspectiva… Ficar calado seria uma proposta que eu «não poderia recusar».
O pior seriam os pensamentos. Consta que Deus os conhece. Eu não poderia sequer pensar que Deus é mau. O que é complicado, quando tanto aponta nesse sentido. Teria de me enganar a mim mesmo. Teria de encontrar forma de me convencer a mim próprio que Deus é bom. Muito bom. Excelente! A própria bondade!
Teria de repensar ou compartimentar a minha visão da justiça. Teria de menorizar certas passagens importantes da Bíblia, e o que delas decorre. Teria de deixar de procurar que tudo fizesse sentido e batesse certo, apelando a «mistérios» ou à ideia de que «Deus terá as suas razões que eu não consigo compreender» para justificar o injustificável e acreditar que Deus é bom.

E quando alguém me viesse mostrar que Deus é mau? Eu nunca poderia aceitar tais raciocínios, sob pena de me arriscar à punição eterna. Para isso teria de bloquear alguns argumentos, principalmente os mais pertinentes. Se me parecessem sensatos, sentiria algum medo, encarando-os como tentações. Não poderia ponderar, pensar seriamente no que me estivesse a ser dito, e muito menos assimilar e concordar.
Se não tivesse por onde argumentar, refugiar-me-ia na ideia do «mistério», de como não devemos julgar Deus e apenas acreditar que Ele é bom, citaria algumas passagens da Bíblia, se as soubesse, mesmo que a despropósito, e encaixaria mais algumas palavras para louvar a Bondade e o Amor de Deus como se estivesse a dar graxa a um megalómano, sabendo que se me tivesse passado por breves momentos a ideia de que o meu interlocutor tivesse razão, Lhe teria de pedir muitas desculpas.

Curiosamente, é assim que muitos crentes se comportam quando se discute a bondade do seu Deus. O historial é diferente, claro! Cresceram a acreditar que Deus era bom, e os indícios de que assim não era só terão surgido bem mais tarde. Nunca chegaram a acreditar que Deus não era bom, porque ter-se-ão cegado a cada indício de cada vez, com o medo de ofender ao seu Deus a desempenhar um papel do qual os próprios não se apercebem. Nunca notaram que fora o medo a deturpar os seus julgamentos passo após passo, e que só ele permite que não considerem injustas e crueis grande parte das acções que atribuem a Deus.

A crença treinou assim o auto-engano. E promoveu o medo de certas ideias e pensamentos.

É bom de ver o quanto isto é pernicioso. As ideias devem ser pensadas, discutidas, ponderadas, debatidas, consideradas, refutadas, se for o caso. Na sociedade do conhecimento, é mau ter medo de ideias.
E este é (mais) um mal que o Cristianismo faz ao mundo: educa muita gente para ter medo de pensar certas coisas. Educa muita gente para se enganar a si própria.