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Ao Acaso (parte 2 de 3).

Diariamente somos atacados por bactérias, fungos, vírus, e outros parasitas. Nos últimos séculos começamos a compreender estes inimigos, combatendo-os com medidas (mais ou menos) inteligentes. Lavar as mãos, esgotos fechados debaixo do solo, agua desinfectada, vacinas, antibióticos, e assim por diante. Mas durante milhões de anos os nossos antepassados sobreviveram a estes perigos sem sequer saber o que eram, graças ao sistema imunitário. O mais interessante destas defesa são os linfócitos, os soldados do sistema adaptativo. Reagem especificamente a cada invasor e guardam memória das doenças que tivemos para reagir mais prontamente quando esses microorganismos voltarem a atacar.

Antes de continuar, pensem: como é que este sistema consegue atacar inúmeros agressores diferentes, sem atacar outras células do corpo humano, e sem qualquer inteligência? Impossível? Por acaso não é.

Todos os dias o nosso corpo cria centenas de milhões de glóbulos brancos (linfócitos) do tipo B. Durante a sua maturação, estas células baralham aleatoriamente o ADN que codifica proteínas (anticorpos) que vão ficar à superfície da célula. Assim, cada célula tem um tipo diferente de anticorpos, gerado ao acaso, e atacará tudo o que encaixe nos seus anticorpos. Mas uma arma apontada ao acaso é um perigo. Por isso estas células ficam retidas durante uns tempos na medula óssea e no timo, onde encontram muitas células e proteínas do corpo. Se os seus anticorpos se ligam a alguma coisa nesta fase a célula B suicida-se. Nove em cada dez morrem desta maneira, à nascença, evitando que sejamos destruídos pelo nosso sistema imunitário. Sem inteligência, apenas por processos bioquímicos de selecção.

Mesmo assim sobrevivem muitas, e a massa total de linfócitos que temos é semelhante á massa do cérebro ou do fígado. São muitas, muitas células, com muitos anticorpos feitos ao acaso. Nesta multidão é quase certo que haja a defesa para qualquer micróbio que aqui entre. É só questão de esperar que, por acaso, um dos invasores esbarre contra a célula certa. E com números tão grandes o acaso torna-se previsível.

Quando uma célula B encontra um alvo que encaixa nos seus anticorpos, começa a reproduzir-se. Cria muitas células parecidas, quase com o mesmo tipo de anticorpos. Parecidas porque já não baralha o ADN, mas não são iguais porque outros mecanismos induzem mutações nos genes dos anticorpos. Isto cria uma população de células B ligeiramente diferentes. Umas serão menos eficazes, mas outras serão ainda mais eficazes que a original. E estas vão se reproduzir mais, criando células potencialmente ainda mais eficazes.

Sem inteligência, há um grandes desperdício. 90% destas células têm que ser eliminadas à nascença, e a vasta maioria das restantes morre ao fim de uns dias sem qualquer utilidade. Tudo isto para que o acaso gere a ínfima minoria que nos salva a vida todos os dias. E nem sempre funciona bem. Diabetes, lupus, reumatismo, muitas doenças devem-se a erros neste processo que fazem o sistema imunitário atacar as células do corpo. Sem inteligência, também não distingue um invasor perigoso duma proteína de amendoim ou de um grão de pólen, e a reacção pode ser fatal para quem é alérgico.

Com inteligência faz-se melhor. Mesmo com uma compreensão limitada, nós já fazemos antibióticos que atacam apenas bactérias e não amendoins, sabemos treinar o sistema imunitário com vacinas, e conseguimos remediar cada vez melhor os erros deste sistema cego. Um ser omnisciente nunca criaria um sistema tão ineficiente. O extraordinário deste sistema é como a combinação de acaso, características herdadas e selecção criou uma solução milhões de anos antes de alguma inteligência compreender o problema.

——————————–[Ludwig Krippahl]