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Guerra no reino de Preste João


Frontispício da versão de Baltazar Teles da Historia geral de Ethiopia a Alta ou Abassia do Preste Ioam, e do que nella obraram os Padres da Companhia de Iesus: composta na mesma Ethiopia pelo Padre Manoel d’Almeyda, natural de Visev, Provincial e Visitador, que foy na Índia. Abreviada com nova releyçam, e methodo. Coimbra, Officina de Manoel Dias Impressor de Universidade, 1660.

O Corno de África, que tudo indica ter sido palco da evolução do Homo sapiens, tem uma história milenar que há muito preenche o imaginário europeu. Era nesta região que se situava o reino de Axum ou Aksum – posteriormente a Abissínia – cujas origens a lenda situa no reino de Sabá (ou Shebah) que, supostamente, há cerca de 3000 anos, abrangia todo o Corno de África e parte da Península Arábica, nomeadamente o Yemen – Sabá, capital do reino do mesmo nome, era uma cidade da Arábia antiga (Arabia Felix), na costa ocidental do Mar Vermelho, a que os gregos chamaram Miriaba.

Assentes nestas lendas, os soberanos da milenar Abissínia, desde a antiguidade, usavam o título de Negus, pretendendo descenderem do rei Salomão e da lendária rainha de Sabá. O último negus etíope, Ras Tafari que tomou o nome Hailé Selassié – que significa «Poder da Divina Trindade» – que reinou de 1930 a 1974, usava os títulos «O Eleito de Deus», «Rei dos Reis», «O Leão de Judá», para além de timbrar os documentos oficiais com o «selo de Salomão».

A literatura europeia sobre o reino abissínio marcou indelevelmente o imaginário fantástico medieval com representações lendárias, especialmente sobre o «reino de Preste João», supostamente um descendente de Baltasar, um dos três míticos reis magos. Preste é uma corruptela do francês Prêtre, ou seja, padre, e este Preste João ou Iohannes Presbyter era o rei-sacerdote de um reino cristão maravilhoso, povoado de animais fantásticos como os que enchiam os bestiários medievais.

A crença na fantástica lenda do soberano mais fabuloso e poderoso da Cristandade, propagada por Hugo de Gebel, bispo de uma colónia cristã no Líbano, era tão arreigada que em 1487 D. João II envia Afonso de Paiva para investigar a localização do mítico reino na tentativa de torná-lo aliado numa possível expedição para a Índia, em fase de planeamento. Embora tenha morrido antes de comunicar o relatório, Pêro da Covilhã iria mais tarde completar a missão de Afonso de Paiva. Os relatos de Pêro da Covilhã a Francisco Álvares foram a base do livro deste último, a Verdadeira Informação das Terras do Preste João das Índias que, conjuntamente com o Fides, Religium, Moresque Ethiopum, de Damião de Góis renovaram o imaginário fantástico europeu.

É interessante ainda notar que se toda esta literatura fantástica de certa forma foi a base da aventura marítima quinhentista de Portugal, serviu igualmente de suporte, no século XIX, às pretensões britânicas na corrida à África, a qual chamou a si a missão de procurar o reino de Preste João.

Assim, a literatura de império britânica, arauta dos objectivos imperialistas do país, tentava apagar a centenária saga lusa de busca das terras do mítico soberano, enaltecendo os feitos anglo-saxónicos em busca do reino perdido, despoletadas pela tradução do texto do padre Jerónimo Lobo sobre o tema por Samuel Johnson, em meados do séc. XVIII, e pelo romance Rasselas, que relançou a visão de um reino utópico, perdido nas terras altas do Corno de África, cujo imaginário geográfico motivará as explorações de Burton, Beke e Livingstone. De igual forma, Rider Haggard e John Buchan esforçaram-se por legitimar aos olhos da Europa a ocupação britânica de extensas áreas em África com obras como As Minas de Salomão, She e Prester John. Aliás, pretensão expansionista dos súbditos de Sua Majestade que motivou o famoso Ultimatum.

Para tentar impor uma certa ordem na corrida a África, uma das deliberações da Conferência de Berlim (1884-1885) instituía o direito à posse territorial com base na ocupação efectiva. Assim, era imprescindível a qualquer país provar a sua presença nos solos pretendidos para poder reclamá-los. Tanto Portugal – que pretendia assegurar uma cintura trans-africana que ligava o Atlântico ao Índico, isto é, Angola e Moçambique – como Inglaterra – que ambicionava um corredor entre o Cabo e o Cairo – necessitavam demonstrar à comunidade internacional que exerciam uma real soberania sobre essa área. Suportada no imaginário europeu pela apropriação de elementos da demanda portuguesa do reino de Preste João e pela localização de enredos de sucesso em espaços fictícios, coincidentes com as áreas que ambos os países pretendiam, a Inglaterra reclama-se a justa herdeira de Preste João, mito que conquistou, e exigiu a Portugal que desocupasse as áreas em disputa através de um Ultimatum.

(continua)