The meaning of life
Quando me preparava para continuar a série de posts sobre o aborto e o estatuto do embrião e como, tirando os que ainda não se libertaram de dois milénios de condicionamento social, são os fundamentalistas católicos os estridentes e ululantes «defensores intransigentes da vida», decidi consultar a Enciclopédia Católica para ver afinal o que são supostos defender estes paladinos de óvulos e espermatozóides, seguidores convictos de Agostinho de Hipona que verberava ser a abstinência – excepto para fins estritamente reprodutivos – a única forma de alcançar a graça divina.
Devo confessar que fiquei completamente baralhada! Pensar-se-ia que sendo a defesa da vida o estandarte actual da Igreja de Roma, que ulula contra um imaginado relativismo que resulta numa suposta «cultura de morte», ou seja, numa sexualidade saudável e sem culpas, vida seria algo muito bem definido pela Igreja de Roma.
Na realidade, a Igreja de Roma arvora-se em paladino intransigente de algo que… confessa, em 6 454 palavras (leram bem, seis mil quatrocentas e cinquenta e quatro) de uma dissertação absolutamente hilariante, não fazer a mínima ideia do que seja!
Mais concretamente, o parágrafo inicial diz tudo:
O enigma da vida [a definição do que é a vida] permanece um dos dois ou três problemas que enfrentam quer o cientista quer o filósofo e, não obstante o progresso no conhecimento que se verificou nos últimos 2 300 anos, não avançámos apreciavelmente em relação à posição de Aristóteles no que respeita às questões principais. Quais são as suas [da vida] manifestações características? Quais são as suas formas principais? Qual é a natureza intrínseca da actividade vital? |
Ou seja, a Igreja de Roma admite não saber o que é a vida e não ter respostas para a natureza intrínseca da vida que não sejam as propostas por Aristóteles. E assim podemos ler uma dissertação prolixa que basicamente se reduz, depois de muita palha totalmente desconexa, a afirmar que os seres vivos são formados por um corpo biológico organizado e por um princípio vital (que nos humanos é a tal anima que só a ICAR pode salvar).
Só há vida após a animação, a junção do dito princípio vital e do corpo biológico. Animação que a doutrina católica diz ocorrer na espécie humana quando a alma criada por Deus é infundida nos elementos materiais biológicos. Apenas após animação estes elementos físicos ficam aptos a exercerem as funções da vida humana, descrita como outra santíssima trindade, uma triunidade entre as vidas vegetativa, sensciente e intelectual. Isto é, de acordo com esta definição a vida vegetativa, que não tem consciência de si nem do meio ambiente, não é suficiente para descrever a vida humana!
Ou seja, a posição da Igreja Católica em relação ao aborto e à investigação em células estaminais é total e completamente discordante da sua doutrina expressa na Enciclopédia Católica! Afinal, contrariamente ao que ululam os dignitários católicos, a vida humana não se reduz a um genoma humano!
De acordo com a dita Enciclopédia o que caracteriza a vida humana é o tal princípio vital! E sob o título «Unidade do ser vivo» somos informados que «sendo o princípio vital a forma substancial [da vida] só pode existir um destes princípios animando o ser vivo».
Facilmente chegamos à conclusão que o tal princípio vital ou alma não está presente no zigoto, que teria de apresentar dois princípios vitais para explicar a existência de gémeos homozigóticos!
Então se o tal princípio vital não está presente no zigoto em que fase do desenvolvimento se dará a tal animação que define a existência de vida humana? Segundo a Enciclopédia consultamos a grande autoridade sobre a vida, Aristóteles, que defendia a animação tardia, apenas ao fim de 40 dias para os embriões masculinos e 80 dias para os femininos. Uma vez que até pelo menos às 8 semanas, altura em que as gónadas (indiferenciadas) do embrião XY começam a produzir testosterona, todos os embriões são femininos, parece pacífico que não há animação dos embriões dos quais vamos referendar a despenalização do seu abortamento!
Fiquei ainda com uma dúvida: será que a declaração em 1869 por Pio IX, o autor do Syllabus, do «dogma» actual da animação imediata, que a alma incorpora aquando da concepção – despoletando legislação que criminalizava o aborto (inexistente até à data), vigente ainda hoje em países em vias de desenvolvimento ou nos redutos mais fundamentalistas do catolicismo – foi uma premonição da infalibilidade papal decretada um ano depois no concílio Vaticano I ou não passou de mais um amuo papal, uma vingançazinha do santo Pio em relação à modernidade, que ousadia infame, se estava nas tintas para os ditames do Vaticano e lhe «usurpou» o poder temporal sobre meia Itália?
Porque a dita proclamação é contrária à doutrina da Igreja, tal como expressa na Enciclopédia Católica! Fico sempre mistificada com as inúmeras contradições católicas! Devem ser os tais mistérios insondáveis da fé… Mas não deixa de ser divertido confirmar que as ululantes Tétés e afins são defensoras intransigentes não se sabe bem de quê… tirando as teses de Agostinho de Hipona!
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