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A procissão do Senhor

Os mordomos aprimoram-se a afiar os espinhos, a polir a coroa e a empurrá-la até ao lugar dos miolos do Senhor, com aquela fé dos néscios e a sanha dos crentes.

Ataviam-no com o vestido roxo, lavadinho e engomado por catequistas que proferem piadas brejeiras enquanto lhe retorcem o cordão da cintura.

A cruz há muito que o acompanha como prótese, mesmo nos períodos de ócio em que o desmontam da padiola que nas procissões se denomina andor por causa do movimento que lhe imprime o dorso dos devotos que se queixam do peso e da tradição.

As chagas são avivadas na cor depois de lhe passarem a escova de arame pelos sítios do martírio para melhor aderir a tinta, o verniz e a compaixão dos crentes.

Atrás, noutra padiola de tamanho menor, viaja a mãe, reduzida à condição de mulher, com ar infeliz de virgem, mãe e empregada doméstica.

Em lugar de destaque viaja o padre com a custódia sob o palio cujas varas têm cada vez menos voluntários. Só os foguetes, os bombeiros e os cavalos da Guarda Republicana dão a ilusão de festa na cerimónia gasta pelo tempo, repetitiva e fastidiosa, com música e itinerário inalterados, arrastando as pessoas que ainda vão porque sempre foram.

A procissão é um acto litúrgico destinado a arejar andores, a retirar o bolor dos guiões e estandartes, a reunir crentes e fazer a colecta para o padre. Os anjinhos da praxe vão-se reduzindo com o planeamento familiar e a devoção que esmorece.

As pessoas começam a sentir-se ridículas e com vergonha. Deus, por muito exótico que seja, não se diverte com o espectáculo. Se, ao menos, levassem sacos de cimento para as obras em vez do pesado andor, era mais útil o esforço e menos caricata a viagem.