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Dia: 20 de Julho, 2006

20 de Julho, 2006 Ricardo Alves

O protocolo de Estado e as implantações presumíveis

Foi ontem aprovada em comissão parlamentar a lei de protocolo de Estado. O PS cedeu no articulado final, que terá a seguinte passagem: «as autoridades religiosas, quando convidadas para cerimónias oficiais, recebem o tratamento adequado à dignidade e representatividade das funções que exercem, ordenando-se conforme a respectiva implantação na sociedade portuguesa». Só a inclusão da ordenação segundo a «implantação» satisfez o membro do Opus Dei Mota Amaral, que ao longo de todo o processo legislativo se bateu valorosamente por um lugar de destaque para a confissão religiosa a que pertence.

Sendo clarificador e positivo que o Cardeal Patriarca de Lisboa da ICAR deixe de ter um lugar específico no protocolo de um Estado separado dessa e de outras comunidades religiosas, a avaliação da «implantação» que as «autoridades religiosas» representam anuncia problemas novos que se me afiguram irresolúveis. Em primeiro lugar, as convicções religiosas são individuais, íntimas e inconstantes. Afirmar que, num dado momento, a autoridade religiosa A representa a convicção religiosa de mais cidadãos do que a autoridade religiosa B, é uma suposição que para ser confirmada exigiria controlar os pensamentos de dez milhões de pessoas. Em segundo lugar, para além da impossibilidade física de saber o que pensam as pessoas existe a interdição constitucional de lhes perguntar («ninguém pode ser perguntado por qualquer autoridade acerca das suas convicções ou prática religiosa»). Finalmente, não podendo inquirir os cidadãos, o Estado terá que confiar às ditas autoridades a avaliação sincera e exacta da sua «implantação». E aí, imagino já o José Policarpo de punhos erguidos para o céu, naquela posição de futebolista que julga que acaba de marcar um golo: «nove milhões, novecentos e noventa e nove mil…». (Recorde-se, no entanto, que em 2001 a ICAR contou, confessadamente, um milhão e oitocentos mil praticantes, o que a torna apenas a maior das minorias religiosas…)

Implicitamente, ficou decidido que a ICAR será a primeira das confissões religiosas «implantadas» no protocolo. O problema é quem se segue na fila. Pessoalmente, estou convencido de que a Sociedade Torre de Vigia é a segunda confissão religiosa em número de praticantes, mas as Testemunhas de Jeová cultivam o distanciamento face ao Estado e à política, o que me parece uma atitude saudável para uma comunidade religiosa (embora a doutrina das transfusões de sangue seja nada saudável), e por isso deixarão a cadeira vazia. Em terceiro e quarto lugar, a menos que a Aliança Evangélica Portuguesa consiga que as dezenas de comunidades que federa se decidam por um representante único, virão o apóstolo Jorge Tadeu da Igreja Maná ou o representante da Igreja Universal do Reino de Deus, qualquer uma das quais terá dezenas de milhar de seguidores. Em quinto lugar, se contarmos os imigrantes ilegais, virá o sheik Munir ou um qualquer banqueiro wahabita. E depois virá a multidão de representantes hindus, budistas, da IOG, da IJCSUD e (porque não?) o delegado português da Federação Pagã Internacional, o representante da Federação Espírita Portuguesa, o dos rastafaris, o da Igreja Portuguesa de Cientologia e o da Associação Portuguesa de Satanismo, sem esquecer o professor Karamba, os simpáticos Bahá’ís e finalmente a senhora da Comunidade Israelita de Lisboa (uma religião com nome de país e com menos praticantes do que o jogo da laranjinha).

O espectáculo que se perspectiva é cortesia desse partido suposto laicíssimo que é o PS, e que, ao contrário dos seus congéneres espanhol ou francês, jamais afronta a ICAR, mesmo na mais pequena das questões. Efectivamente, o deputado Vera Jardim não hesita em sublinhar que existem dois regimes legais para os cidadãos portugueses no que concerne à liberdade de consciência, a Concordata e a Lei da Liberdade Religiosa, e que o primeiro regime legal torna os cidadãos católicos mais iguais do que os outros. No actual momento histórico, em que pelo menos dois terços dos portugueses não praticam religião alguma e em que assistimos a um processo de secularização rápido e sem precedentes, seria de esperar um pouco mais de coragem, no protocolo e em questões mais substantivas…
20 de Julho, 2006 pfontela

A farsa cristã

O tema central do cristianismo é a culpa, é intrínseco à sua natureza enquanto religião de salvação – sem falta ou pecado não é necessária uma salvação. Mas é no mínimo curioso que quando se trata de assumir as suas culpas em tempos recentes os cristãos parecem estranhamente ausentes e lacónicos nos seus comentários.

Em vez de falarem do que fizeram nos últimos cento e poucos anos (já nem vou mais longe) preferem presentear o mundo com conversa de café, normalmente centrada sobre uma palavra que não compreendem: amor. E não o conhecem porque ja diluíram tanto essa emoção no seu discurso que ela foi reduzida a um nada filosófico e prático. Uma espécie aura difusa com que rodeia sua face pública no mundo moderno.

Esta emoção por natureza nobre foi reduzida a uma patética sombra, um simulacro e resultou em dois conceitos confusos que são a bandeira do cristianismo. O primeiro é a caridade, que em vez de ser encarada como último recurso passa a ter uma conotação de respeito e de valor que deve ser promovido – a piedade e medo que movem tais acções destroem todos os laços que a caridade pudesse ter com a ideia de solidariedade. O segundo conceito é a confusão que os cristãos tentam estabelecer entre amor e ódio. Apesar de impregnarem a sua linguagem com a palavra amor as suas acções revelam apenas um ódio cego a tudo o que é diferente da sua vivência.

É neste ponto do ódio que volta a entrar a culpa. A culpa que os cristãos até hoje não assumem porque preferem estar embrulhados num falso conceito de amor, como podem admitir erros se ainda se escondem por detrás de uma máscara? (que acima de tudo serve para ocultar a sua deformidade moral de si próprios)

Como adoradores da dor e do martírio que são não duvido que, se o movimento iniciado no século das luzes chegar a bom termo, virão a pedir desculpas e proclamar a sua bondade ao admitir erros do passado. Não sei se será no meu tempo mas se for adianto já o seguinte: não perdoo! Não desculpo as atrocidades morais que a hierarquia comete todos os dias! Não perdoo os crentes que sao cúmplices de tal situação e que com a sua presença e apoio ajudam à perpetuação do passado! Se não for no meu tempo fica de qualquer forma o meu testemunho e a minha opinião sobre as atitudes cristãs, que os Homens de amanhã nao se deixem levar por mentiras auto-condescendentes.

20 de Julho, 2006 Palmira Silva

Células estaminais: o primeiro veto

G. W. Bush usou pela primeira vez o veto presidencial para rejeitar legislação aprovada no Congresso norte-americano. A legislação em causa pretendia expandir as restritas leis que governam o financiamento da investigação em células estaminais embrionárias, restrições impostas pelo próprio Bush em 2001 e que limitam a investigação nesta área a 71 linhas de células.

Para a esmagadora maioria dos americanos, entre 70% e 75% de acordo com as últimas sondagens apoiam a investigação em células estaminais embrionárias, este é um assunto incontroverso, claramente do domínio científico e não político, especialmente considerando os promissores resultados na cura de doenças e situações actualmente incuráveis.

No entanto para Bush, considerado o pior presidente da História dos Estados Unidos, este assunto é uma forma de manter o apoio daqueles que constituem a sua base irredutível de sustentação: os fundamentalistas cristãos. Assim, a decisão presidencial foi a conclusão de uma crónica de um veto anunciado, especialmente agora que Bento XVI fez saber, pela voz do cardeal Alfonso Lopez Trujillo, que os cientistas que trabalhem em células estaminais, assim como os políticos que aprovem leis permitindo a investigação em células estaminais, poderão ser automaticamente excomungados, vincando sem margens para dúvidas a posição do Vaticano numa área que não lhe diz minimamente respeito, aliás que está nos antípodas da sua competência – a ciência.

Bush defende que a utilização de alguns dos embriões excedentários da reprodução medicamente assistida em investigação é imoral. Na voz do seu porta-voz Tony Snow que, adoptando o mantra ilógico e irracional dos activistas anti- aborto, referiu-se à prática como assassínio (de meia dúzia de células indiferenciadas). Mais concretamente, o porta-voz de um presidente que acredita na legitimidade de uma guerra «preventiva» que já matou centenas de milhares de pessoas, que enquanto governador do Texas assinou um número recorde de execuções, declarou que a oposição de Bush à lei se deve ao facto de que «ele pensa que o assassínio é errado».

As declarações de Tony Snow fizeram-me recordar o terrorista verbal James C. Dobson, fundador e presidente da maior organização teocrata americana e uma das mais radicais, que comparou a investigação em células estaminais embrionárias com as experiências nazis conduzidas com pacientes vivos, durante e antes do Holocausto.

A posição de Bush é claramente (excepto para os fanáticos cristãos) uma piada hipócrita: dezenas de milhares de embriões excedentários são destruídos anualmente em clínicas de fertilidade sem qualquer prurido e sem qualquer propósito.

Se de facto Bush considera que esta destruição é um assassínio não deveria perder o seu tempo com minudências como o financiamento de ciência: deveria fechar imediatamente todas as clínicas de fertilidade no país, prender os «assassinos» que lá trabalham e acusar todos os casais que recorrem a fertilização in vitro como assassinos em massa!

De facto, e não contabilizando os embriões imediatamente destruídos após uma fertilização in vitro com sucesso, existem mais de 400 000 embriões excedentários congelados e, não obstante o financiamento federal para casais que resolvam «adoptar» esses embriões, apenas 182 destes foram alguma vez «adoptados». Não é muito complicado concluir qual será o fim último desses embriões: a destruição.

Assim, como apontou o senador democrata do Iowa, Tom Harkin, que classificou o veto presidencial como «uma vergonhosa exibição de crueldade, hipocrisia e ignorância»:

«Se [destruir um embrião] é assassínio, porque razão o presidente permite que a prática continue? Onde está a indignação?»

Claro que uma posição destas ditaria o fim político de Bush (e possivelmente arruinaria as hipóteses de os republicanos ganharem as próximas eleições) pelo que o cristão renascido, com grandes fanfarras de defensor intransigente da vida(?), e na boa tradição hipócrita do cristianismo de apenas manter as aparências, limita-se a interferir em algo que nunca percebeu o que é, a ciência, e uma ciência que poderia salvar a vida ou melhorar as condições de vida de muitos milhões de pessoas.