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Os mitos do criacionismo cristão: Génese


Stairway To Heaven, Led Zepellin Escute Windows Media (clique na imagem para ouvir), em que supostamente o número 666 aparece como parte do «significado oculto» de duas das estrofes.

As influências exógenas de outras religiões na mitologia cristã são evidentes um pouco por toda a palavra «revelada». Nomeadamente no dia de hoje, em que os mais supersticiosos veêm augúrios apocalípticos, recordo que todas as mitologias retratam frequentemente o fim do mundo como uma grande destruição, de natureza bélica ou cósmica. Antes da destruição, surge um messias («ungido») ou salvador, que resgata os eleitos de Deus. Esse salvador pode ser o próprio ancestral do povo ou fundador da religião, que empreende uma batalha final contra as forças do mal e, após a vitória, inaugura um novo estágio da criação, um novo céu e uma nova terra.

Os mitos da destruição escatológica, abundantes e associados normalmente a ciclos de destruição-criação em outras religiões, manifestaram-se tardiamente na literatura apocalíptica judaico-cristã, que floresceu entre os séculos II a.C. e II d.C., com o zénite nos delírios do livro do Apocalipse.

Exemplo típico de um mito de destruição (embora não do fim dos tempos) são as grandes inundações. É bastante conhecido o episódio do Antigo Testamento que descreve um dilúvio e o apresenta como castigo de Deus à humanidade. Esse tema tem origens nos mitos mesopotâmicos, aliás é uma cópia integral desta mitologia. Depois de inúmeras tentativas para silenciar um povo ruidoso, desagradável aos ouvidos divinos, com pragas, secas e infertilidade, o deus Enlil lançou um dilúvio sobre a Terra. Somente sobreviveram a família e os animais do sábio Atrahasis.

De igual forma, o mito cristão da criação (indissociável dos mitos de destruição, morte e ressureição, o ciclo da vida na Terra) expresso no Génesis, recheado de alegorias decalcadas do Enuma elish, escrito 2000 anos antes da invenção do cristianismo, é um bom exemplo da forte influência mesopotâmica na mitologia judaico-cristã.

Numa altura em que criacionismos sortidos tentam recuperar para a religião a primazia perdida na explicação do mundo, importa explicar que, para palavra «revelada», a Bíblia revela claramente a sua origem humana (e humanos «reveladores» não especialmente imaginativos, já que copiaram, integralmente ou com poucas modificações, mitologias sortidas).

Segundo a Bíblia, com recurso a alegorias de clara inspiração babilónica, Deus criou o mundo a partir do caos, da escuridão, do abismo: os dois primeiros versículos bíblicos dizem que Deus criou o céu e a terra, e que a terra era um vazio informe, o tohu vabohu do texto hebraico.

A influência grega na génese da mitologia cristã da Criação pode ser encontrada nos versos 115 a 125 da Teogonia, em que Hesíodo (sécs. VIII-VII a. C.) pede às Musas que lhe contem o que existiu antes de tudo, deuses inclusive: «Em primeiro lugar – diz Hesíodo – existiu, realmente, o Caos». Seguiu-se-lhe Gaia, «a de amplos seios», e «do Caos nascerem Erebo e a negra Noite». Como «fruto dos amores destes dois, nasceram Éter e Hemera [Dia]».

Não podia deixar de referir o meu filósofo favorito, Epicurus, (341-270 a. C.), divulgado pelo epicurista Titus Lucrecius Carus (98-55 a.C.) no seu poema De Rerum Natura (A Natureza das Coisas). É interessante notar que o aforismo ex nihilo nihil fit (do nada, nada se faz) que resume a posição epicurista sobre a origem do Universo permanece actual. Aforismo inspirado numa das Sátiras (III, 24) do poeta estóico Pérsio (séc. I d. C.) e que significa simplesmente que nada é criado, tudo se transforma. A primeira formulação do que hoje apelidamos Lei de Lavoisier: na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma.

A convicção cristã de que Deus teria realmente criado o mundo a partir «de nada», a famosa creatio ex nihilo estabeleceu-se e progrediu sobretudo no século II d. C., assente nas teses do (gnóstico) Basilides (início século II) e do apologista (São) Justino (início século II).

Mas o grande «teórico» e divulgador da creatio ex nihilo foi o infelizmente ainda hoje grande teólogo do cristianismo, Agostinho de Hipona (354-430), que, para combater as concepções emanistas do neoplatonismo, sustentou que o Universo foi criado por Deus a partir de nada. Ele defende esta ideia nomeadamente no seu livro De natura boni – onde tenta demonstrar que o mal é a privação do bem, todas as coisas criadas por Deus são boas em essência – em que explica que o nihil do qual Deus criou o Cosmos não é qualquer espécie de matéria ou caos preexistente, mas que a expressão ex nihilo, «do nada», significa apenas «não de algo».