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O pensamento de Josemaría Escrivá (2): obediência

(continuação)

Como foi explicado no artigo anterior, o método Escrivá de sujeição do indivíduo funciona entre dois pólos: humilhação e obediência. A humilhação tem a finalidade de abater a vontade do indivíduo e de prepará-lo para obedecer. E a enfase na obediência nas palavras de Escrivá é tão chocante quanto a insistência na procura da dor e da humilhação.

  • «Obedecer… – caminho seguro. Obedecer cegamente ao superior… – caminho de santidade. (…)» (941) «Obedecei, como nas mãos do artista obedece um instrumento – que não pára a considerar porque faz isto ou aquilo, certos de que nunca vos mandarão fazer nada que não seja bom e para toda a glória de Deus.» (617)

Este dever de obediência, que teoricamente é devido a um «Deus» que não dá ordens porque não existe, é transferido para o «director espiritual», que é um personagem importantíssimo no sistema de controlo do Opus Dei.

  • «Director. – Precisas dele. – Para te entregares, para te dares…, obedecendo. – E Director que conheça o teu apostolado, que saiba o que Deus quer;» (62)

O «director espiritual» funciona como figura parental de substituição e como «representante de Deus». A sua autoridade é portanto enorme, e é reforçada pela devassa sobre a vida privada praticada através da confissão.

Como é evidente, ao castrar os afectos terrenos (os únicos reais), a recompensa que o Opus Dei oferece em troca encontra-se noutro mundo, ilusório.

  • «Que nenhum afecto te prenda à Terra, além do desejo diviníssimo de dar glória a Cristo e, por Ele e com Ele e n’Ele, ao Pai e ao Espirito Santo.» (786)

Mas o «director espiritual» não é uma ilusão, é bem real, e Escrivá cuidou até de protegê-lo da crítica.

  • «(…) E nunca o contradigas diante dos que lhe estão sujeitos, mesmo que não tenha razão.» (954)

Aliás, nunca se pode sublinhar demais que o pensamento de Escrivá é o oposto exacto do ideal iluminista de pensamento crítico e de liberdade individual. Escrivá encontra-se do lado daqueles que crêem que existem assuntos acima da crítica (a sexualidade de «Cristo», os cartunes do profeta) e que a autonomia pessoal é um perigo.

  • «É má disposição ouvir as palavras de Deus com espírito crítico.» (945) «No Apostolado, estás para te submeteres, para te aniquilares; não para impor o teu critério pessoal.» (936)

Tudo o que temos construído nos últimos 200 anos assenta na capacidade de cada indivíduo usar o seu próprio juízo e ter liberdade de escolha. Escrivá defende o oposto de tudo isto, e a sua organização não apenas pratica essa cultura internamente como a tenta difundir na sociedade. Note-se que o Opus Dei aspira a formar «chefes» (empresários, professores universitários, políticos), que coloquem as suas actividades profissionais ao serviço da causa.

  • «Aburguesar-te? Tu… da multidão?! Mas, se tu nasceste para chefe! Entre nós não há lugar para os tíbios. Humilha-te, e Cristo voltará a inflamar-te com fogo de Amor.» (16) «Dá um motivo sobrenatural à tua actividade profissional de cada dia, e terás santificado o trabalho.» (359)

O risco de que haja desvios do «Caminho» é constante. E por isso Escrivá insiste bastante em que há um único caminho, e que não se deve resistir a obedecer.

  • «Por essa demora, por essa passividade, por essa tua resistência em obedecer, como se ressente o apostolado e como se alegra o inimigo!» (616) «Que bem entendeste a obediência quanto me escrevias: “Obedecer sempre é ser mártir sem morrer”!» (622) «Se a obediência não te dá paz, é que és soberbo.» (620)

A obsessão de que existe um único caminho é fundamental para manter a ovelha no rebanho, e necessita de uma castração contínua, de uma renúncia a tudo o que não é útil para uma finalidade pretensamente sobrenatural.

  • «Tudo o que não te leva a Deus é um estorvo. Arranca-o e atira-o para longe.» (189)

O pensamento de Josemaría Escrivá é genuinamente católico. A mesma procura do sofrimento contra o prazer, a mesma defesa da humilhação contra a dignidade e a mesma imposição da obediência contra a liberdade podem ser encontradas nas encíclicas papais e nas práticas populares, por exemplo em Fátima. Mas o pensamento de Escrivá é o catolicismo exacerbado, exponenciado. E o Opus Dei é uma «seita» no mesmo sentido em que o são a Igreja da Cientologia ou o Templo do Sol, porque a vida dos indivíduos é totalmente colocada ao serviço da organização, com a cenoura enganosa do «sobrenatural» e com o chicote bem real das privações sensoriais.

Repito, como já o fiz dezenas de vezes, que as pessoas devem ser livres de aderir ao Opus Dei. No entanto, os pais católicos têm o direito de saber qual é o tipo de «espiritualidade» que se pratica numa organização para a qual os seus filhos adolescentes podem ser recrutados a partir do colégio privado ou da paróquia. E a sociedade tem o direito de se defender denunciando e criticando. Porque não há democracia sem democratas, nem a liberdade pode durar muito se grande parte dos cidadãos obedecem a uma organização autoritária e totalitária.