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Defensores da fé

«Mas esta prescrição da razão não poderia ter força de lei se não fosse a voz e o intérprete de uma razão mais alta, à qual nosso espírito e nossa liberdade devem submeter-se.» (Leão XIII, encíclica Libertas Praestantissimum, 1888)

«O totalitarismo nasce da negação da verdade em sentido objectivo: se não existe uma verdade transcendente, na obediência à qual o homem adquire a sua plena identidade, então não há qualquer princípio seguro que garanta relações justas entre os homens.» (João Paulo II, encíclica Centesimus Annus, 1991)

Um argumento recorrente, e totalmente falso, por parte dos crentes em relação ao ateísmo consiste na afirmação que um sistema ético divorciado do «sobrenatural» é simplesmente utilitário/subjectivo/nihilista e redunda numa sociedade injusta e selvagem. Esquecendo que não há uma única crença religiosa que resista a um escrutínio objectivo; que não existe sequer uma única evidência que Deus, Alá, Yahweh, Shiva, Marduk , etc. sejam mais que as congeminações dos que os propuseram. E o mesmo em relação às supostas verdades «reveladas». Para além de que a suposta ética religiosa é uma ética mercenária em que se compra um lugarzinho no Paraíso por obediência a essas leis «reveladas».

Em qualquer religião, especialmente as do livro, há inúmeras interpretações quer da «verdadeira» natureza de Deus quer das suas «leis». E o terrorismo religioso é indissociável das religiões e tem sido justificado ou como excesso de fé ou por uma interpretação contrária a essa «verdadeira» natureza divina e às respectivas «verdadeiras» leis.

O problema é que essa natureza e as suas leis são o que alguém diz serem e, como temos apreciado ao longo da História, quer essa natureza quer as leis «reveladas» têm sofrido alterações radicais. O que torna essas verdades absolutas e as morais/éticas associadas mais subjectivas que a ética humanista ateísta. Porque a ética humanista é construída racionalmente a partir de premissas consensuais, como os direitos humanos, e por processos lógicos cujas regras são conhecidas de todos. As religiões apenas podem justificar as suas morais (irracionais) apelando a uma suposta experiência sobrenatural de um qualquer profeta, papa ou afins e que não resiste (nem pode ser sujeita) a uma análise racional.

Assim, para os crentes em qualquer religião, e todas exigem obediência acrítica ao que debitam, o imperativo de fazer o que quer que seja que Deus (ou o Espírito Santo) supostamente sussurra no ouvido de qualquer alucinadoou oportunista sobrepõe-se aos mais básicos princípios da convivência humana.

O cristianismo em particular aponta como doutrina fundamental uma aceitação submissa dos ditames do Vaticano, que se opõe a qualquer «insubordinação, relutância em obedecer, rebelião contra a autoridade». Um exemplo é o de Abraão e Isaac. Deus ordena a Abraão para sacrificar o seu filho, isto é, Deus ordena a Abraão para cometer um assassínio. Há aqui um aparente paradoxo, resolvido se entendermos que este episódio pretende incutir a lição que é mais importante obedecer a Deus do que preservar a vida humana. Nenhum princípio, verdade, honestidade intelectual, respeito pela vida humana, se sobrepõe à estrita fidelidade à miragem da «vontade» de Deus.

Estes (e outros) argumentos são desmontados num fabuloso artigo de Slavoj Zizek*, de leitura obrigatória, no New York Times de domingo. Deixo para já alguns parágrafos que reflectem exactamente o que penso sobre os temas abordados.

«Durante séculos disseram-nos que sem religião não éramos mais que uns animais egoístas, lutando pelo nosso quinhão, a nossa única moralidade a de uma alcateia de lobos; apenas a religião, diziam-nos, nos pode elevar a um nível espiritual mais alto. Hoje em dia, quando a religião emerge como a fonte de violência assassina por todo o Mundo, soam ocas as desculpas de que os fundamentalistas cristãos ou muçulmanos ou hindus apenas abusam e pervertem as nobres mensagens espirituais das respectivas crenças. E que tal restaurar a dignidade ao ateísmo, um dos maiores legados da Europa e talvez a nossa única hipótese de paz?

Há mais de um século, no livro ‘Os irmãos Karamazov’ e em outras obras, Dostoyevsky avisava-nos contra os perigos de um niilismo moral sem Deus, essencialmente argumentando que se Deus não existe então tudo é permitido. O filósofo francês André Glucksmann até aplicou ao 11 de Setembro a crítica de Dostoyevsky ao niilismo ateu, como sugere o título do seu livro ‘Dostoyevsky in Manhattan’.

Este argumento não podia estar mais errado: a lição que nos dá o terrorismo actual é que se Deus existe então tudo, incluindo rebentar com milhares de inocentes, é permitido – pelo menos para aqueles que clamam agir directamente em nome de Deus uma vez que, evidentemente, uma ligação directa com Deus justifica a violação de quaisquer considerações ou constrangimentos meramente humanos. Abreviando, os fundamentalistas religiosos tornaram-se iguais aos comunistas estalinistas sem Deus, para quem tudo era permitido uma vez que se consideravam instrumentos directos da sua divindade, a Necessidade Histórica de Progresso a caminho do Comunismo.»

(…)

Os fundamentalistas fazem o que consideram como boas acções de forma a cumprirem a vontade de Deus e para ganharem a salvação; os ateístas fazem-nas simplesmente porque são a coisa certa a fazer. Não é esta a nossa mais elementar experiência de moralidade? Quando eu faço uma boa acção não a faço como um suborno para cair nas boas graças de Deus; faço-la porque se não a fizesse não me conseguiria olhar no espelho.»

*O filósofo Slavoj Zizek, é o director internacional do Birkbeck Institute for the Humanities. O seu livro mais recente e o mais representativo é «The Parallax View».