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A primeira encíclica – a parte política

A segunda parte da encíclica de Bento XVI é um manifesto político e, simultaneamente, um tratado do pensamento sofismático. Pensamento sofismático que pode enganar um leitor mais apressado que, descontando uma menção ao «ameaçador» secularismo actual no parágrafo 37, poderia acreditar que com esta encíclica se renova o Concílio Vaticano II no que respeita à separação Estado-Igreja, ou mais concretamente em relação à «autonomia das realidades temporais».

Nada mais longe da verdade! Depois de arrumada numa primeira parte a ortodoxia da res privada, Bento XVI explicita na segunda parte o que tem sido tema do seu papado, a recusa da laicidade e das dissidências «sociais» dos católicos. Assim, a segunda parte da encíclica versa sobre como deve ser ordenada a res pública, a polis, mais concretamente, quais devem ser os papéis do Estado e da Igreja na sociedade.

E as congeminações de Bento XVI são no mínimo alarmantes já que ele tem, como passarei a explicar, uma visão minimalista do Estado. Estado que não deve de forma alguma interferir na «missão» da Igreja, que passa pela regulação das sociedades determinada pela sua «natureza íntima» expressa no «tríplice dever: anúncio da Palavra de Deus (kerygma-martyria), celebração dos Sacramentos (leiturgia), serviço da caridade (diakonia)». Quaisquer pretensões que alguns crentes pretendem ver no ponto c) do parágrafo 31 de que a caridade não é uma capa para um proselitismo aberto é desmentido pela afirmação do Papa de que estes «São deveres que se reclamam mutuamente, não podendo um ser separado dos outros»

As citações de filósofos políticos como Nietzsche, Descartes, Aristóteles, Platão, Agostinho de Hipona (várias vezes, como já indiquei) e Marx pretendem recordar que o «amor» divino é um tema recorrente na História da filosofia política e que quando os filósofos ( e os políticos que neles se inspiram) esquecem o divino quando fazem política o resultado é calamitoso. Assim sendo, a secção sobre justiça e caridade (parágrafos 26-29) em que Bento XVI discute as funções da Igreja e do Estado, inicia-se pela refutação da crítica marxista à caridade cristã, isto é, a refutação da afirmação, para muitos católicos pacífica, de que os pobres precisam de justiça social não de caridade.

Bento XVI, de forma hábil mas falaciosa, usa a falência do marxismo/comunismo para demonstrar que de facto a caridade não é uma forma de os ricos «subtraírem-se à instauração da justiça e tranquilizarem a consciência, mantendo as suas posições e defraudando os pobres nos seus direitos» mas sim algo indispensável para uma «ordem» social mais justa, para a qual é fundamental o papel caritativo (e prosélito) da Igreja, financiado com dinheiro estatal. Nova ordem social em que o papel do Estado é minímo já que «Não precisamos de um Estado que regule e domine tudo, mas de um Estado que generosamente reconheça e apoie, segundo o princípio de subsidiariedade, as iniciativas que nascem das diversas forças sociais», ou seja, um Estado que basicamente tem como função financiar a Igreja!

Esta encíclica é assim um tratado de teologia política católica par excellence que essencialmente versa sobre a necessidade de «menos Estado», não no sentido liberal do termo, mas sim significando que a governação de facto deve ser efectuada pela Igreja. Igreja que, segundo Ratzinger, é a instituição que deve suprir as necessidades mais básicas dos cidadãos, já que justiça e política são necessárias mas o agape transcende a política.

Teologia política subjacente ao percurso do católico Sam Brownback, o republicano teocrata que não só Pat Robertson mas também Harald Bredesen, o fazedor de presidentes que conta Reagan e Bush no curriculum, querem ver na presidência dos Estados Unidos em 2008. Brownback, um dos autores do «Acto de Restauração» – que limita o âmbito das acções que podem ser apreciadas pelo Supremo Tribunal, mais especificamente, faz com que não sejam passíveis de recurso decisões feitas por um agente judicial que reconheça Deus como a fonte da lei, liberdade ou governo – pretende, no caso de ser eleito, implementar uma concepção de Estado em tudo análoga à defendida por Ratzinger nesta Encíclica. Isto é, Brownback pretende não uma política baseada na fé mas fé em vez de política. Se eleito, a América será uma terra de sonho em que apenas mandam o livre mercado e Deus. Todas as estruturas estatais que mantiveram o tecido social americano desaparecerão ou serão privatizadas, nomeadamente escolas, Segurança Social e o «welfare» americano, que será certamente substituído pela caridade cristã.

Qual é o papel da Igreja então que ressalta desta encíclica que fez alguns dos nossos crentes leitores, que certamente não a analisarm em profundidade, afirmar que constitui um hino à laicidade? Depois de traçar a doutrina social da Igreja face às ameaças marxistas que, com as suas pretensões de justiça social, pretendiam retirar à Igreja a arma por excelência do proselitismo, a caridade, Bento XVI distingue entre a acção indirecta da Igreja, da competência dos católicos leigos que devem assumir «empenho por um justo ordenamento do Estado e da sociedade», e acção directa da Igreja que se deve restringir à «actividade caritativa organizada». Ou seja, para Ratzinger não compete directamente à Igreja «a formação de estruturas justas», com o que condena implicitamente todos os teólogos da libertação e afins, a Igreja deve imiscuir-se na política apenas indirectamente, preparando leigos, que devem trazer (isto é impôr) os ditames de Roma para a cena política dos respectivos países.

Devem ser esses leigos a efectivar as lutas políticas da Igreja nos tais temas fracturantes, através da «purificação da razão e o despertar das forças morais» já que é «missão dos fiéis leigos configurar rectamente a vida social».

Assim, esta encíclica é de facto uma ode anti-laicidade, para além de uma ode anti-Estado Social, já que não só afirma que o Estado deve subsdiar a Igreja, a quem cabe via caridade/agape fazer «justiça» social, como por outro lado afirma ser obrigação dos crentes imiscuirem-se na dispensa da justiça (o único papel, para além da cobrança dos impostos que sustentarão a Igreja, claro, que segundo Ratzinger cabe ao Estado) sempre que esta não seja «recta», isto é, não obedeça aos ditames do Vaticano, ou antes «às exigências do bem», sendo que o bem é o agape cristão definido e interpretado por Ratzinger!

Achei igualmente interessante o parágrafo em que Ratzinger relembra que a caridade cristã, embora assegurada pelo dinheiro público, deve ser dispensada «principalmente para com os irmãos na fé»!