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Presunção e água… Bento XVI

«É importante fazer um grande esforço para explicar adequadamente os motivos das posições da Igreja, destacando que não se trata de impor aos não-crentes uma perspectiva de fé, mas sim de interpretar e defender os valores radicados na natureza mesma do ser humano.» Ratzinger aka Bento XVI dixit

Qunado li esta notícia lembrei-me de uma excelente crónica de José Vítor Malheiros, no Público (link indisponível) de 26 de Abril, especialmente do parágrafo que afirmava: «Quando alguém como Ratzinger chama a atenção para o “relativismo moral” da sociedade moderna mas, ao mesmo tempo, afirma que ‘não há salvação fora da Igreja Católica’ […] ou condena o aborto em nome da defesa da vida mas se mostra compreensivo para com a pena de morte, compreendemos que os ‘valores morais universais e absolutos’ que defende são apenas a supremacia das posições do Vaticano sobre todas as outras, com as variantes regionais e temporais que este entenda defender.

O Vaticano não possui qualquer autoridade para falar de ‘relativismo moral’ pois essa é a sua moeda corrente. Um dos domínios onde isso é gritante – e só não vê quem não quer – é a questão dos direitos das mulheres no seio da Igreja. A Igreja não pode considerar que o mais alto papel a que uma mulher pode aspirar é lavar os pés do Papa e falar de duplicidade de critérios. Como não pode abençoar torcionários e autores de massacres e falar do direito à vida, ou amordaçar as opiniões divergentes no seu seio e falar dos direitos humanos. Ou condenar milhões de africanos a morrer de SIDA ameaçando-os com o inferno se usarem o preservativo e falar da piedade, do perdão e do amor de Cristo».

De facto, fico sempre espantada com a pesporrência totalitária de quem se arroga detentor das «verdades absolutas» reveladas, de quem acha que só a hierarquia da Igreja de Roma é competente para definir o que é a natureza humana da qual decorrem, sem discussão, os seus dogmas. Ou seja, estas «verdades absolutas» que não podem ser questionadas, resultam da interpretação desta natureza humana … pelos iluminados pelo espírito santo, outro dogma cristão. Claro que quem questiona estes dogmas são relativistas «infelizes que não receberam as graças de Deus» ou «não conheceram Jesus». O que redunda exactamente no tentar «impor aos não-crentes uma perspectiva de fé».

Para além das inconsistências morais referidas na crónica de José Vítor Malheiros, analisando a posição da Igreja de Roma ao longo da História verificamos ainda que, como para o resto da Humanidade, na realidade as «verdades absolutas» para a ICAR foram-se alterando com o tempo. Verdadeiro e falso são valores lógicos atribuídos a uma determinada proposição, ou seja, a verdade não pode ser absoluta, porque ela é um conceito que emitimos sobre uma proposição. Uma verdade de ontem pode não ser uma verdade hoje, porque o contexto em que essa verdade é avaliada mudou ou porque novos dados entretanto descobertos transformaram essa verdade em mentira. Isso aconteceu a muitas «verdades absolutas» da ICAR, não só as que foram desmistificadas (com grande oposição e muitas fogueiras inquisitoriais pelo meio) pela ciência, como o geocentrismo ou o criacionismo bíblico, mas também os «valores morais universais e absolutos» que foram, com grande resistência, abandonados pela Igreja de Roma. O anti-semitismo, a defesa da escravatura, a perseguição e assassínio de bruxos, hereges e apóstatas, a defesa do uso de tortura, a legitimidade das guerras «santas», a negação dos direitos dos homens, a defesa de regimes de «direito divino» e a condenação da democracia, a condenação da liberdade de expressão, a luta contra a emancipação da mulher, enfim, uma série de «erros» morais por alguns dos quais, difíceis de apagar dos livros de História, João Paulo II fez me(i)a-culpa.

Mas todas estas ex-verdades absolutas católicas só são reconhecidas hoje como abominações morais após muita resistência da Igreja, muitos discursos e encíclicas condenando os erros da modernidade, em tudo menos no assunto idênticos às prelecções contra a «ditadura do relativismo» do actual Papa. Que autoridade e credibilidade para falar em «valores morais universais e absolutos» tem uma Igreja que tantas vezes impôs dogmas falsos? Que perseguiu, torturou e muitas vezes queimou como hereges os que se atreveram a questioná-los?