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Uma fraude centenária

Relíquia sagrada? Não, apenas uma solução coloidal de óxido de ferro(III) hidratado, FeO(OH)

Um frasco selado contendo uma substância sólida acastanhada, supostamente o sangue seco de San Gennaro, o patrono de Nápoles, é mostrado há séculos numa catedral apinhada de crédulos fiéis que, no decorrer duma cerimónia solene, assistem ao «milagre» da liquefacção da massa sólida.

A liquefacção do sangue do «santinho» é uma parte integrante da vida de Nápoles e uma garantia de «boa sorte» para a cidade. O frasco é guardado num cofre na Catedral de Nápoles e é levado, com pompa e circunstância, para o altar-mor onde é submetido aos rituais específicos associados à cerimónia da liquefacção, que tem lugar três vezes por ano, em Maio, Setembro e Dezembro. Numa atmosfera rondando a histeria, após os hocus pocus e demais rituais necessários à manutenção da lenda urbana, o arcebispo, nos últimos anos o «ingénuo» Cardeal Michele Giordano, que tem alguma dificuldade em distinguir o seu dinheiro pessoal do da diocese,e que até à prisão deste financiava o seu irmão agiota Mario Lucio Giordano, ergue o frasco, agita-o e declara que o sangue se liquefez. A notícia é saudada com uma salva de 21 tiros no Castel Nuovo.

Como naquelas mensagens em cadeia, a lenda urbana desenvolvida em torno do «milagre» garante que a cidade será atingida por uma qualquer calamidade, seja uma erupção do Vesúvio ou a derrota do Nápoles, a equipa local de futebol, caso a cerimónia não tenha sucesso (provavelmente causado por um dignitário com uma sacudidela menos vigorosa).

Mas a cerimónia centenária foi ontem «manchada» pelas declarações de uma cientista italiana que afirmou que a liquefação não passa de uma fraude.

De facto, a astrofísica Margherita Hack afirmou que «Não há nada místico acerca disto. Vocês podem fazer este apelidado sangue na vossa cozinha».

A Professora Hack e restantes cientistas da Associação Italiana para o Estudo do Paranormal afirmam que o frasco contém simplesmente uma mistura química à base de um sal de ferro, mais especificamente FeO(OH), que data da Idade Média (mais ou menos quando se começaram a registar os ditos «milagres», em 1389).

Ou seja, o frasco vendido como um dos milagres mais estabelecidos da Santa Igreja, contém apenas uma mistura tixotrópica. A tixotropia é uma propriedade que determinados géis apresentam que lhes permite tornarem-se mais fluídos, podendo apresentar uma transição sólido-líquido, quando sujeitos a vibração, agitação ou outra forma de perturbação mecânica, solidificando quando deixados em repouso. Alguns exemplos comuns de géis que apresentam estas propriedades são alguns tipos de tintas ou mesmo a vulgar maionese.

Neste caso a substância sólida é um gel contendo FeO(OH), que se assemelha a sangue seco. Quando o gel é agitado durante as cerimónias dá-se uma mudança de fase e liquefaz, quando é guardado no cofre solidifica!

Como seria de esperar a explicação científica levantou um coro de protestos em Nápoles. O marquês Pierluigi Sanfelice, um dos guardiães oficiais do frasco «milagroso» afirmou que a Igreja Católica efectuou testes no frasco e confirmou que contém hemoglobina, uma proteína hémica que contém ferro e dá a cor característica ao sangue. Tanto quanto eu tenha descoberto estes testes não foram confirmados por alguma entidade idónea e competente!

Será pouco provável que a Igreja de Roma ceda o frasco para análise (não destrutiva e in situ) do seu conteúdo a alguma Universidade ou Instituto devidamente certificado (e independente) para o fazer…