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A Beira profunda

Três dias na Beira Alta devolveram-me aos lugares da infância, sítios onde Deus nunca morou e onde bandos de padres louvavam a glória, apregoavam a bondade e alardeavam os seus poderes.

A tristeza invade-me em cada regresso. Só os mortos permanecem nas povoações donde teimam em fugir os vivos. Os próprios campos, consumidos pelo fogo, parecem cenários dantescos, lúgubres e ainda mais negros ao pôr do sol.

Os padres que há meio século aterrorizavam os paroquianos com os rigores do Inferno foram desaparecendo. Fugiam à fome de famílias pobres, sofriam manhãs submersas em seminários a abarrotar e, muitos, acabavam a amedrontar paroquianos com a vingança divina e a apregoar as inanidades da sua Igreja.

Uns levou-os o tempo, outros trocaram a salvação da alma pelo aconchego da alcova, vários mudaram de ramo. Nem eles ficaram para celebrar a glória do Deus que era deles.

Hoje, vão às localidades, quase despovoadas, mulheres piedosas que levam a hóstia e rezam orações para que os velhos se confortem com os antigos rituais, agora exercidos no feminino que ainda julgam indigno do múnus.

O próprio diabo, que atazanava as almas das pessoas frágeis, emigrou. Foram-se as possessões e virou inútil o exorcismo.

Há mentiras piedosas que confortam. Deus era uma dessas aldrabices que regulava a vida e comandava a morte nas zonas rurais. Hoje, desertos os campos, despovoadas as aldeias, Deus reduziu-se à insignificância do mito enquanto a máquina do Vaticano, em desespero, se torna agressiva e inventa milagres.