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Serendipidade I

«Os limites da minha linguagem são os limites da minha mente. Tudo o que sei é aquilo para que tenho palavras» e «Os limites da minha linguagem significam os limites do meu mundo»

Ludwig Wittgenstein in Tractatus Logico Philosophicus

Ontem à noite tive um momento de serendipidade sobre algumas dúvidas transcendentes entre ciência e metafísica que começaram a invadir a blogoesfera. Enquanto revia um clássico de Jean-Luc Godard, Duas ou três coisas que eu sei dela, mais concretamente a cena fabulosa em que Juliette observa um jovem casal, com grandes planos de uma chávena cheia do negro luminoso do café com galáxias rodopiantes de natas, ilustrada pelas elucubrações da voz off do próprio Godard:

«Mas onde começar? Mas onde começar com quê? Deus criou o céu e a terra. Claro, mas essa é a saída fácil. Deve existir uma melhor forma de explicar tudo… Nós poderíamos dizer que os limites da linguagem são os limites do mundo… que os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo. E a esse propósito, qualquer coisa que eu diga deve limitar o mundo, deve fazê-lo finito».

A palavra metafísica foi cunhada casualmente por Andrónico de Rhodes, ao classificar a obra completa de Aristóteles em: lógica, física, metafísica (o que vem depois da física), moral e política. No que da obra aristotélica foi catalogado como Metafísica ou Filosofia Primeira distinguem-se ainda três subcategorias: o estudo dos primeiros princípios e das primeiras causas; o estudo do divino ou Teologia e o estudo do ser enquanto ser ou Ontologia.

As causas primeiras e princípios primeiros das coisas são quatro: causa material – matéria de que é feita uma coisa; causa formal – forma ou essência das coisas; causa eficiente ou motora; causa final – tudo no mundo se move para preencher uma necessidade. Entre as várias causas que determinam um acontecimento, a final é a mais importante, por exemplo, a causa final da chuva não é física, chove porque os seres vivos precisam de água.

As diversas ciências que se confundiam com a filosofia foram-se emancipando gradualmente da filosofia inicialmente considerada como saber universal. Primeiro a matemática, com a geometria de Euclides e a mecânica de Arquimedes, depois a física, com Galileu e Newton, libertaram-se da tutela metafísica de que dependiam. A química, separou-se da metafísica alquimia com Lavoisier. Finalmente, no século XIX, a biologia iria conquistar a sua independência, anunciada por Lamarck, desde 1802, e realizada por Claude Bernard. Hoje da Filosofia Primeira parece-me consensual que a metafísica se reduz a pouco mais que a ontologia, eventualmente a teologia e a metafísica transcendente ou das causas finais.

Qualquer confusão blasfema entre ciência e metafísica é assim ou um problema de demarcação de filosofia da ciência ou uma confusão linguística. Quiçá inspirada pela «viragem linguística» em Metafísica, expressa de modo claro por Davidson, no seu ensaio «The Method of Truth in Metaphysics», em que este afirma que uma investigação da realidade só pode ser alcançada através da investigação da linguagem.

Na realidade a linguagem, tal como o movimento, são desde sempre objecto da filosofia. Já Aristóteles, na Política caracteriza o homem, o zoon politikon (animal político), como sendo «o único entre os animais que possui o dom da linguagem». Martin Heidegger faculta à linguagem um sentido ontológico (principalmente em A caminho da linguagem, Unterwegs zur Sprache, Pfullingen, 1959). Ou seja, o fulcro da reflexão heideggeriana centra-se no ser, no sentido do ser e na linguagem: a linguagem é a porta do ser, a sua percepção do mundo, em resumo, o meio privilegiado de apropriação do real.

Ou, como tão bem o coloca Vergílio Ferreira em «Invocação ao meu corpo», a realidade e o mundo são «uma proposta muda para que falada exista».

(continua)