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Perseguições e mitos I

Todos os que vivem na sociedade Ocidental têm, em maior ou menor grau, conhecimento das grandes perseguições movidas pelo cristianismo (nas suas mais diversas variantes) a heréticos, apóstatas, infiéis, etc. Também é do conhecimento geral que os próprios cristãos foram vítimas de perseguição nos dias do Império Romano, antes de se imiscuírem profundamente no funcionamento da máquina burocrática. O que é desconhecido da maioria é quanto as acusações cristãs dos supostos crimes dos hereges bebem da sua própria história na antiguidade.

Para se ter uma ideia da visão pagã do cristianismo seria bom olhar para este extracto de Minucius Felix, um apologista dos cristãos, que data de cerca do fim do séc. II d.C. (neste episódio ele pede a um pagão para descrever as ideias que possui do cristianismo):

«Dizem-me que, movidos por algum impulso tolo, consagram e adoram a cabeça de um burro, o mais abjecto dos animais. É um culto digno dos costumes que lhe deram origem! Outros dizem que prestam reverência aos órgãos genitais do sacerdote que preside às cerimónias… Quanto à iniciação de novos membros, os detalhes são tão repulsivos como são conhecidos. Uma criança, coberta por massa para iludir os incautos, é posta à frente do candidato a noviço. O noviço apunhala a criança até à morte com golpes invisíveis; ele próprio, enganado pela massa que cobre a criança, pensa que os golpes são inofensivos. Depois – é horrível! – bebem sedentamente o sangue da criança e competem entre si pelos membros. Através desta vítima ficam ligados uns aos outros; e o facto de partilharem do crime força-os a todos ao silêncio. É também amplamente conhecido o que acontece nos seus festins… No dia do festim reúnem-se todos com as suas crianças, irmãs, mães, pessoas dos dois sexos e de todas as idades. Quando o grupo está animado de tanto comer, e a luxúria impura foi atiçada pela bebida, pedaços de carne são atirados a um cão que está amarrado a um candeeiro. O cão salta em busca da carne, indo além da extensão da corrente que o prende. A luz, que teria sido uma testemunha, é derrubada e apaga-se. Agora, na escuridão, tão favorável ao comportamento sem vergonha, eles contorcem-se nos laços de uma paixão que não pode ser nomeada, conforme o acaso decide. E assim todos eles são incestuosos, se não sempre em actos pelo menos por cumplicidade, pois tudo o que um deles pratica corresponde à vontade de todos… É precisamente o secretismo desta religião malévola que prova que tudo isto, ou quase tudo, é verdade.»(1)

Resumindo, as grandes acusações que saem deste texto são:
– Infanticídio
– Canibalismo
– Incesto

Estas ideias eram comuns na sociedade romana da altura e ilustram bem a imagem negra que o culto cristão possuía. Convém referir no entanto que estas ideias não eram universais, sempre houve escritores que duvidaram da veracidade de tais afirmações, sendo que em certos círculos a crença nestes mitos era ridicularizada. Mas também não se pode dizer que havia de uma distinção clara entre as classe eruditas de Roma e as massas supersticiosas e em grande medida ignorantes, pois em 112 d.c. Encontramos Plínio o novo como governador da Bítinia (Ásia Menor) a fazer investigações para verificar a autenticidade das acusações (2). E em cerda de 160 d.C. encontramos Cornelius Fronto a acusar publicamente os cristãos dos mesmo crimes (infanticídio, canibalismo e incesto) – Fronto era um senador respeitado e chegou a ser tutor do Imperador Marco Aurélio, sendo plausível acreditar que este esteve por detrás das perseguições movidas ao movimento cristão durante o reinado do seu protegido. Trata-se de facto de uma ideia que era transversal a todas as classes romanas. E mesmo não sendo universalmente aceite gozava de popularidade e de uma credibilidade aparente que foram suficientes para poder ser referida nos mais altos círculos sociais sem causar grande ultraje.

Tanta popularidade que em 177 d.c., em Lyons, deu-se uma das mais famosas perseguições à seita cristã (ou pelo menos uma das melhor documentadas) (3). O motivo inicial para a perseguição foi provavelmente apenas de ordem económica já que meses antes o imperador tinha autorizado a venda de prisioneiros para sacrifício na arena (o custo era significativamente menor do que comprar um gladiador e todas as despesas dos jogos corriam por conta dos grandes proprietários locais) (4). Fica portanto estabelecido um motivo mas não é claro quais foram as respectivas percentagens de interesse e de mito que incitaram o incidente. O certo é que as autoridades e a população colaboraram no processo. Sendo que os escravos dos acusados foram torturados de forma a obter testemunhos que corroborassem as acusações (um método ao qual a santa madre igreja daria bom uso em séculos vindouros). Claro que isto só contribuiu para o fortalecimento dos mitos já existentes e muitos dos indiferentes ao cristianismo passaram a ser abertamente hostis.

Antes de analisar a veracidade de tais acusações convém compreender onde é que está a sua origem, pois se é verdade que os ódios e rivalidades locais podem explicar parte das perseguições eles não explicam tudo. Embora a cultura clássica tenha em grande parte sido destruída estes mitos que tiveram origem no seu seio foram repetidos até á exaustão em perseguições ao longo da história (embora sofrendo sucessivas adaptações ao monoteísmo e o acréscimo de alguns detalhes particulares às respectivas épocas).

(continua em breve)

(1)- Minucius Felix, Octavius – cap. IX e X
(2)- Plínio o novo, epístola X
(3)- Eusebius, Historia Ecclesiastica
(4)- J. Vogt, ‘Zur Religiositat der Christenverfolger im romischen Reich’