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O catolicismo é uma doutrina relativista

Não falta quem, na sequência da entronização do «anti-relativista» Ratzinger (e movido mais por razões políticas do que teológicas), elogie a ICAR como um baluarte de «verdades intemporais» que supostamente «atravessam o tempo» e pretensamente se opõem ao «relativismo» que atribuem à época contemporânea. Em boa verdade, esta visão simplista esquece que o catolicismo romano, como a generalidade das doutrinas humanas, é relativista.

Efectivamente, a ICAR justificou doutrinariamente, durante a maior parte dos últimos quinhentos anos, a perseguição e o genocídio de minorias religiosas e filosóficas. Hoje, os católicos declaram, e com uma veemência tal que eu sou levado a assumir que estão de boa fé, que essas práticas foram condenadas doutrinariamente. Relativizaram-se portanto os argumentos genocidas e anti-semitas da doutrina católica, relativização essa que foi imposta de fora, mas que nem por isso deixa de ser de saudar.

Outro exemplo do relativismo católico é a defesa supostamente inflexível de uma (vaga) «lei natural», que hoje nos dizem proscrever a homossexualidade, mas que até ao ano muito recente de 1878 não impedia a ICAR de encorajar as castrações praticadas em crianças com o objectivo de fazer eunucos que abrilhantassem, em tons agudos, os coros do Vaticano. Uma castração parece-me uma violação da «lei natural» (entendida, por mim, como o respeito pelas características inatas do animal humano) muito mais óbvia do que a homossexualidade. Novamente, a ICAR aproximou-se neste caso de um princípio ético, a integridade da pessoa humana, que se afirmara em oposição ao catolicismo.Deve acrescentar-se que ainda em 1866 Pio 9º defendia que a escravatura «de forma alguma é contrária à lei natural e divina» e que a liberdade de culto devia ser negada aos não católicos. Também aqui a ICAR relativizou a doutrina, principalmente a partir do Concílio Vaticano 2º.

Um assunto de grande importância dogmática e no qual a relativização da doutrina católica é flagrante é o dogma da Imaculada Concepção de Maria. Trata-se de uma invenção modernista com uns meros 150 anos, que reflecte a adaptação ao papel das mulheres nas sociedades pós-rurais, em que estas deixaram de viver em meios fechados e passaram a ser submetidas às tentações pecaminosas das praças urbanas.

Conclui-se portanto que a ICAR é relativista na doutrina ética e mesmo nos dogmas, ou seja, adapta-se aos tempos e aos costumes, no que não difere, aliás, de outras instituições humanas.
Formalmente, é claro que a ICAR não é relativista quando afirma que a origem da sua doutrina é divina e portanto exterior ao mundo a que todos temos acesso pelos sentidos e pela razão, e neste aspecto assemelha-se ao Islão. No entanto, as únicas «verdades intemporais» que a ICAR verdadeiramente perpetua (no sentido de as manter quase inalteradas desde a concepção, histórica e culturalmente relativa, da doutrina católica) limitam-se a extravagâncias como a «ressurreição» de JC, a presença «real» de JC no pão e no vinho da missa e a imortalidade da «alma». Todas estas «verdades intemporais» são disparates evidentes que qualquer adolescente com um mínimo de formação científica percebe que não passam, numa visão benigna mas herética, de metáforas. No entanto, ao manter estes dogmas a ICAR procede a outro tipo de relativização, a relativização da realidade física. Acontece que a realidade material, o mundo físico, não é de todo relativizável, ao contrário do que argumenta a ICAR (aqui, apoiada pelo pós-modernismo)(*).

Pelo contrário, os princípios éticos podem e devem evoluir, e têm-no feito quase sempre contra a doutrina católica que, como vimos, mantém hoje muito pouco daquilo que defendeu na maior parte dos últimos 1700 anos. O papel da ICAR, historicamente, tem sido de resistência ao progresso político, científico e ético, e por isso a instituição romana é uma favorita dos conservadores políticos e dos obscurantistas. Com Ratzinger, é-o sem ambiguidades.
(*) A ciência permite compreender e descrever a realidade, mas por métodos que tentam (e, geralmente, conseguem) ultrapassar os relativismos culturais, por serem acessíveis a todos independentemente da cultura de origem.