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Direito divino I

«Mas esta prescrição da razão não poderia ter força de lei se não fosse a voz e o intérprete de uma razão mais alta, à qual nosso espírito e nossa liberdade devem submeter-se.» (Leão XIII, encíclica Libertas Praestantissimum, 1888)

«O totalitarismo nasce da negação da verdade em sentido objectivo: se não existe uma verdade transcendente, na obediência à qual o homem adquire a sua plena identidade, então não há qualquer princípio seguro que garanta relações justas entre os homens.» (João Paulo II, encíclica Centesimus Annus, 1991) «o risco da aliança entre democracia e relativismo ético, que tira à convivência civil qualquer ponto seguro de referência moral, e, mais radicalmente, priva-a da verificação da verdade.» (João Paulo II. encíclica Veritatis Splendor, 1993).

As críticas recentes de vozes da Igreja ao Direito actual, nomeadamente do Papa que afirma no seu mais recente livro, «Parlamentos que criam e promulgam essas leis devem estar conscientes de que transgridem os seus poderes e se colocam em conflito aberto com a lei de Deus e a lei natural» constituem uma subida de tom nos esforços do Vaticano em abolir o juspositivismo, que enferma do que a Igreja designa de concepções erróneas da verdade, e substituí-lo pela sua versão exegética do jusnaturalismo. É muito preocupante esta anacrónica defesa do direito divino tridentino que reflecte o desejo do regresso aos bons velhos tempos em que a Igreja ditava as normas sociais, ancorada no Direito vigente.

O que deveria ser então para a Igreja os fundamentos do Direito? Como diz o catecismo católico, o Direito Natural, claro, entendido como direito divino interpretado por Roma, que «fornece os fundamentos sólidos sobre os quais pode o homem construir o edifício das regras morais que orientarão as suas opções. Ela assenta igualmente a base moral indispensável para a construção da comunidade dos homens. Proporciona, enfim, a base necessária à lei civil que se relaciona com ela, seja por uma reflexão que tira as conclusões de seus princípios, seja por adições de natureza positiva e jurídica.»

Ou seja a Igreja tenta impor as interpretações do Direito, velhas de séculos, dos grandes teólogos ainda venerados e recomendados por Roma: Agostinho de Hipona (354-430 d.C.) e Tomás de Aquino (1225-1274). O primeiro pregava que se as leis terrenas contivessem disposições contrárias à lei de Deus não teriam vigência e não deveriam ser obedecidas. «Onde é, então, que se acham inscritas essas regras, senão no livro desta luz que se chama a verdade? Aí está toda a lei justa, dali ela passa para o coração do homem que cumpre a justiça, não que emigre para ele, mas sim deixando aí a sua marca, à maneira de um sinete que de um anel passa para a cera, mas sem deixar o anel.» (De Trin., 14,15,21).

Tomás de Aquino classifica as leis em três tipos: a lex aeterna (advinda da razão divina); lex naturalis (conhecida pelos homens através da razão, é reprodução imperfeita e parcial da lex aeterna) e lex humana (lei positiva produto do homem), afirmando que «A lei natural outra coisa não é senão a luz da inteligência posta em nós por Deus. Por ela, conhecemos o que se deve fazer e o que se deve evitar.» (Decem praec., 1) e que por outro lado que «uma lei positiva, diversa do direito natural é injusta e, portanto, não obrigatória» já que «é preciso obedecer antes a Deus que aos homens» (obedire oportet deo magis quam hominibus).

Como já apontei há uns meses, assistimos a grande pressão pela Igreja de Roma para a negação da laicidade dos Estados, com ênfase a nível do Direito. Para um regresso aos tempos em que ninguém duvidava da autenticidade da falsificação mais famosa da História, a doação de Constantino, «Constitutum domni Constantini imperatoris», que legitimava o Papa como supremo mediador entre Deus e os governantes, indicando-lhes qual a vontade de Deus que deveria ser transposta para as leis que regiam os respectivos Estados.

Como termina o excelente artigo de denúncia ao fundamentalismo papal no Expresso de hoje de Daniel Oliveira , «Choque e espanto, A lei divina»:

«A Arábia Saudita é só o que, se não resistíssemos sempre a estas ofensivas, poderíamos todos vir a ser»