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Foi Natal.

Recentemente muitos celebrámos um dia que se associa à mitologia Cristã. É certo que esta celebração é muito mais antiga, originalmente ligada ao solstício de Inverno, mas marca hoje em dia um dos acontecimentos principais para os Cristãos: o nascimento do seu deus. O único que o rivaliza é a Páscoa, também uma celebração muito anterior ao Cristianismo, mas que agora marca a morte do seu deus.

E isto dá que pensar. Parece que os principais marcos do Cristianismo são o nascimento e a morte do seu deus. O próprio credo Católico parece resumir a história de Jesus a isto:

«Creio em Deus Pai todo-poderoso, Criador do Céu e da Terra; e em Jesus Cristo, seu único Filho, Nosso Senhor; que foi concebido pelo poder do Espírito Santo; nasceu da Virgem Maria; padeceu sob Pôncio Pilatos; foi crucificado, morto e sepultado; desceu aos Infernos; ressuscitou ao terceiro dia; subiu aos Céus; está sentado à direita de Deus Pai todo-poderoso, de onde há de vir a julgar os vivos e os mortos. Creio no Espírito Santo; na Santa Igreja Católica; na Comunhão dos Santos; na remissão dos pecados; na ressurreição da carne; na vida eterna. Amén.»

Não terá esta história coisas mais importantes que um nascimento milagroso, uma morte dolorosa, e uma ressurreição?

Há vinte séculos foram escritas muitas histórias acerca de Jesus. A Bíblia Católica contém quatro evangelhos seleccionados especificamente pela forma como se encaixam, para minimizar contradições. Mas mesmo estas, selecção limitada, não foram escritas com intuito de serem crónicas rigorosas da vida deste personagem. Foram escritas como expressões de ideologia, que codificassem os princípios deste movimento religioso.

Mesmo que não possamos dizer se existiu um Jesus de facto, se era um personagem composto de vários episódios que tenham acontecido a várias pessoas, ou se era apenas um personagem metafórico e imaginário, o facto é que houve um grande esforço filosófico e literário por detrás destas obras, quer dos evangelhos quer das várias cartas escritas pelos fundadores do Cristianismo. Vejamos alguns.

«Amarás o teu próximo como a ti mesmo» Gal.5:14. Inovador na altura, e muito actual hoje em dia. Não só amar, mas respeitar os outros como a nós próprios. Igualdade, liberdade, fraternidade. Uma ideia central na nossa sociedade moderna. Infelizmente, não para a Igreja Católica, onde as mulheres são discriminadas e onde uns são mais iguais que os outros.

«Então Jesus entrou no templo, expulsou todos os que ali vendiam e compravam» Mat 21:12. O Jesus desta história era obviamente contra a comercialização da religião. Mais, as suas críticas aos Fariseus, os seus ensinamentos que a oração devia ser privada, a sua rejeição da autoridade religiosa de então, da soberba das vestimentas, do ritual repetitivo e pouco sincero, tudo isto transmitia uma ideia que pode ser facilmente projectada na nossa sociedade moderna: a religião como algo pessoal e privado, e que deve estar separada do poder político e económico. Mais um ensinamento importante que a Igreja Católica esqueceu. A Igreja Católica controla vastos fundos mas não paga impostos. Uma Concordata com o Estado Português confere-lhe poderes à margem da lei do nosso país. O ritual público, a hierarquia da Igreja, a própria forma como os seus líderes se vestem vão contra estes ensinamentos. Se Mateus ressuscitasse hoje, o comércio em Fátima matá-lo-ia de desgosto.

«Aquele dentre vós que nunca pecou atire-lhe a primeira pedra» Jo. 8:7. O perdão. A tolerância. Não julgar os outros só porque os nossos valores são diferentes. Mais um importante exemplo, mais um princípio fundamental na nossa sociedade multi-cultural, que a Igreja Católica prefere ignorar. A homossexualidade, a contracepção, a crítica sã, entre outras, são sistematicamente condenadas pela Igreja Católica. Até o ateísmo, pois mesmo que já não nos queimem em vida (felizmente!) ainda nos condenam ao fogo eterno por rejeitarmos o seu deus.

Como ateu não me fio na alegada origem divina destes ensinamentos. Mas, como ateu, sei que não precisamos de deuses para ter boas ideias, e respeito estas ideias que tiveram os autores do Novo Testamento.

Por isso entristece-me que uma organização como a Igreja Católica, supostamente a guardiã destes valores, prefira focar os aspectos supersticiosos dum nascimento milagreiro, ou o acto eticamente questionável de crucificar um inocente para salvar pecadores, ou exigir aos crentes que afirmem repetidamente que acreditam “na Santa Igreja Católica”.

Aproveitando o espírito natalício Cristão, pedia um favor aos Católicos. Quando disserem o Credo, substituam a afirmação de crença na Igreja pela crença na igualdade, na fraternidade, e no respeito pelos valores e crenças dos outros. Não só ficará o vosso credo mais próximo da ideia original, mas ajudarão o Cristianismo, outrora na vanguarda destes valores, a recuperar um pouco do seu grande atraso em relação à nossa sociedade.