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Ainda o princípio antrópico, I: pescadinha de rabo na boca

Há uns dias tive oportunidade de escrever aqui a minha opinião sobre o Circulus In Demonstrando ou verdade de La Palice que dá pelo nome princípio antrópico, apresentada como uma alternativa deísta ao evolucionismo «ateu». Uns dias depois, em conversa com o presidente do CENTRA, o Centro Multidisciplinar de Astrofísica do Instituto Superior Técnico, Jorge Dias de Deus, um paradigma nacional em divulgação científica, pedi-lhe uma contribuição para o Diário Ateísta sobre esse e outros temas.

O Jorge informou-me que já tinha dissertado sobre o assunto, nos longínquos finais do século XX, quando todos pensávamos que a religião não seria sequer um parâmetro equacionável na descrição do «ser» do Universo, quando o Jorge afirmava que «a Evolução é uma das noções que, após grandes reacções de fundamentalismos vários, mais fortemente se enraizou na tradição científica», muito menos teria a evolução catastrófica para o progresso da Humanidade a que o dealbar do século XXI assistiu.

Assim, enquanto todos esperamos futuras contribuições, deixou-me com uma palestra que apresentou em Julho de 1998, no âmbito de uma iniciativa de divulgação científica, os V Cursos Internacionais de Verão de Cascais.

Palestra que, por ser demasiado extensa para transcrição na íntegra, partilho parcialmente em duas partes com os leitores do Diário Ateísta.

«Há um princípio, Princípio Antrópico, que pretende demonstrar que o número de civilizações inteligentes é necessariamente maior ou igual a um e, para os defensores mais extremistas do princípio, o número é exactamente igual a um. Trata-se efectivamente de uma tentativa de recuperar um sentido para o Mundo, através de um princípio teleológico, correspondendo a uma actualização das ideias de Teilhard de Chardin.

O Princípio Antrópico, na sua versão «fraca» diz que:

1) as forças da Natureza Têm as intensidades e alcances que têm:

2) as massas, cargas e outras características das partículas têm os valores que têm;

3) o Universo tem a idade que tem, de modo a permitir a existência e evolução da Vida (com base no carbono).

Em relação ao Universo, já vimos que a sua idade (na ordem de 1010 anos) é compatível com a evolução (cerca de 109 anos para que se chegue, por Evolução, à Vida Inteligente). Se fosse mais velho haveria menos estrelas a funcionar (teriam já gasto o seu combustível nuclear) e a probabilidade de se encontrar um Sol e uma Terra baixaria enormemente. Se fosse muito mais novo não teria havido tempo para o aparecimento de um Sol e de uma Terra, e não teria havido tempo para a evolução.

Quanto às massas das partículas, se a massa do electrão fosse 200 vezes maior do que é (se fosse igual à massa do muão) o átomo seria 200 vezes mais pequeno e nós seríamos igualmente 200 vezes mais pequenos! De facto, a situação é mais dramática do que isso: com átomos 200 vezes mais pequenos os electrões (de carga negativa) ficam dentro do campo dos protões (de carga positiva) do núcleo, sendo por estes capturados com a produção de neutrões e neutrinos (de carga zero). Os núcleos acabariam por ser instáveis e, por exemplo, as estrelas ficariam neutras, incapazes de produzir luz, que é uma pré-condição essencial para a vida. Dito de outra maneira: não haveria Sol!

Mas haverá, sim ou não, algo de misterioso nestas – chamemos-lhe assim – coincidências? É difícil de dizer onde é que está a boca e onde é que está o rabo da pescadinha: mas realmente parece um problema de pescadinha de rabo na boca. Não viveremos, talvez, no «melhor dos Mundos», mas temos de viver num Mundo onde possamos viver. Ou então não viveríamos.

Portanto, o Princípio Antrópico, nesta versão fraca, só serve para chamar a atenção para a necessidade de consistência entre as características da Vida inteligente conhecida, e as características do Mundo exterior. Em certa medida, o Princípio é tautológico. Por outro lado, nesta versão, não é de modo algum inconsistente com a evolução e o darwinismo. Limita-se a dizer: se eu existo têm que existir pré-condições para a minha existência.»

(continua)