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A Concordata é uma refeição indigesta cozinhada com incenso e água benta

Após 30 anos de liberdade, a ICAR, que fez um percurso discreto de transição para a democracia, decorrido o período de nojo a que a cumplicidade com a ditadura aconselhava, reapareceu com a manha de sempre, não a promover a igualdade de todos os cidadãos perante a lei, mas a exigir mais igualdade para alguns ? neste caso para si. Reivindica como fonte do direito a tradição e a Concordata, uma e outra anacrónicas, ambas a merecer que o pudor as esquecesse.

O regime democrático prescindiu do direito de veto às nomeações episcopais e abdicou de ter a Igreja Católica refém. Esta, porém, não prescinde de privilégios adquiridos por um tratado obsoleto que a ditadura celebrou com um papa autoritário e anti-semita.

A chantagem sobre o Governo de Cavaco Silva permitiu-lhe obter de forma indigna um canal de televisão cuja falência conduziu ao fracasso de projectos mais ambiciosos de domínio da sociedade portuguesa.

Agora, com o Governo de Durão Barroso e a cumplicidade do PS, a ICAR obteve uma lei da liberdade religiosa profundamente iníqua e com a doutrina a ser vertida na nova concordata. O PSD e o CDS, de cócoras, e o PS e o PCP, genuflectidos, deixam Portugal, algures entre a França e o Afeganistão, com um tratado iníquo sofrivelmente compatível com a Constituição. A igualdade dos cidadãos perante a lei é uma miragem e o carácter laico do Estado uma quimera.

Continua fidelíssimo o reino. Não pensa, reza. Não se revolta, benze-se. Não se revê na Assembleia da República, deixa-se representar pela Conferência Episcopal, detentora de direitos especiais.

A Concordata não pode ser uma prenda oferecida a um pontífice pela passagem do seu 84.º aniversário, nem a Universidade Católica a contrapartida da oferta da batina do 3.º milagre a Fátima ou das promoções a beatos e santos prometidas para duas dezenas de bem-aventurados portugueses que aguardam transporte para os altares. Foi a instituição de uma suave Sharia romana com o empenhamento das sacristias, a orquestração da nunciatura e a cobardia dos aparelhos partidários.

Portugal está a caminho de tornar-se um protectorado do Vaticano, vergado ao peso da Cúria, asfixiado pelo incenso, afogado em água benta.

A revisão da Concordata deu lugar à prepotência clerical contra a sociedade laica, acolhida por um governo beato, com um país atónito e a oposição atordoada.

A santa aliança protagonizada pelo arco totalitário dos devotos em torno da imposição da fé e da exigência de privilégios para uma religião, substitui o trabalho de evangelização, de resultados duvidosos, pela prepotência estatal de eficácia mais provável.

As democracias sujeitam-se ao escrutínio eleitoral, as teocracias impõem o arbítrio eclesiástico apelidado de vontade divina.