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Dia: 9 de Abril, 2009

9 de Abril, 2009 Ludwig Krippahl

O milagre como causa

Em breve será canonizado o Nuno Álvares Pereira, guerreiro, patriota, cristão devoto e oftalmólogo honoris causa. Uma parte do processo de canonização «consiste no exame dos milagres atribuídos à intercessão do “venerável”. Se um deste milagres é considerado autêntico, o “venerável” é considerado “beato”. Quando após a beatificação se verifica um outro milagre devidamente reconhecido, então o beato é proclamado “santo”, como acontecerá com D. Nuno Álvares Pereira.» (1)

O primeiro problema é concluir que o milagre é autêntico, como apontou David Hume. Um milagre é algo contrário às leis da natureza. Se estiver de acordo com o que consideramos natural não é um milagre, mesmo que seja invulgar. Usando o exemplo de Hume, uma pessoa aparentemente saudável morrer de repente não é um milagre. É raro mas não viola qualquer lei da natureza. Milagre é ressuscitar depois de morto três dias. Isso sim violaria o que esperamos ser a forma como a natureza opera.

Mas só apontamos como uma lei da natureza aquilo em que temos o máximo de confiança que se pode justificar. Aquilo que verificamos ocorrer sem excepção. É por isso contraditório afirmar que algo é uma lei da natureza e, ao mesmo tempo, que um milagre a violou. Se conhecemos uma excepção já não podemos concluir que é uma lei da natureza. Ou, como argumentou Hume, não podemos aceitar um milagre com base no testemunho seja de quem for porque nunca o testemunho de uma pessoa, ou mesmo de muitas, pode ser um fundamento mais sólido do que aquele que exigimos para designar algo como lei da natureza (2).

Outro problema é identificar o milagreiro responsável. A senhora Guilhermina pediu a cura ao Condestável mas, na sua aflição, certamente também terá proferido muitos “Ai Jesus”, “Valha-me Nossa Senhora” ou “Deus me acuda”. E nada impede que outro santo se tivesse compadecido do seu sofrimento e, mesmo sem invocação, pedido a cura ao Altíssimo. É por isso precipitado, e especulativo, proclamar Nuno Álvares Pereira como o milagreiro neste caso.

E há ainda outro problema. Mesmo supondo que houve milagre e que Nuno Álvares Pereira tenha pedido a Deus que curasse o olho da senhora Guilhermina, só podemos atribuir a cura ao beato se estabelecermos uma relação causal entre o pedido, o milagre e a cura. Ou seja, se pudermos concluir que a intercessão do beato causou a intervenção divina e que a resultante suspensão das leis da natureza causou a cura à senhora Guilhermina. Sem estabelecer uma relação causal apenas podemos constatar uma co-ocorrência que pode ser mera coincidência. E não se quer santos por coincidência. Julgo eu.

Uma causa é um factor sem o qual o efeito não ocorre e que obriga a ocorrência do efeito se estiver presente, sendo todos os outros factores constantes*. Por isso podemos inferir uma relação causas se controlarmos os outros factores. Por exemplo, num grupo de pessoas com lesões oculares causadas por óleo quente testamos uma terapia em metade e comparamos os resultados com os restante, não tratados, que servem de controlo. Assumindo que todos os outros factores são semelhantes ou aleatoriamente distribuídos pelo grupo, qualquer correlação é indicativa de uma relação causal entre terapia e cura. Infelizmente, isto não se pode fazer com santos milagreiros. Pode-se fazer com médicos, medicamentos ou qualquer terapia mas, por alguma razão, os santos iludem qualquer tentativa rigorosa de examinar o seu trabalho.

A outra forma de estabelecer uma relação causal entre é conhecendo o mecanismo pelo qual uma causa produz um efeito. Se a bola branca bate na bola preta e esta última começa a rolar posso afirmar que o seu movimento foi causado pela colisão porque compreendo o mecanismo. Só que isto também não se aplica aos milagres. O mecanismo pelo qual os santos pedem favores a Deus pode ser semelhante ao que se passa por cá, mas o passo seguinte é um mistério absoluto.

Mesmo assumindo que Deus suspendeu a operação normal da natureza no momento da cura da senhora Guilhermina não podemos concluir que essa suspensão causou a cura. Porque nem podemos procurar uma correlação entre ambos numa experiência controlada que elimine a correlação com outros factores, nem conhecemos o mecanismo pelo qual suspender as leis da natureza pode curar um olho. E nunca poderemos conhecê-lo, porque todos os mecanismos que conseguimos compreender são aqueles que fazem parte das regularidades que podemos observar na natureza.

Antecipando já a confusão costumeira, deixo claro que não pretendo demonstrar a falsidade do milagre, da cura ou do santo. Parece-me que esta cura milagrosa é uma treta, mas não é isso que estou a defender aqui. O que quero defender é que a conclusão da Igreja Católica é infundada. Não têm, nem poderão alguma vez ter, evidências que justifiquem concluir que ocorreu um milagre, que o milagre causou a cura e que foi a intercessão deste homem morto que causou o milagre. Mais uma vez, vendem pura especulação como se fosse conhecimento.

* Se for um factor causal determinista. A coisa complica-se um pouco quando os factor causal é probabilístico, mas a ideia é a mesma. E não me parece que seja suposto Deus fazer milagres com margem de erro e intervalo de confiança.

1- Agência Ecclesia, 3-7-08, Papa reconhece milagre do Beato Nuno de Santa Maria
2- Um excerto do texto original de Hume está em Modern History Sourcebook: David Hume: On Miracles, por Paul Haslall.

Em simultâneo no Que Treta!

9 de Abril, 2009 Carlos Esperança

O peregrino D. Aníbal I e a laicidade traída

coche_joao_v1No próximo dia 26, parte para Roma um luzidio séquito chefiado por Sua Sereníssima Majestade D. Aníbal I, acolitado pelo presidente das cortes, D. Jaime Gama, o ministro dos Negócios Exteriores da Propagação da Fé, D. Luís Amado, o Condestável D. Valença Pinto, o cardeal do reino D. José Policarpo, o Superior da CEP e portador do hissope, D. Jorge Ortiga, o Superior da Ordem do Carmo em Portugal, padre Agostinho Marques de Castro, e o estribeiro-mor, Sr. Duarte Pio, especialista em solípedes que se ajoelham – autor, aliás, de um opúsculo de referência sobre a devoção dos cavalos de D. Nuno –, de quem se reclama familiar. De D. Nuno, claro.

O cortejo é composto por devotos que exaltam D. Nuno e exultaram quando ele, na paz da longa defunção, acudiu ao olho esquerdo de D. Guilhermina, atingido por salpicos ferventes de óleo de fritar peixe. Era o prodígio que faltava para a canonização de quem foi mais destro a matar castelhanos do que a pôr pensos. Após o milagre, por prudência e pela idade, D. Guilhermina trocou os fritos pelos cozidos.

A embaixada é inferior à que D. João V enviou a Clemente XI mas D. Aníbal I não é esbanjador nem procura de Bento XVI o título de «Senhor Fidelíssimo», ainda que o mereça no que se refere à fé e à constância matrimonial.

O reino anda aturdido com a honra da canonização do taumaturgo com provas dadas na especialidade de oftalmologia. É pena continuar morto, mas sendo uma ofensa para a razão é um orgulho para a fé que continue a pelejar, agora no ramo dos milagres.

Falta D. Guilhermina na peregrinação, para contar aos fidalgos como, perante a dor da queimadura, não se lembrou de Gil Vicente com palavras que, não sendo adequadas à salvação da alma, aliviam a dor, e se lembrou de evocar o bem-aventurado Condestável que o clero autóctone ansiava canonizar desde os tempos da Cruzada Nun’ Álvares.

Os ilustres peregrinos não vão a Roma bajular o Papa, vão agradecer a deus a cura do olho esquerdo da D. Guilhermina de Jesus.

Quando a luzidia embaixada regressar à Pátria, com os joelhos doridos das genuflexões, a pituitária irritada do incenso e os corpos enegrecidos pelo fumo das velas, espera-se que o país rasteje de júbilo por mais uma farsa pífia e tantas genuflexões pias.