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A confissão

Texto de Onofre Varela, previamente publicado na imprensa dividido em duas partes. Em baixo podem encontrar o texto completo.

Parte I:

Da minha meninice de escola primária, lembro que um dia fui levado em grupo para a igreja. Não sabia ao que ia. Dentro do templo formamos duas filas em frente de duas cadeiras de grande espaldar, onde se sentavam dois padres, um em cada lado da nave. Era a primeira vez que entrava numa igreja. Vi os meus colegas da frente das filas ajoelharem quando chegavam junto do padre. Entre eles havia uma troca de palavras, para mim imperceptíveis, e comecei a sentir-me inquieto. Não fazia ideia do que iria acontecer quando chegasse a minha vez. Sentia uma brasa no peito a queimar-me por dentro. Chegado o momento de ficar em frente do padre, fiz o que vira fazer. Ajoelhei e esperei o que viesse… sem fazer qualquer ideia do que poderia vir!

O padre, de queixo enfiado no peito, disse algo em tom de voz tão baixo, que não percebi. Ele usava barba e bigode que lhe tapava a boca impedindo-me de ler o movimento dos lábios. Mantive-me em silêncio a olhá-lo, siderado, sentindo o cheiro a naftalina que o seu hábito branco exalava.

Ele levantou a cabeça com lentidão e olhou-me. O coitado deve ter visto a expressão mais aparvalhada de toda a sua vida, e imagino que repetiu o que acabara de dizer e que dessa vez percebi:

– Diz a confissão. – Pedido estranho!… Não fazia ideia nenhuma do que ele queria que eu dissesse…

– Não sei. – Respondi, com a boca seca pelo nervosismo já transformado em pânico.

Nunca tinha experimentado aquilo, nem sabia o que haveria eu de confessar! Haveria algum acto praticado, do qual eu deveria desculpar-me àquele padre?!…

Senti que o dia, até aí solarengo, se transformou em tormenta. Invadia-me um negrume; não sabia o que era a confissão… e encontrava-me sozinho no mundo sem ter alguém que me pudesse socorrer na aflição que ali se abatia sobre mim.

Salvou-me o que o sacerdote disse logo a seguir:

– Então vai para casa aprender, e quando souberes volta cá.

Fez-se Sol na minha alma! Levantei-me rapidamente sentindo-me leve… e saí dali.

Nunca quis aprender a confissão, nem tive vontade de voltar a entrar numa igreja!…

Esta experiência de infância obriga-me a acrescentar algo mais ao discurso. Ela levou-me a pensar, já em idade adulta, na estratégia usada pela Igreja para prender a consciência das crianças mais tenrinhas ao credo católico, com a finalidade de acorrentar aquelas almas à fé. No meu caso particular essa estratégia funcionou ao contrário. Repeliu-me… soltou-me, em vez de me prender.

O que a minha consciência me disse desta experiência, relatarei na próxima edição, porque para esta já esgotei o espaço… 

(Continua)

Parte II:

Aquela estranha atitude do professor primário conduzir os alunos para a igreja com o intuito de as crianças se confessarem (“estranha atitude” digo eu, hoje. Na época era uma obrigação decretada pelo Estado Novo de Oliveira Salazar. Lembremos que estávamos em 1952) levou-me, muito mais tarde, já em idade de ter pensamento próprio, a este raciocínio:

Tenho dúvidas de que uma criança de oito anos entenda o que é a “confissão católica”. Provavelmente, nem uma boa parte dos adultos beatos que desferem punhadas no peito a entenderá.

Para existir uma confissão, no sentido de se obter um perdão, tem de, antecipadamente, existir um delito que justifique aquele acto de confidência (e pura fé) a um sacerdote. E depois, esta confissão do delito não o elimina… pois é necessário compensar a vítima que prejudicamos com a nossa acção delituosa. Essa função de julgamento, condenação, absolvição ou perdão, pertence aos tribunais… não à Igreja!

A função da Igreja no acto da confissão está a outro nível. Enquanto que a minha culpa é redimida após uma conversa com quem desrespeitei ou prejudiquei, sanando o conflito (ou é condenada por um tribunal que me leva a expiar com prisão ou multa, a falta que tive) a confissão católica remete o perdão da minha falta com alguém, para a responsabilidade de Deus!… Sinto-me perdoado pela divindade da minha crença… mas aquele a quem prejudiquei continua prejudicado sem ser ressarcido dos danos que lhe causei… porém, eu fico na maior leveza de consciência porque Deus me perdoou!…

Isto é, simplesmente, indecente!… É de um egoísmo extremo, premiando o prevaricador e esquecendo o prevaricado. Há na confissão católica uma atitude psicológica que será positiva para o faltoso, podendo este, eventualmente, emendar o erro e jamais voltar a cometê-lo (do que duvido)… mas o outro, aquele a quem o faltoso prejudicou, continua prejudicado.

Era este tipo de “confissão a Deus” que queriam de mim aos oito anos de idade, envolvendo-me, contra a minha vontade, num acto que eu desconhecia!… Acto puramente religioso, de fé, primitivo e sem nexo para quem tenha dois dedos de testa!… Era assim (e se calhar ainda é) que a Igreja pescava crentes para fornecer a sua lota. No meu caso partiu-se a linha e perdeu-se o anzol com o isco, pois não voltei à igreja!…

O sentimento de culpa que resulta de uma transgressão, só poderá ser anulado mediante uma reconciliação com o outro num processo de pacificação. Esta é a naturalidade da resolução de um conflito. Porém, se o transgressor for um crente na divindade, nessa tentativa de reconciliação entra um outro elemento estranho ao problema, já que a reconciliação envolve a relação com Deus!…

(Se você, leitor, é crente e se sente bem depois de ter confessado os seus maus actos a um sacerdote, pensando estar perdoado pelo deus da sua crença… óptimo. Isso é muito bom para si!… Mas não se esqueça de falar com quem prejudicou, apresentar-lhe as suas desculpas… e indemenizá-lo, se for caso disso. Está combinado?… Tome lá um abraço)

(O autor escreve sem obedecer ao último Acordo Ortográfico) 

OV

Imagem de Hands off my tags! Michael Gaida por Pixabay