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Cirilo I e a Guerra de Putin

Texto de Onofre Varela, previamente publicado na imprensa.

No suplemento cultural “La Lectura” do jornal espanhol “El Mundo” (edição do último dia 23 de Setembro), leio uma entrevista que a escritora russa exilada em Berlim, Liudmila Ulítskaya, de 77 anos, deu à jornalista Marta Rebón. Acabada de ser premiada, Liudmila considera que o prémio “foi um raio de luz no estado de depressão que compartilho com muitos compatriotas”. A escritora diz que hoje muitos agentes culturais se perguntam “como pôde acontecer que a Rússia, que no período posterior à Segunda Guerra Mundial foi líder do movimento pela Paz no Mundo, se convertesse de repente no emblema da agressão, declarando guerra a um Estado vizinho sempre considerado como amigo e habitado por um povo irmão?!”. 

Confessa que as relações humanas lhe interessam muito mais do que as relações estatais e que é fiel a  “uma ideia que me acompanha desde os meus estudos de genética: toda a actividade cultural humana, desde os seus inícios, é de carácter global. E sob esse ponto de vista carece de entendimento relevante o modo como se construíram as relações entre a Rússia e a Europa”. Nesse sentido, a escritora considera que a guerra iniciada pelos seus compatriotas é um caso muito sério que “minou a nossa esperança de que a Rússia alcance, algum dia, um lugar digno entre o grupo dos estados respeitáveis”. 

Sobre as relações da Igreja Ortodoxa com o Kremlin, Liudmila considera que na Rússia a Igreja está ligada ao poder político, concluindo que “o Cristianismo oficial depende do Estado para obter dinheiro e todos os privilégios. Entristece-me ver que alguns hierarcas ortodoxos apoiam a guerra… mas é lógico”. 

Esta entrevista remeteu-me a memória para a tentativa de o Papa Francisco I chegar à fala com Putin, cerca de dois meses após a invasão da Ucrânia, mas sem sucesso. Porém, conseguiu falar com o Patriarca do Cristianismo Ortodoxo, Cirilo I, cuja conversa o Papa reportou a um jornalista italiano: “Falei com ele durante 40 minutos por tele-chamada. Nos primeiros 20 minutos, com uma lista na mão, ele leu todas as justificações para a guerra que Putin move contra a Ucrânia. Ouvi tudo e respondi que não entendia nada disso… que não somos clérigos de Estado e não podemos usar o discurso político, mas sim o de Jesus”. 

Cirilo está do lado do invasor e não só culpa o invadido… também afirma que o “Estado Russo é o legítimo líder do Ocidente”. O patriarca do Cristianismo Ortodoxo e chefe da Igreja Russa é amigo íntimo de Putin desde que este era agente da KGB. Tem um estilo de vida extravagante, colecciona relógios suíços de valor elevado (algumas peças atingem os 30.000 euros), possui uma frota de carros alemães topo de gama e mantém um magnífico palácio junto ao Mar Negro. 

Rematando este pequeno esboço da personalidade do dono da Igreja Russa, falta dizer que ele se afirma como “o grande imperador e herdeiro legítimo do Cristianismo do Império Romano e de toda a Cristandade”. Um pensamento caracteristicamente medieval, embora situado no século XXI, aliado a outro candidato a imperador arrancado da mesma medievalidade e sentado no trono do Kremlin!

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico) 

OV

Imagem de Joachim Schnürle por Pixabay