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O acaso e a ideia de deus.

Texto de Onofre Varela, previamente publicado na imprensa escrita.

Quando o “Homo sapiens” teve consciência de si e do meio em que vivia, deu-se a primeira grande Revolução do Pensamento, iniciando-se aí um caminho de busca e descoberta que jamais parou. 

O nosso pensamento, enquanto banco de dados (e ainda sem dados em número e qualidade suficientes), começava, então, a fazer a incessante colecção de ideias usadas como ferramenta que, mesmo primitiva e deficiente, permitia o desbravar do desconhecido acrescentando mais dúvidas às nossas procuras, do que certezas satisfatórias e definitivas. 

Muito provavelmente foi assim que se iniciou a busca das explicações para os enigmas que nos caíam no pensamento como moscas em fruta podre. É de crer que, então, se construiu a primeira grande “ideia explicativa” em forma enigmática: uma panóplia de deuses! Cada deus acudia a um problema! 

No decorrer do avanço do conhecimento, o panteão que nos serviu de “enciclopédia” e pretensa despensa com “soluções” para todos os males e respostas para todas as perguntas, acabou por ser reduzida a, apenas, um único deus, criado e adoptado pelo povo Hebreu com base na lista dos deuses importados da civilização suméria. 

Hoje todos nós sabemos que Deus é “uma ideia”, um conceito. E também sabemos que uma ideia não tem poder sobre a matéria se não for concretizada. E Deus (assim, tal e qual como nos é apresentado, exactamente na forma como as religiões o pintam e adoram) não passa de uma ideia fantasista inconcretizável; logo, directamente, não pode agir sobre nada. 

Os fenómenos desenvolvidos pelo acaso (o que é o acaso?) indutor de transformações químicas e físicas que fazem a evolução natural, mais as acções dos homens, é que recebem, de nós próprios, o rótulo “obra de Deus”… mas a responsabilidade desse rótulo é nossa, e as acções e concretizações pretensamente divinas, também! Não são de Deus que, como actor fora do nosso pensamento, é inexistente. Logo, Deus não é, nem pode, coisíssima nenhuma. 

Deus é como a tinta na paleta de um pintor. Se não for o pintor a colocá-la na tela, ela própria, por si só, não produz obra (eis a resposta para o acasoo acaso é a terceira cor conseguida pela mistura de duas… e nunca é um acaso fortuito, porque obedece a razões químicas, físicas e matemáticas. Sem aquelas porções certas de cada cor, aquele “acaso” não seria assim, tal como se apresenta, mas um outro. Cada acaso tem a sua fórmula própria que lhe permite ser como é e não de outra maneira). 

Então, poder-se-á perguntar: crer em Deus é sinónimo de ignorância?!… Porque é que um licenciado (médico, por exemplo) tem, pelo conceito de Deus, a mesma adoração de um servente de pedreiro analfabeto? Será que o licenciado não aprendeu nada, ou o analfabeto sabe muito?! 

Não podemos, nem devemos, ajuizar o conhecimento de cada um a partir das suas crenças ou descrenças. A crença e o conhecimento podem co-habitar pacificamente na mesma mente. Embora sejam de naturezas diferentes, possuem vasos comunicantes e até se podem complementar. 

É preciso respeitar o outro e perceber o fenómeno desapaixonadamente, para se evitar confrontos azedos e sempre desnecessários. 

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico) 

OV