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Crimes sexuais na Igreja e o celibato

Texto de Onofre Varela, previamente publicado na imprensa.

Leio na imprensa (11 de Outubro de 2022) que a “Comissão Independente para o Estudo dos Abusos a Menores na Igreja” validou 424 testemunhos de abusos sexuais. O pedopsiquiatra Pedro Strecht, coordenador da Comissão, sublinhou que “o número de vítimas será muito maior”. Lembro-me de, há cerca de dois ou três anos, ouvir da boca de um representante da Igreja Católica a “justificação” de que os crimes de abuso sexual perpetrados por sacerdotes são muito inferiores aos mesmos crimes praticados em família (!?)… como que se tal afirmação fosse verdadeira e (mesmo sendo) configurasse uma desculpa para os crimes dos padres!… É uma tentativa desculpabilizadora que não fica nada bem a quem a faz, pois numa Igreja que se afirma representar um deus imensamente bondoso, todo amoroso e respeitador… um só caso de pedofilia seria estrondosamente trágico… quanto mais quatro centenas deles! Também Marcelo Rebelo de Sousa, um empedernido católico que um dia acordou presidente de uma República Laica, tem debitado demasiados discursos em favor da Igreja… o que, no rigor do seu papel (e no meu entender), deveria evitar… não o evitando, obrigou-se a um pedido de desculpas… do que não tinha necessidade.

No meu livro “O Peter Pan Não Existe – Reflexões de um Ateu” (Caminho, 2007) abordo a questão dos crimes sexuais na Igreja, considerando que o mal está “na castidade imposta aos sacerdotes”, o que se me afigura contra-natura e motivadora de atitudes sexuais criminosas. Um sacerdote (ou qualquer outra pessoa) pode ser casto e sentir-se bem recusando a prática de sexo, não se tornando num abusador sexual, quando tal recusa parte de si mesmo, da sua consciência e da sua vontade… o que não é o mesmo do que se obrigar à castidade para cumprir regras com origem fora de si, as quais lhe são impostas para poder seguir o sacerdócio, contrariando a sua realização sexual.

O celibato e o sexo eram assuntos a que a Igreja não dava importância até à Alta Idade Média. Era normal padres, bispos e papas terem filhos e várias concubinas, misturando prazer da carne com negócios e fé. Ambrósio, bispo de Milão entre os anos 373 e 397, pegando numa norma que exclui o casamento, saída do Concílio de Elvira do ano 306, lançou a discussão do celibato no seio da Igreja com a sua teoria: “O casamento é honroso, mas o celibato é-o ainda mais. Não é necessário evitar o que é bom, mas deve-se escolher o que é melhor”.

Setecentos anos depois de Ambrósio, o papa Gregório VII publicou a lei do celibato eclesial, causando bastante ira no seio da Igreja. Em consequência, milhares de sacerdotes abandonaram o sacerdócio optando pela vida conjugal que já praticavam. Foi preciso esperar mais 400 anos para que a imposição do celibato fosse aceite sem contestação visível e passasse a ser considerado uma condição normal no seio da instituição religiosa. Tratou-se de um “aceitar convencional”, apenas para contornar dificuldades… já que os sacerdotes praticavam a sua sexualidade de forma clandestina! Quando, no Concílio de Trento (realizado entre os anos 1545 e 1563) se confirmou o celibato sacerdotal, este já era encarado pacificamente… o que não quer dizer que fosse aceite.

Comparo esta atitude da Igreja com a “Lei Seca” dos EUA nas décadas de 1920 e 1930, que proibiu a fabricação e a venda de bebidas alcoólicas, promovendo um negócio clandestino por parte de vários criminosos, de entre os quais se destacou Al Capone. Esta espécie de “lei seca dos testículos sacerdotais” também conduziu ao crime, por contrariar a lei natural do uso do sexo, não só para procriar (o que é função puramente animal) mas também (e principalmente) pelo prazer que dá praticá-lo, pelo equilíbrio emocional e pela saúde mental que proporciona a quem usa o sexo de modo saudável e no respeito pela vontade da sua parceira ou do seu parceiro sexual. Quando a Igreja perceber que com as suas “fantasias fornicais” funciona contra todas as leis da Natureza e cria potenciais criminosos… a partir desse dia, o casamento será prática comum no sacerdócio católico tornando a Igreja numa instituição muito mais coerente, humana e saudável.

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico)

OV