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Sobre a eutanásia

Texto de Onofre Varela, previamente publicado no semanário Alto Minho.

D. Manuel Clemente, presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, afirmou, em Fátima, que a eutanásia é uma questão humanitária que não pode ficar reduzida ao campo estritamente religioso (Jornal de Notícias, 8/11/2016). Dito assim, até ficamos com a ideia de que a Igreja aceita, pacificamente, a prática da eutanásia em casos extremos de doença incurável com a morte próxima anunciada e provocando grande sofrimento ao paciente. Em tal caso a eutanásia seria um modo de libertar o doente, e a sua família, da dor inglória provocada pela irreversibilidade do mal.

Porém, logo a seguir, o clérigo disse que a eutanásia representa “uma grave ameaça para as famílias e uma violação grave e inaceitável da ética médica”… o que acaba por virar ao contrário a interpretação possível da primeira frase do seu discurso!… E continua dizendo que “em nenhuma circunstância e sob nenhum pretexto, é legítimo a sociedade procurar induzir os médicos a violar o seu código deontológico e o seu compromisso com a vida e com os que sofrem”.

Este tipo de entendimento está sempre acoplado à crença… logo, também está sempre divorciado da realidade natural das coisas naturais. É neste mundo que vivemos, e não no fantasioso reino das religiões! Para os religiosos condenadores da eutanásia, ela é uma prática “criminosa” que não contempla a vida como “dádiva divina”. Não entendem que nem a eutanásia configura um crime (porque há sociedades que a legalizaram; logo, a ideia de homicídio para a prática da eutanásia, é errada), nem a vida é dádiva de um deus inexistente.

O raciocínio mais humano e fraterno, perante um caso de extremo sofrimento de alguém que vive dolorosamente os seus dias finais, aponta para que o doente usufrua de tratamento paliativo, sendo injectado com drogas suavizadoras para que a morte se cumpra sem dor. Porém, este pensamento parte, essencialmente, dos familiares e amigos que assistem à agonia do doente, e querem vê-lo ali, a respirar, para poderem demonstrar-lhe “amor e carinho”… mas quase sempre esquecem a vontade do próprio doente. Quem visita um doente terminal, manifesta a sua solidariedade nos poucos minutos que passa junto dele, e depois ausenta-se durante dias até à próxima visita caridosa. Mas o doente sente o seu sofrimento hora a hora, minuto a minuto, segundo a segundo… durante 24 horas por dia… e pensa, e sente, e sofre em cada momento que para ele é gigante!

Quando o doente tem a consciência do seu fim próximo; quando os médicos afirmam não haver marcha atrás no estado da doença que, inevitavelmente, o conduzirá à morte próxima e sofrida; e quando o paciente recusa drogas paliativas que lhe permitam respirar sem dor até ao momento final, e pede a prática da eutanásia… quem é que tem a última palavra sobre a sua própria vida?

A família?… A medicina?… O Estado?… A Igreja?… Ou ele próprio?

Ninguém é proprietário da minha vida. Sou eu o único proprietário de mim, e respondo pelas minhas acções, atitudes e vontades. Se, em consciência (repito: em consciência. Quando detentor de todas as minhas faculdades mentais), decido sair da vida por não me interessar vivê-la nas circunstâncias em que ela se me apresenta, ninguém tem o direito de contrariar a minha vontade, e todos têm a obrigação cívica de me respeitarem, incluindo nesse respeito aquele que é devido às minhas ideias e vontades. A vida de cada um não é passível de “privatização”, nem pela família, nem pela ciência médica, nem pelo Estado… e muito menos pela Igreja cuja ética religiosa choca com a minha ética cívica.

A crença religiosa é arrogante ao querer impor a sua vontade, esquecendo que as liberdades de pensamento, expressão e acção de cada um, são legisladas pelo Estado que é laico… e nunca pela Igreja!

Limitem-se as religiões a aconselhar os seus acólitos, e não interfiram na vida de quem dispensa as suas moralidades. A moral religiosa, se tem alguns lados positivos (assunto pouco pacífico a merecer muita discussão), acaba por se transformar em imoralidade quando defende a obrigação da entrega ao sofrimento para agradar a um deus fictício… provavelmente criado para apaziguar sentimentos… e mantido para exploração das almas. Devemos concluir que o sofrimento acaba por dar lucro à Igreja?…

(O autor não obedece ao último Acordo Ortográfico) 

OV

Imagem de Tumisu por Pixabay